DAKOTA

4. NUNCA LEVE UMA FACA PARA UM TIROTEIO

— I — 

— Ela é louca! — Isadora afirmou.

Passados alguns dias e o susto, ela agora conseguia narrar o que aconteceu com tranquilidade. Sentada ao lado de Dona Rosana, que bebericava uma xícara de chá com ouvidos atentos, ela fitava a namorada, que estava recostada a um dos pilares que sustentavam o telhado do alpendre que circundava o casarão.

— Ainda não posso acreditar — Alice murmurou sem muita convicção. Ela não apenas tinha ouvido os tiros, como também testemunhou-os, pois chegava à praça naquele exato momento.

— Essa Dakota pode até ser doida, mas também é muito corajosa — Nando falou, sentado no último degrau da escada, com o celular nas mãos e fones nos ouvidos. — E me pergunto quanto dessa coragem ela ainda terá quando Silvestre Rocha for tirar satisfações.

Alice olhou para o irmão caçula, ele parecia quase maldoso ao findar o comentário. Desejou que a sua previsão jamais se concretizasse. Não por Dakota, mas porque não queria ter de lidar com os sentimentos de impotência e angústia, após outro episódio de violência extrema em Cascabulho.

Seus pensamentos viajaram até a expressão sombria de Dakota, na ocasião, com a arma ainda em punho e observando Rochinha e companhia, quase correndo em direção à saída da cidade. Ela parecia assustadora, quase feroz. Mas, também, parecia forte e decidida, alguém admirável.

Arrastou o olhar de volta para Isadora, cujo semblante fechado mal escondia sua angústia e revolta. Naquela tarde, elas tinham discutido e falaram coisas desagradáveis, as quais, Alice já estava arrependida.

— Essa mulher está com os dias contados — anunciou Dona Rosana, entrando no assunto.

— Cruzes! Vocês dois só pensam em desgraça!

— Desgraça anunciada, mana — recordou Nando, pendurando um cigarro nos lábios.

O irmão andava estranho, notou Alice. Nando costumava passar muito tempo fora da fazenda. Aliás, ele sempre preferia estar em qualquer outro lugar. Entretanto, vinha saindo pouco e, quando o fazia, não ia para Cascabulho. Discutindo o assunto com a madrinha, ambas chegaram à conclusão de que, embora não demonstrasse, o ataque sofrido por Tonho também o abalou. Ao menos, isso serviu para deixá-lo longe de encrencas por um tempo.

De pé, ao lado dele, Jaime também se animou a fumar. O capataz da Fazenda Mimosa acendeu um fósforo e o levou até a ponta do cigarro, dizendo:

— Talvez seja algo bom — apagou o fósforo e colocou-o de volta na caixinha. — Nos acostumamos a aceitar os mandos e desmandos dos Rocha. Parece bom que alguém não esteja disposto a abaixar a cabeça para eles.

— Suicídio, é o que parece! — Dona Rosana afirmou.

— Vingança — Isadora falou, calmamente. — É disso que se trata. Seja lá o que Dakota representa para o Tonho, ele é importante o suficiente na vida dela para que queira derramar o sangue de quem o feriu.

Houve um breve silêncio, em que todos os olhares se concentraram nela.

— Dakota quer vingança e elegeu a família Rocha como os culpados pelo infortúnio do Tonho. — concluiu.

— Ela e toda a cidade! — Nando voltou a se manifestar. — Aquele babaca arrogante do Donato Rocha brigou com Tonho naquela tarde, saiu dizendo desaforos e prometendo que haveria revanche. Eu estava lá! Vi tudo! Então, poucas horas depois, Tonho foi baleado. Como alguém pode ter dúvida de quem foi o responsável?!

Ele ficou de pé e enfiou as mãos nos bolsos do moletom.

— Querem saber?! Se essa mulher veio aqui procurando vingança, estou torcendo por ela. Mesmo que Cascabulho vire um cenário de faroeste.

— Bobagens! — Repreendeu Dona Rosana. — Você não sabe do que fala.

Disposto a não discutir com ela, Nando deu um tchauzinho e se foi na noite, com a desculpa de que ia caminhar um pouco, o que para ele era sinônimo de “estou indo ver uma garota”. Alice o observou até não ser mais possível, torcendo para que ele e a “ficante” da vez fossem espertos o suficiente para não serem pegos. Ela não queria ter de lidar, outra vez, com um pai raivoso ou namorado traído, principalmente se a moça fosse filha de um morador ou funcionária da fazenda.

