Lorde Vans sentia uma sede implacável, que almejava saciar com sangue, muito sangue. Naquela altura dos acontecimentos, ele já não era capaz de controlar o desejo que o dominava. O que começou com a vontade de sobrepujar os inimigos do seu rei, tornou-se uma inebriante viagem aos seus anseios mais sombrios. Como um herdeiro da magia do sangue, ele sempre esteve a um passo da loucura sanguinária.
E era libertador se entregar a ela.
Mesmo que pudesse alcançar a lucidez, ele não conseguiria mais se apegar ao bom senso e aos limites com os quais foi criado e treinado.
Na névoa, podia sentir os corações pulsantes, não dos seus inimigos, mas sim, das suas presas. Ele queria se alimentar delas, do calor vermelho que percorria suas veias levando vida. E saboreou o momento em que encontrou-os, tolamente dispostos ao embate final.
***
Voltruf encerrou sua corrida na beirada do abismo. Ela estava muito próxima das muralhas do Castelo, onde soldados nervosos observavam a cortina de fogo que Melina criou. Retornou para forma humana e tomou um instante para admirar a manifestação física do poder da amante, então de se voltou para o abismo e pulou.
Uma dezena de metros abaixo, na ponta de um rochedo e de regresso à forma felina, ela escolheu outro ponto no paredão e saltou. E assim fez seu caminho em direção ao fundo do abismo. Quando necessário, mesclava sua magia de água e terra para formar pequenas plataformas para o seu pouso.
Aos poucos, Voltruf foi engolida pela escuridão e quando alcançou o que julgou ser a metade do paredão, percebeu que a névoa densa estava se elevando em direção ao topo.
Observando o fenômeno sobre um pedaço estreito de rocha, ela fincou as garras no paredão e deslizou em direção à névoa. Não escorregou mais que um metro em seu interior e foi tocada pela sensação de estar ultrapassando uma barreira mágica. Ergueu a cabeça e vislumbrou a lua, novamente.
Ali, além dos limites mágicos que separavam os dois mundos, mundo humano, Domodo e Inamia, a lua não era prateada, e sim, vermelha.
Voltruf sentiu a apreensão crescer em seu íntimo. Não pela descoberta ou necessidade de retornar para Melina, contar o que descobriu e ajudá-la a lidar com esse problema, mas sim, pelo extremo desconforto que era estar naquele mundo sem a sua mestra, Marie.
Então, se apressou a escalar a rocha e retornar para a segurança de Domodo. Seu corpo inteiro tremia, quando içou-se para a rocha em que estivera, momentos antes. No entanto, não chegou a completar o movimento, pois, assim como aconteceu no dia em que resgataram Lenór, a névoa revolveu-se, assumindo formas vagamente humanas. Rostos fantasmagóricos a encararam com expressões de agonia e raiva, enquanto braços e mãos a agarraram e puxaram de volta para a escuridão.
***
Quando os primeiros sinais da chegada de lorde Vans alcançaram Lenór, ela uniu as mãos em um gesto respeitoso e fez uma rápida oração aos deuses. Pediu perdão àqueles que caíram diante de um inimigo insano e cruel e que, agora, tinham seus corpos violados por ele. Prometeu vingança. E, por fim, pediu forças para enfrentar mais uma batalha e que, se a morte a levasse naquela noite, que isso acontecesse junto com o último suspiro do inimigo.
E sem se dar conta, sua mente e oração se voltou para as Terras de Aman. E ainda que Aisen tivesse lhe dito que Amani era apenas uma mulher, sentiu algum conforto em saber que suas orações eram ouvidas por alguém.
— Sabia que os nossos problemas eram grandes, mas se Lenór Azuti está rezando, jogo fora minhas esperanças de ver o próximo raiar do dia. Você costumava ser mais otimista diante da batalha.
— Posso dizer o mesmo sobre você.
Dalise baixou o olhar para os pés, onde uma pequena camada de névoa começava a se elevar, e Lenór notou que o metal do bracelete dela ameaçou transmutar. Quase no mesmo instante, sentiu um estranho formigamento no corpo.
