ANTES QUE ELA VÁ EMBORA

CAPÍTULO 9. Palmeirense

MISHA

Que dor de cabeça infernal.

Por que as pessoas decidem, por livre e espontânea vontade, beber bebidas alcoólicas?

Ah, lembrei, é porque na hora você não lembra que você pode ter uma coisa chamada ressaca. Nunca fui de ter ressaca, posso contar nos dedos de uma mão as vezes que tive. Mas certamente essa é a pior.

Eu bebi quantos drinks ontem?

Pego o exemplar do livro que está na minha cabeceira, mas antes que eu possa retomar minha leitura, batidas secas em minha porta despertam minha atenção.

— Pode entrar — digo alto, tirando o livro do meu campo de visão.

Uma loira aparece atrás da porta de madeira com um óculos de sol na cabeça, o cabelo preso em um rabo de cavalo alto, uma regata rosa, um short jeans e chinelos Havaiana com glitter, muito glitter nos pés.

— Fadinha! — exclamou. — O que está fazendo trancada neste quarto com o dia lindo que está fazendo lá fora? Boa tarde — disse cheia de dentes.

Catarina, óbvio.

— Boa tarde… estou passando por um desequilíbrio metabólico no meu corpo, Barbie Malibu.

Barbie Malibu? Gostei — pulou em minha cama de forma espalhafatosa e me jogou um blíster com comprimidos brancos — você deve estar com dor de cabeça, tome isso aqui, você vai se sentir melhor.

Eu já disse que ela é um anjo?

— Embora vovó dizia que para curar uma ressaca basta abrir uma latinha de cerveja — ela completa, analisando suas unhas.

Sabe quem mais me falaria isso? A senhora minha mãe. Minha avó me passaria um chazinho de boldo, certeza. Será que tem boldo aqui?

Catarina me encara com um dos seus sorrisos como se não tivesse bebido como um opala ontem. Como ela consegue estar plena e eu parecendo que fui atropelada por um caminhão Scania?

A verdade é que eu fui mesmo atropelada por uma, mais precisamente alta, tatuada, com o cabelo impecavelmente cortado e caoticamente ajustado, olhar marcado, maxilar travado, as mãos em minhas coxas… essas férias serão mais longas do que eu pensei.

*

If it’s not forever

(Se não é para sempre)

If it’s just tonight

(Se é só esta noite)

Oh, it still the greatest

(Continua sendo o melhor)

The greatest, the greatest

(O melhor, o melhor)

A música alta entra pelos corredores adentro. Não demorou muito para que a loira me convencesse a sair do meu quarto com a desculpa de que hoje ainda é Natal e que precisamos aproveitar a magia do dia.

Assim que aparecemos na varanda, encaro o clima de churrasco que tomou o lugar. Também encaro várias pessoas desconhecidas que ainda não tinha visto. Alguns rostos são familiares e acho que estavam ontem no bar, incluindo a ruiva de biquíni vermelho que acaba de saltar de uma moto de trilha.

Mas meus olhos encaram Adria e a mulher ao seu lado na churrasqueira.

You

(Você)

Your sex is on fire

(O seu sexo está em chamas)

Sex on fire” do Kings Of Leon estoura na caixa de som enorme que está na varanda e eu só consigo focar na mulher tatuada com um short preto desses “runner” e uma camiseta da mesma cor, revelando todos os músculos perfeitamente definidos de seus braços.

A música é bem, bem sugestiva para essa ocasião.

Eris não é uma fisiculturista ou algo do tipo, mas tem os braços perfeitamente delineados. Alguém aí bate cartão na academia, certeza.

— Eu simplesmente amo a energia natalina — Catarina disse, respirando fundo enquanto fitava o pessoal espalhado no jardim, ao redor da piscina, área de churrasqueira e a varanda — não está sentindo?

Estou, eu estou sentindo. Estou sentindo até demais.

— Sabe, obrigada.

— Obrigada pelo quê?

— Por você ser legal. Fico feliz por termos dado bem, fadinha — Catarina diz — por mais que eu tenha sido muito bem recebida pelas amigas da Adria, e claro, elas são minhas amigas hoje também — ela enrola o rabo de cavalo com os dedos — é bom conversar com alguém que… eu não sinta tanto a diferença de idade.

— Tem quantos anos, Cat? — resolvo perguntar.

— Vou fazer 20 no início do ano que vem.

Vinte anos? Pensei que ela fosse mais nova porque acabou de se formar no colégio. Mas tudo bem, não tem idade certa para terminar o ensino médio, não é mesmo?

— Me mudei para cá no início do ano passado — ela fala sem eu ter perguntado nada enquanto caminhamos até o grande freezer na lateral da varanda — e no meu antigo colégio não tinha algumas matérias que temos aqui no Brasil, então eu precisei fazer a equivalência do currículo e estudar o que não tinha se eu quisesse passar em alguma universidade daqui.