Dona Rosana deu continuidade ao assunto:

— Especular é bem diferente de ter provas. Ninguém viu o que aconteceu realmente. As “testemunhas” ouviram os tiros e viram homens encapuzados passarem em alta velocidade num veículo desconhecido e sem placas. Não há nada que conecte Silvestre Rocha a esse crime. Nem mesmo esse desentendimento, onde o filho dele foi o protagonista. Um rapaz que, todos sabem, há muito tempo não está mais nas graças do pai. Deus sabe que Silvestre não é um bom homem, mas nem tudo de ruim que acontece nessa região pode ser associado a ele. Por isso, tenho minhas dúvidas quanto ao que aconteceu com Tonho.

Ela falava com a propriedade de quem, em outros tempos, conheceu intimamente a família Rocha e seu patriarca.

— A senhora não deixa de ter razão… — Alice concordou, embora também fizesse parte do grupo que acreditava na culpa de Silvestre Rocha. Talvez por isso, tenha se sentido tão eufórica ao ver Dakota dar uma lição no filho dele.

— Hum. Já não posso dizer o mesmo sobre essa Dakota. Silvestre não é estúpido. Ele é muito paciente, uma qualidade terrível quando o assunto é vingança. Pois, ele prefere agir com sangue frio. Essa mulher receberá o troco pelo o que fez, não hoje, nem amanhã, mas sim, quando menos esperar.

O silêncio que se seguiu tornou-se pesado como uma pedra sobre uma folha e Isadora decidiu se recolher com a desculpa de que estava com dor de cabeça. Alice preferiu não acompanhá-la, pois sabia que ela desejava um tempo sozinha, além de não ter ideia de como agir depois do que disse durante a briga.

Ainda era cedo e ela ficou por ali, por mais algum tempo, antes de se decidir a dar uma volta. Saiu dizendo que também ia caminhar, mas logo mudou de ideia e foi para a garagem, entrou no carro e tomou o rumo da cidade.

Dona Rosana passou um bom tempo olhando para os faróis na estrada escura, revolvendo memórias e antigos arrependimentos. Por fim, ela disse para Jaime:

— Estou preocupada. Não gostei da ideia de Alice pedir a ajuda dessa mulher com as máquinas, ainda mais agora que ela arranjou briga com os Rocha.

O homem soltou uma pequena quantidade de fumaça pelo nariz, fitando o cigarro.

— Mas Isadora não disse que ela não está interessada em fazer o serviço? Além disso, pensei que Alice tivesse encontrado uma empresa para fazer a manutenção.

Rosana fez um muxoxo.

— É verdade, mas Alice está encantada por ela. E, com toda a certeza, o fato dessa mulher se declarar abertamente inimiga da família Rocha a tornou ainda mais interessante e confiável para a minha afilhada.

Ele riu, ciente de que era verdade.

— Que ela admire a moça não é um problema. Qual é então? — perguntou ele. Havia sempre um “mas” com Alice.

A idosa encolheu-se no assento, as mãos apertando a xícara vazia com força.

— Eu não gostei do jeito que Alice olhou para ela, quando veio aqui. Gosto menos ainda do jeito que fala sobre ela. E estou certa que Isadora também já se deu conta disso. Elas discutiram mais cedo. Tentaram disfarçar quando eu cheguei, mas o clima era perceptível. Estão se evitando a noite toda.

Jaime fez uma pequena careta, disposto a acreditar que a patroa estava exagerando e vendo coisas onde não existiam. Entretanto, era de Alice que estavam falando.

— Hum, isso não é de hoje. Há meses que elas estão se estranhando — contou.

Ela havia percebido algo, porém não tinha certeza e acabou deixando de lado.

— Você sabe o motivo? — quis saber.

— Não é nada que a senhora mesmo já não tenha visto acontecer antes — cofiou o cavanhaque grisalho. — Não tenho muita certeza, mas acho que Alice fez besteira de novo e Isadora descobriu.

Os lábios finos da mulher crisparam-se.

— Enfim, ela já é adulta, Dona Rosana. Não dá mais para pegá-la pela mão e guiá-la para o caminho que achamos ser o certo.

— Adoraria poder fazer isso! — fez um biquinho, revoltada. — Mas a experiência me ensinou a apenas aceitar o fluxo das coisas e que interferir pode causar muito sofrimento.

Jaime concordou, ciente de que aquele era um dos raros momentos em que ela se permitia falar do passado e que não iria mais longe que isso.