Ali perto, um dos arqueiros dispostos nas árvores, retornou ao chão para avisar:
— Comandante, a floresta está em chamas.
Preocupada, Lenór escorregou a mão pelos cabelos.
— Parece que Mardus não quis se arriscar a esperar o resultado da nossa investida — murmurou.
— Não acredito que o rei agiria de maneira tão imprudente, ainda mais sabendo que boa parte de seu exército ainda está aqui. Além disso… — Dalise fechou os olhos por um momento — eu já senti isso antes.
— O quê?
Ela fitou Lenór, pensativa. Como uma maga, era natural perceber a manifestação do poder alheio. Entretanto, qualquer frase que escolhesse para descrever o que sentia, jamais chegaria próximo da realidade. Ainda mais para alguém que não era capaz de compreender a magia. Decidiu ignorar a pergunta da comandante e fez outra ao soldado:
— De que direção vem o fogo?
Claramente assustado, o homem respondeu:
— De todas as direções, senhora! É… é gigante! Até onde pude ver, as chamas vão além das copas das árvores! — ele se curvou, colocando as mãos nos joelhos. — Vamos todos morrer esta noite.
Sem muita paciência para o drama, Dalise deu um tapinha no ombro dele, que se endireitou e assumiu uma expressão mais sóbria enquanto ela perguntava para Lenór:
— Você disse que a Grã-mestra da Ordem está aqui, certo?
A outra confirmou com um meneio de cabeça.
— Então, não precisamos nos preocupar com o fogo — voltou a fitar o rapaz. — Há pouco, senti as emanações de uma grande conjuração mágica. Só experimentei algo semelhante na batalha de Flyn, há 5 anos. Estamos dentro de um círculo de magia criado por Melina d’Santuria — concluiu.
— Tem certeza? — Lenór perguntou, embora não duvidasse das percepções da companheira palatin. O que realmente lhe perturbava eram suas próprias percepções após consumir a semente de guerra. A dor dos ferimentos confundia-se com os efeitos dela. Os olhos incomodavam, graças à quantidade excessiva de luz que enxergava à volta das pessoas. Porém, diante da situação, ver auras luminosas não era incomum. Na verdade, era a visão menos estranha em comparação a outras dezenas de vezes em que teve de recorrer a uma semente.
— Acredite em mim, Lenór, é impossível esquecer o que vivi e senti naquele reino. Principalmente, nunca esquecerei do poder que aquelas mulheres possuem e as sensações que suas emanações promovem.
***
Espalhados pelas copas das árvores, arqueiros iniciaram um ataque selvagem aos mortos andantes. Uma chuva de flechas atingiu-os, penetrando seus corpos ao ponto de tornar impossível sua movimentação. Quando o ataque cessou, outro grupo de soldados cardasinos saiu de seu esconderijo e caminhou entre os corpos, decapitando-os.
Vans sentiu a magia retornando ao seu corpo, junto com o desconforto da quebra da ligação com cada um deles. O lorde não se importou. Em vez disso, parou de andar para sentir a carnificina que alimentava sua névoa e saboreou a guerra com olhos loucos e um sorriso no canto da boca.
Enquanto houvesse soldados se digladiando, sua fome e poder cresceriam. Ele se deliciava, enquanto caminhava entre os combatentes, dispensando golpes mágicos em todas as direções, sempre que os soldados cardasinos tentavam atacá-lo.
Ele queria mais e um grito animalesco escapou de seu íntimo, depois uma risada insana e, por fim, um conjunto de palavras sem nexo. A cada minuto que passava entregue aos delírios da magia de sangue, mais distante sua consciência ficava do homem que era.
Continuou o avanço, inebriado pelo cheiro do sangue e liberou um pequeno gemido de dor e cólera, quando sentiu algo cortante atravessar o couro da sua bota e penetrar a panturrilha. Saltou para o lado e, com um gesto brusco, afastou a névoa para descobrir que o inimigo conseguiu se infiltrar na sua barreira protetiva. As folhas secas em que estava pisando, naquele ponto do terreno, escondiam soldados.