Eu acho incrível a forma como Catarina fala sobre sua vida e parece não se importar com isso. Ela é literalmente a pessoa mais transparente que eu já conheci, apesar da vibe misteriosa que insiste em aparecer. Ela é um pouco avulsa em alguns momentos, mas acho que não faz por mal, apenas é muito espontânea. Chega a ser algo fofo.

Ela vai me falando sobre a diferença nos ensinos e me bate uma enorme vontade de saber onde essa menina estudou. Por fim, decido acabar com minha curiosidade e pergunto.

Institut Laurent — mas isso é… — é um colégio interno na Suíça — quase me engasgo.

— Você estudou em um internato na Suíça? — minha fala saiu mais surpresa do que eu gostaria, mas, me entenda, é a Catarina em um colégio interno. Isso beira o humanamente impossível.

— Em três, na real — diz contando nos dedos — e um na Áustria. Áustria? — pergunta para si mesma — isso, Áustria.

— Quero perguntar o que aconteceu?

— Teremos muito tempo nas férias para conversar sobre isso, até porque hoje é um dia feliz e não há espaço para histórias tristes — ela olha especificamente para Adria — graças à minha super heroína a minha história não é triste mais.

Então algo realmente aconteceu.

— Sabe, a gente quase nunca sente nossa diferença de idade — ela afirma confiante.

Adria parece mesmo mais velha que Catarina, mas não é lá uma diferença muito perceptível, se pararmos para analisar. Acho que é porque Adria é bem jovial e Catarina parece ser bem mais velha.

— O peso de namorar uma mulher com quase 8 anos de diferença aparece vez ou outra — ela abre outro sorriso agora em direção a mim — porém, não é nada difícil driblá-lo.

— A Adria tem 27 — penso alto, mas só percebo que expressei minha fala quando Catarina balança a cabeça em afirmação.

— Sim, ela tem 27. Elas têm quase a mesma idade — deduzo que esteja se referindo a Haru e a Eris — sabe, o trio — deu ênfase no final da frase — fiquei com medo de me tratarem como uma criança no início.

Esse é um receio plausível, penso. Penso também que não sei quase nada sobre a Eris. Nem mesmo sei sua idade. E por algum motivo pensar nisso me deixa esquisita e com uma vontade de completar essa lacuna de curiosidades sobre sua vida. Mas o que estou falando?

— A Haru é mais pé no saco e mais extrovertida, você viu, mas a Eris é um amor — e se prolongou agora no final — ela só não gosta de aceitar isso. Tem toda essa casca grossa por fora, mas por dentro é uma pessoa incrível, fadinha. É só ter um pouco de paciência, sabe?

Acho que isso faz sentido, eu só não entendi por que ela está falando isso comigo.

Uma mulher mais velha e com o físico bem parecido com o de Nara, com o cabelo ruivo fechado e longo, usando uma bermuda de tecido branco e uma blusa de botão de manga curta, da mesma cor, com um fardo de cerveja nas mãos, aparece.

Ela está de mãos dadas com uma mulher mais baixa, com a pele em um tom negro quase do meu, o cabelo liso bem liso e escuro, em uma saída de praia azul e um óculos escuros desses de lente redonda e armação dourada.

— Carioca? — a mulher de saída de praia azul levanta o óculos do rosto e o ampara em seu cabelo como uma tiara — carioca! — ela abre um sorriso largo.

— Conheço você — falo, cumprimentando a garçonete que me atendeu aquele dia no bar, ou melhor, nos atendeu — todo mundo se conhece nessa cidade?

— Você está andando com as fanchas mais famosas da região, queria o que? — completou me cumprimentando.

Fanchas famosas, hum? Só consigo rir mentalmente relembrando o que Gabriel disse sobre o clã lésbico.

— E as mais incríveis, você quer dizer — Catarina disse — vejo que vocês já se conhecem então.

A morena olha para mim em um diálogo silencioso como se estivesse pedindo alguma permissão. Lógico que ela lembrou com quem eu estava naquele dia. Olha para a reta da churrasqueira, olha para Catarina e volta o olhar para a mulher que chegou com ela.

— Ela esteve no Quimera — ela responde de forma sutil e me estende a mão — prazer, Daniela, mas você pode me chamar de Dani.

— Ah, é, que cabeça minha, estávamos lá ontem — Catarina disse — mas acho que a Misha ainda não conheceu a De.

A mulher ao lado da Dani me estendeu a mão em um tom formal demais. Encaro um relógio dourado em seu pulso e uma aliança da mesma cor em seu anelar que eu juro ser maior que o meu juízo.

Tudo bem que ultimamente o meu juízo não está lá com um tamanho muito considerável.

Balanço a cabeça em afirmação.

— Misha, a De e a Dani são casadas e também donas do Quimera, o bar que fomos ontem.