— Alice é uma boa moça, mas não sabe dar valor ao que já tem. Um dia ela vai perceber. E aí já será tarde demais — Rosana reclamou.

O capataz suspirou, solidário com suas preocupações e, também, com pena da patroa. Se ela pensasse dessa maneira, no passado, não teria perdido a pessoa que mais amava. Se ela tivesse aberto o coração para aceitar Lara, talvez aquela fazenda fosse um lugar mais feliz, assim como ela própria.

— É verdade, mas só precisamos estar lá para apoiar. Os erros são dela, o aprendizado também.

— Gostaria de ser otimista, mas só prevejo dores. A verdade é que não posso dizer que estou surpresa, Jaime — suspirou profundamente. — Quando ela insistiu para que Isadora ficasse mais tempo por aqui, acreditei que iria se aquietar, que tinha encontrado alguém para amar. Mas ela não toma jeito!

O capataz também se sentia frustrado, pois gostava muito de Alice, a quem viu crescer e ensinou a lidar com a terra. E agora havia Isadora, por quem nutria um grande carinho e respeito.

— Ah, Dona Rosana, isso vai ser difícil. Alice só tem um amor nessa vida e se chama Fazenda Mimosa. Ninguém além dessas terras, é capaz de conquistar sua atenção por mais que alguns meses.

— II — 

Alice estacionou o carro diante da porteira fechada da Chácara Vista Alegre. Ela passou alguns minutos sentada dentro do veículo, antes de decidir entrar. Havia um sino para anunciar os visitantes, e também um interfone ao lado dele. Preferiu ignorá-los e abriu a porteira. Seguiu a pé, pois a casa não ficava distante.

Em determinado momento da caminhada, ela se viu diante de um cachorro. O animal rosnou, exibindo uma fileira de dentes pontiagudos, porém, não se moveu. E Alice foi obrigada a ficar encarando-o, com o coração acelerado de medo, até que sua dona chegasse.

— Sissi. — Dakota chamou, mas o cão só se moveu quando ela deu o comando: — Descansar!

A cadela soltou um pequeno ganido e correu alegremente para a dona.

— Esse carinha é assustador! — a moça respirou aliviada.

— Sissi é uma garota — fez um carinho na cabeça da cadela, que abanou o rabo, satisfeita.

— Uma garota bem grande e assustadora.

Com um gesto, Dakota a convidou para segui-la.

— O que faz aqui?

Era uma excelente pergunta. Uma para a qual Alice não tinha uma boa resposta. Ela, simplesmente, tinha pego o carro para dar uma volta e clarear as ideias na tentativa de encontrar um bom jeito de se desculpar com a namorada. Jeito que ela sabia que não existia, pois já havia extrapolado toda a boa vontade de Isadora.

Estava passando diante da chácara, quando lembrou de ter ouvido Dakota dizer que morava lá. Sequer percebeu quando parou o carro em frente a entrada.

— Não é sobre aquela história de fazer a manutenção nas máquinas de novo, é? — a forasteira quis saber.

— Não, não! Isso já foi resolvido. Eu só estava de passagem e pensei em te dar um “oi”.

A outra arqueou a sobrancelha, claramente descrente.

— Hum, neste caso, aceita uma cerveja? — indicou a poltrona de vime, ao lado da que estivera sentada na varanda. — É isso ou refrigerante. Eu não tenho o Campari que você gosta por aqui.

— Ah, não precisa se incomodar, não vou demorar — Alice se abraçou, envergonhada. O que estava pensando quando foi até ali? — Eu quero te agradecer por ter consertado a caminhonete. Foi um pouco agitado… no outro dia e não pude fazer isso.

Enquanto falava, observou Dakota com indisfarçado interesse. Na intimidade do seu lar, a forasteira trajava-se apenas com uma calça moletom e top pretos, deixando à mostra a musculatura definida, grande parte da tatuagem nas costas e o início de uma tatuagem no quadril, que despertou sua imaginação.

Dakota sentou, pegou a cerveja que repousava sobre o tampo da mesinha ao lado, tomou um gole e sorriu.

— É uma maneira de descrever. Eu, por outro lado, achei uma tarde bem agradável.

Alice franziu a testa, rememorando a palavra “louca” que Isadora usou com tanta ênfase, uma hora atrás. Ela discordava e ali estava outro motivo para terem discutido naquela tarde. Não foi a razão principal, mas sua recente admiração pela forasteira acabou sendo pautada pela namorada. 