A dor causada pelo corte clareou seus pensamentos e aumentou a gana pelo sangue inimigo. Ao mesmo tempo, foi obrigado a admitir que aquele movimento o surpreendeu. Pois, a possibilidade de um ataque vindo do solo, jamais lhe passou pela mente.
No centro do pequeno espaço que abrangia seu círculo de proteção, Vans encarou Lenór, notando o sangue que encharcava as roupas dela. Lambeu os lábios e sorriu. A comandante retribuiu seu olhar, mas não fez nada além disso, nem mesmo quando ele ameaçou chicoteá-la com seu poder. O que não aconteceu, porque Dalise e Elius o atacaram em companhia de outro soldado. Diferente do embate na clareira, que por motivos óbvios não prestou atenção, Lenór agora observava cada movimento do lorde, aprendendo seus movimentos e pontos fracos.
Vans desfez a proteção e tentou recuar alguns passos, a fim de erguê-la novamente. Porém, Dalise não permitiu. Em seu embate anterior, a palatin percebeu que a magia do lorde necessitava do espaço apropriado para ser conjurada de maneira efetiva, portanto, os cardasinos mantinham-se próximos o suficiente para que ele não pudesse erguer o escudo sem incluí-los dentro dele.
No entanto, Vans era hábil o suficiente para se virar bem sem o artifício mágico, além de ter dezenas “marionetes” para protegê-lo. Os mortos andantes o cercaram fornecendo a proteção que necessitava e, notando a presença de arqueiros nas árvores, o lorde trouxe a névoa de volta ao terreno, obstruindo a visão inimiga e fazendo-a escalar as árvores como se tivesse vida própria a destroçar os galhos em que os homens se abrigavam, atirando-os no chão.
Enquanto isso, Dalise dispensava socos, pontapés e decepava membros e cabeças com a brutalidade de um bárbaro. Ela chutou um dos inimigos e girou a corrente com a maça estrelada conectada à sua espada. A pequena bola de ferro resvalou nas pernas de Vans, que ao recuar um passo foi estocado por Elius. A lâmina do capitão quase o acertou, mas evitou o golpe usando sua própria espada. Com uma pequena onda de magia, ele empurrou Elius para longe. E Dalise voltou a atirar a maça nele, que segurou a corrente com um sorriso desdenhoso.
Em resposta, a palatin fez a corrente mudar sua forma. Os elos metálicos ficaram mais finos e ganharam espinhos longos e afiados. Eles fincaram-se na mão do lorde, ao ponto de atravessá-la. Em meio a dor, Vans partiu a corrente com magia e usou seu próprio sangue para reforçar o ataque seguinte.
Ele atirou as gotas no ar, que flutuaram lentamente, antes de serem impulsionadas pela magia e, literalmente, liberarem uma explosão mágia diante de Dalise. A palatin usou o escudo para receber o impacto do golpe. Porém, a agressão foi tamanha que o metal se partiu e o choque fraturou seu braço. Novamente, ela foi lançada por alguns metros e caiu sobre um dos mortos andantes.
— Inferno — gemeu de dor, enquanto tentava se livrar do defunto.
Irritado, Vans usou a magia do sangue para paralisar o resto dos seus oponentes e traçou um gesto brusco no ar, dispersando um pequeno brilho que reverberou em ondas mágicas.
Foi nesse instante que Lenór agiu.
Como ela não esteve envolvida diretamente na luta, Vans não a paralisou, tampouco direcionou o ataque mágico para ela. Enquanto Dalise, Elius e os soldados eram atirados para todos os lados, junto com os mortos que defendiam o lorde, a comandante investiu contra ele. Porém, com o canto do olho, em uma mera fração de segundos, Vans notou seu movimento e emendou o gesto seguinte ao anterior, fazendo magia verter do braço, como se fosse o açoite de um chicote de pedras.
A poucos centímetros dele, Lenór cruzou as espadas diante do corpo e elas absorveram o impacto do golpe mágico, fazendo com que recuasse alguns passos, desequilibrada. Enraivecido, Vans fez a névoa aprisioná-la. A névoa escalou seu corpo paralisando-a a cada centímetro que subia. E antes que fosse tarde demais, Lenór atirou uma das espadas aos pés dele. Vans sorriu, acreditando ser apenas o erro de um esforço inútil, mas no momento seguinte a comandante atirou a outra espada. A segunda lâmina se chocou com a primeira e liberou toda a magia que tinham absorvido.