*

Saio da cozinha e me deparo com Catarina sentada sobre os ombros de Adria e Dani sobre os ombros de Denise, as quatro dentro da piscina, brincando de briga de galo. Sabe, quando você e sua dupla precisam derrubar a outra dupla? Está uma cena divertida de acompanhar, mas eu tenho outro intuito.

Eris ficou sozinha na churrasqueira.

Olho para minhas mãos e encaro a travessa que Miranda me entregou com alguns utensílios para o churrasco.

Fica na sua.

Fica na sua.

Fica na sua.

Digo para mim mesma, mentalmente, enquanto ando lentamente até o balcão de madeira da área externa.

Resolva essa situação de vocês duas logo, curta suas férias e seus últimos momentos em terras brasileiras, Misha.

Eris está de costas para mim, envolvida com a música e completamente alheia à realidade ao redor. Que inferno de mulher bonita até cortando um mísero pão de alho.

Gotículas de água escorregam nos músculos do braço e das costas de Eris, os fios de cabelo estão sutilmente colados devido à umidade e o cheiro do bendito perfume vem até mim quando o vento apareceu. Até agora eu não sei se é feminino ou masculino, mas é tão… eu acho que preciso transar.

Eu acho não, eu tenho certeza.

Eu não estou ficando maluca ou encantada com ela, só estou com tesão acumulado. Isso acontece mesmo.

“Fui atrás de você. Você sumiu. Era apenas minha melhor amiga a que está flertando com você”

Eu fui muito estúpida, puta que pariu.

Eu fui muito estúpida, caramba.

O Rio de Janeiro continua lindo.

Escutei alguém gritar animadamente quando a voz de uma mulher com um pandeiro na mão começou a cantar “Aquele Abraço“.

Alô, alô, torcida do Flamengo

Aquele abraço

Nós duas nos encaramos, e percebo que Eris está cantando a música baixinho.

— Pensei que você não fosse flamenguista — apoio meus cotovelos sobre a bancada — pelo que me lembro, você estava torcendo contra o meu time no dia do bar.

Resolvo quebrar o silêncio entre nós, e Eris me olha de lado assim que abro a boca.

— E eu não sou. Tenho bom gosto.

— Para qual time você torce? Ah, deixa eu adivinhar, você é Fluminense?

— Como eu disse — ela gira seu corpo mais uma vez nos calcanhares, ficando de costas para mim e voltando sua atenção para a bancada — eu sei torcer. Torço para o Palmeiras.

Sinceramente? Preferia que fosse Fluminense.

Palmeiras? Mas esse time nem é do Rio, Eris.

— Eu não sou do Rio, carioca — é quando minha ficha finalmente cai, claro que ela não é do Rio.

— Você é de São Paulo — constato — claro.

— Nascida, criada e com um time de verdade para torcer.

— Realmente… você só não tem um Mundial para chamar de seu — estou correndo risco de vida? Com certeza, mas dane-se, como é aquela musiquinha mesmo? “O Palmeiras não tem Mundial…”

Passamos mais algum tempo nessa conversa até que finalmente pergunto se ela quer ajuda para terminar o vinagrete que está cortando.

— Pode curtir seu dia, Misha — ela me responde de forma direta e sem virar o corpo para mim — obrigada por perguntar.

Liga a torneira e lava as mãos.

Ela responde da forma educada de sempre, claro, quando não estamos nos atacando ou seja lá como estamos lidando uma com a outra. Lembro do que Catarina me disse há pouco.

— Mas eu gostaria de te ajudar — rodeio o balcão e paro atrás dela. Ela gira o corpo nos calcanhares e me encara — posso? — pergunto.

Ela olha para mim em silêncio. Percorre meus olhos, nariz, boca, pescoço, colo, barriga, meu pulso, e me sinto atravessada por seu olhar como em todas as vezes que ela me olha dessa forma.

Engulo a seco.

Posso? — ela pergunta e assinto, de forma totalmente involuntária.

Acho que ela se deu por vencida, pois não pretendo sair daqui. Mas, quando dou por mim, ela está com as duas mãos em meus cabelos, juntando os fios com ambas as mãos.

— Primeira regra — acomoda a liga de cabelo em uma das mãos e passa a primeira volta ao redor do conteúdo dos meus fios cacheados — sempre prenda o cabelo — fala, sem tirar os olhos dos meus.

Ela termina de fazer um rabo de cavalo perfeito, e eu não faço ideia de como conseguiu amarrá-lo estando nesta posição. É melhor eu não imaginar.

— Eris.

— Misha.

— Por que você anda com uma liguinha de cabelo em seu pulso, se o seu é curtinho?

Ela me joga um sorriso zombeteiro enquanto lava novamente suas mãos na torneira da bancada de mármore.

— Porque não se entra em campo com os cabelos soltos, flamenguista.

Oi, Deus, é a sua filha de novo.



Notas:

Olá, pessoal, mais um capítulo para vocês (:

Beijão, Mabel!




O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2024 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.