Ela reconhecia que era uma mulher difícil de namorar, e nem sempre tomava as melhores decisões para o seu relacionamento. E era exatamente por isso, que se sentia tão frustrada naquela noite.

— Você parece bem relaxada para alguém que anda provocando o homem mais poderoso da região.

— Não há nada para temer em Silvestre Rocha. Na verdade, é ele quem deve ter medo de mim.

Tomou outro gole da sua cerveja com um riso anasalado. Uma gota deslizou pelo seu queixo e escorreu pelo colo, atraindo o olhar de Alice como se fosse um ímã. Ela fingiu não perceber, porém perguntou:

— O que você quer aqui, Alice? De verdade.

A moça se endireitou na poltrona.

— Eu não sei — disse por fim. — Eu tive uma discussão com Isadora e agora estou relutante em voltar para casa e passar o resto da noite no mesmo quarto que ela sem conseguir olhá-la. Então, resolvi sair sem rumo e arejar as ideias. Acabei parando aqui.

Dakota esticou as pernas longas, girando a garrafa entre as mãos.

— Você não vai me acusar de estar interessada nela, vai? Porque já passei por isso com Isadora e pensei ter deixado as coisas claras.

A fazendeira fitou os próprios sapatos, envergonhada.

— Parece que você já está bem ciente dos ciúmes dela. Desculpe por isso.

— Um pouco. Mas pelo o que ouvi por aí, sobre as suas aventuras — arqueou os lábios — a desconfiança de Isadora não é infundada.

Esfregando os cabelos com as mãos nervosas, Alice soltou um resmungo ininteligível.

— Essa cidade, essas pessoas! Às vezes, os odeio!

— Cascabulho é apenas mais uma cidade do interior, onde todos se conhecem e nada acontece. As fofocas são naturais. Se você se deixar levar por elas, nunca terá paz.

— Acho que vou aceitar aquela cerveja agora. — Descansou o queixo na mão. — Prometo que vou embora depois dela.

Um sorriso delicado delineou os lábios de Dakota, antes dela ir pegar a bebida. Aproveitou para trazer outra garrafa para si, ainda tentando compreender a presença da fazendeira em sua casa. A sensação que tinha era de que, desde que pisou em Cascabulho, a Fazenda Mimosa estivesse tentando atraí-la.

Entregou a garrafa para a visita e voltou a sentar. Em sua ausência, Alice aproveitou para passar os olhos pelo lugar. Ao lado da casa, havia uma picape estacionada e, ao lado dela, a moto. Em um canto do alpendre, tinha um saco de areia pendurado, o que lhe deu uma boa ideia de como Dakota conseguiu aqueles músculos.

Todo o resto parecia igual ao que se recordava de visitas anteriores ao antigo proprietário. Ele havia falecido três anos antes e a família decidiu se mudar para a cidade.

— Você alugou a chácara ou é a dona? Pergunto porque quando o senhor Bento Rodrigues faleceu, algumas pessoas procuraram os familiares com uma proposta pelo terreno, mas foi informado que a chácara havia sido vendida há anos e que o novo dono permitiu que continuassem morando nela.

— Isso importa?

— Não. É apenas uma curiosidade boba — ficou sem jeito.

A motoqueira descansou o queixo na mão, pensativa.

— É uma curiosidade justa, ante a minha vinda repentina para cá e outras coisas. Este lugar me pertence, Alice. Cada palmo dele está em meu nome.

Ela demonstrou certa tristeza ao concluir:

— Ele foi um presente, o qual resolvi desfrutar tarde demais.

— Um baita presente! — não escondeu a descrença. — Quem te deu devia gostar muito de você. 

Dakota pareceu se perder em pensamentos por um instante, antes de tomar um gole longo de cerveja.

 — O nome dela era Graziella.

Alice não deixou de notar que usou o verbo no passado e arrependeu-se de ter perguntado, pois a dor dela era tão transparente que, por um momento, a mulher forte e determinada que colocou Donato Rocha para correr do seu bar, desapareceu.

— D-desculpe perguntar, não queria fazer você lembrar de coisas tristes — bebeu um gole grande da cerveja que tinha nas mãos e reprimiu a vontade de fazer uma careta, pois não gostava mesmo da bebida.

— Pensar na Grazi não é reviver memórias tristes, pelo contrário. Ela está em mim, no coração, na cabeça, na alma… — a tristeza em seu semblante se dissipou.