Não apenas o lorde, mas todos em volta sofreram o impacto da explosão e, novamente, foram espalhados pelo lugar. A potência do ataque atirou Lenór contra o tronco de uma árvore. A dor nas costas uniu-se a do ferimento na barriga e, por um momento, ela não conseguiu respirar direito. Caiu junto a uma das raízes da árvore, cuja idade era facilmente percebida pela grossura do tronco e altura. Do outro lado daquele tronco, estava a abertura pela qual Dalise saiu da gruta.
A meros dois metros dela, de cara no chão e sangrando, graças a um corte profundo no braço, Vans falou com ares de loucura:
— Vocês não podem me vencer. Ninguém pode. — Ele ficou de pé, um sorriso quase demoníaco enfeitando a boca. Enquanto houver sangue fresco, irei me erguer — riu alto, insano.
Apontou um dedo longo e sujo para Lenór e andou até ela. Segurou a gola da camisa dela, erguendo-a do chão e pressionando contra a árvore.
— Vocês são apenas diversão e… comida — pressionou o ferimento na barriga dela.
Lenór gemeu de dor, enquanto seu sangue escorria para fora do corpo. Uma gavinha de névoa elevou-se do chão e cobriu a mão dele, onde o sangue da comandante acumulava, depois escalou o braço e curou o ferimento.
— Vê?
— O que eu vejo é apenas mais um idiota arrogante, que se acha um deus porque tem um pouco de magia. Eu não sou a caça, sou a caçadora e você é a minha presa.
Ela segurou o braço dele, pressionando um ponto sensível. Imediatamente, Vans sentiu o membro ficar dormente e quis se afastar, porém Lenór usou a outra mão para golpeá-lo na axila, no espaço livre entre a couraça e a ombreira. E não foi por acaso que a presença da névoa começou a diminuir. Ele se sentiu defeituoso, como se metade do seu corpo estivesse morto. Contudo, ainda era possível sentir a magia fluindo no lado esquerdo do corpo e antes que Lenór pudesse golpeá-lo novamente, ele livrou-se do seu contato e recuou, reunindo poder na outra mão.
— Com medo da “comida”, Lorde? — ela sorriu fitando a destruição em volta. Pegou o punhal que trazia na cintura, junto com a bainha, na qual tinha quebrado uma das suas bolinhas com magia de sábio. Dalise estava a poucos passos dos dois, enquanto Elius rolava pelo chão tentando se livrar de um inimigo. E os mortos andantes continuavam chegando.
— Não sei o que fez comigo, mulher, mas não voltará a fazê-lo — apontou a pequena bola luminosa para ela.
— Digo o mesmo em relação a você — tirou o punhal da bainha e a lâmina incendiou-se. Lenór apontou-a para ele, mas no instante seguinte atirou-a no buraco oculto pelas raízes da árvore sob a qual estavam. Então, reuniu as poucas forças que lhe restavam e correu para Dalise, que atirou a maça estrelada para ela.
Ainda nos primeiros passos, o chão sob o seus pés se partiu. Vans afundou na escuridão, enquanto Lenór agarrava-se à corrente da arma de Dalise. No entanto, ambas estavam perto demais do raio da explosão causada por Adalie e os arqueiros na gruta abaixo deles. Despencaram junto com as pedras e grande árvore.
Elius conseguiu segurar Dalise por um dos pés, porém Lenór foi atingida por um pedregulho e soltou a corrente, caindo no lago subterrâneo junto com Vans e várias camadas de pedras, terra, galhos e raízes.
Cassete!
Lenór, nunca consegue um alivio, qndo a gente pensa que vai, não vai. Desse jeito não vai sobrar nenhum pedacinho dela pra contar história, a bichinha sofre desde do começo, parece até com alguém que conheço kkk.
Esperando o próximo capitulo 😘