Mostrou um sorriso diferente de todos os que Alice já a tinha visto dar. E a fazendeira sentiu um pouco de inveja dele, pois estava certa de que nunca encontrou alguém capaz de fazê-la sorrir dessa forma, nem mesmo Isadora.

E enquanto pensava nisso, o silêncio voltou a tomar o ambiente, interrompido apenas pelo vento que balançava as árvores. Alice limpou a garganta e confessou:

— Eu cometi um erro há algum tempo e Isadora me pegou com a mão na botija, por assim dizer. Não poderia negar o meu crime nem se quisesse. Nós brigamos, depois apenas discutimos e, no fim, ela me perdoou. Pelo menos, foi o que disse. Desde então, nossa relação vive numa espécie de corda bamba. Tem dias bons, dias ruins e dias muito ruins.

A atenção de Dakota voltou a se prender nela.

— É o que acontece quando a confiança é abalada — foi seca, recordando a forma como Isadora a acusou de estar interessada em Alice. Quis saber, quase certa de que a resposta seria positiva: — Você fez de novo?

— Sim, eu fiz de novo — envolveu a garrafa gelada com ambas as mãos, a vergonha queimando sua face. — Na verdade, fiz isso hoje à tarde. E acho que estou fazendo agora, também.

O olhar de Dakota endureceu e ela apressou-se a se explicar.

— Não me entenda mal, estou apenas me referindo ao fato de que corri para outra mulher, em vez de sentar e resolver os meus problemas com a minha namorada. E agora, você está me julgando.

— Hum — expulsou o ar pelas narinas, deu de ombros e bebeu um pouco mais. — Você já entendeu que sou adepta do romance e da monogamia, mas não me acho no direito de julgar os outros nesse quesito.

— Em outras palavras, não concorda com o que fiz.

— Não, eu não concordo.

— Não sei porquê, Dakota, achei que poderia pensar diferente.

A outra riu alto.

— Isso foi alguma tentativa de me cantar ou apenas uma visão estereotipada sobre a minha aparência?

A vergonha voltou a cobrir o rosto de Alice com um tom vermelho e ardente.

— Definitivamente, a segunda opção. Porém, estaria mentindo se dissesse que não te acho interessante e atraente. Uma coisa terrível para se dizer diante do que acabei de confessar.

— E é aqui que a nossa conversa acaba, Alice.

— Nossa! Você quase faz parecer um crime, uma mulher te achar atraente.

— Não se trata disso. Só acho que já está na hora de você ir para casa, conversar com a sua namorada e resolver as coisas entre vocês, porque é óbvio que você não quer mais estar nessa relação.

— Tanto assim? — suspirou.

— Ao meu ver, isso deveria estar claro para você a partir do momento em que decidiu trair Isadora pela primeira vez.

— E se eu não quiser terminar?

Era a pergunta que andava evitando se fazer há um bom tempo.

— Isadora é uma pessoa maravilhosa, é inteligente, carinhosa, companheira, atraente e eu sou louca pelo que fazemos na cama, mas já não quero estar com ela assim. A culpa é minha, eu sei. Contudo, estamos juntas a mais tempo do que já estive com qualquer outra, me acostumei a tê-la por perto e não quero deixar de vê-la.

— Agora você está sendo cruel e egoísta.

— Com certeza, também pareço uma idiota por vir falar da minha vida amorosa com uma mulher que mal conheço.

Dakota a acompanhou no riso, porém se mostrou compreensiva:

— Às vezes, tudo o que precisamos é conversar com alguém que está fora da situação. Mas não leve tudo o que digo tão a sério. Eu tenho uma grande lista de pecados sobre os ombros.

— Não tenho a menor dúvida disso. E um deles é se recusar a me ajudar na fábrica — brincou.

— Achei mesmo que não fosse falar sobre isso.

— Não resisti! Mas não precisa se preocupar. Ontem recebi um telefonema milagroso. Uma empresa nova, que está tentando conquistar clientes e com um orçamento que cabe no meu bolso.

— Que bom, Alice.

— Pois é, fiquei me perguntando como pude ser tão sortuda. Sabe, sentada aqui, conversando contigo durante esse tempo, percebi que o sujeito no telefone tinha um sotaque bem parecido com o seu.

— Muita gente tem — fez pouco caso e algo nisso fez Alice ter ainda mais certeza de que ela a ajudou, mesmo que mal se conhecessem.

— Verdade. Todavia, espero que o meu anjo da guarda saiba que estou muito agradecida pela sua intervenção.

— Um brinde a isso — Dakota encostou sua garrafa a dela.

Depois disso, Dakota terminou sua cerveja em silêncio e foi pegar outra. A de Alice mal tinha chegado à metade, contudo, ela decidiu que tinha bebido demais e era hora de voltar para casa. Estava se sentindo mais leve depois daquela conversa e, também, satisfeita por conhecer um pouco mais sobre a forasteira. Agora, fazia muito sentido que ela e Tonho fossem amigos. Ambos tinham o dom de escutar.

— Eu te acompanho até a porteira — Dakota dizia, quando Sissi se colocou de pé e começou a rosnar. Imediatamente, ela pegou o celular e apagou as luzes da varanda.

— Sissi, fica! — ordenou.

Por um momento, Alice achou que a cadela estava rosnando para ela, novamente, mas logo ficou claro que sua atenção estava na estrada além das palmeiras e árvores frutíferas que ladeavam o passeio até a casa. Imóvel, no escuro, espichou o olhar para a tela do celular de Dakota, enquanto o dedo dela deslizava, mudando a visão das câmeras que cercavam o lugar. A fazendeira não tinha reparado nelas quando chegou, graças à escuridão.

No aparelho, observaram uma picape estacionada à frente do seu carro. A tela seguinte revelou o avanço de quatro homens pela propriedade, todos armados. Dakota guiou Alice até o seu quarto e mandou que ficasse agachada. Então, abriu uma gaveta e retirou de lá duas pistolas.

— Saia pelos fundos, não vai demorar.

— Está louca? Precisamos chamar alguém, Dakota.

— E quem seria esse alguém?

Alice bufou. Embora tivesse uma delegacia, Cascabulho não tinha policiamento. O prédio só era usado uma vez por semana, quando um delegado vinha da cidade vizinha, acompanhado por um soldado para dar um plantão de 24h, ou quando um crime grave ocorria e era necessário o envio de uma diligência para a cidade. No resto do tempo, os cascabulhenos estavam por sua própria conta.

— Aff! Ao menos me dê uma dessas — a fazendeira apontou para as pistolas e Dakota lhe entregou uma, guiando-a até a cozinha, onde havia um porta. Ela indicou o jardim e mandou Alice se esconder entre as plantas.

— Vai ficar tudo bem — ela piscou de um jeito que Alice achou charmoso demais para uma situação daquelas.

— Espero que a sua confiança seja equivalente às suas habilidades — bufou, antes de sair. — Você tinha que provocar aquele puto do Silvestre Rocha?

— E de que outra maneira eu conseguiria pegar os assassinos do Tonho? — Dakota retrucou, então apagou o resto das luzes. Através das câmeras, viu os homens se dividindo. Dois percorreram a lateral da casa em direção à porta dos fundos e a outra dupla se dirigiu para a porta da frente. Assim que pisaram no alpendre, Sissi atacou.

Surpreso com os berros de desespero do companheiro, o segundo invasor não percebeu a aproximação de Dakota, que quebrou uma garrafa de cerveja na sua cabeça. Tonto, o homem recebeu uma coronhada no rosto e tombou para a frente, inconsciente.

— Hum, amadores — ela resmungou, pegando a arma dele.

— Por favor, tira esse bicho de cima de mim! — disse aquele atacado por Sissi. Ferido e sangrando muito, ele ficou imóvel, ao passo que a cadela rosnava sentada sobre o seu peito.

— Sissi, posição! — Dakota ordenou e avisou ao homem. — Se você se mexer, ela rasga a sua garganta — chutou a arma dele para longe.

Ela deixou o sujeito gemendo de dor e pavor, então entrou na casa. Caminhou até a cozinha, escondeu-se atrás da porta e esperou.

Escondida no jardim, Alice ouviu gritos, latidos e rosnados oriundos da frente da casa. No entanto, a dupla de invasores, alimentados pelo fato de não terem ouvido tiros, continuou sua rota em direção à porta da cozinha. Quando eles entraram, Alice saiu do esconderijo, planejando agir.

Quando ela chegou à porta da cozinha, uma arma passou deslizando pelos seus pés. Ela entrou e encontrou um dos invasores desmaiado, o revólver dele estava jogado debaixo da mesa e seu braço foi retorcido até uma posição estranha.

Ela fez uma careta horrorizada ao imaginar a dor dele.

O outro invasor não se encontrava em situação melhor. A arma que vira deslizar até o exterior da residência, pertencia a ele que, naquele momento, estava em posse de uma faca de cozinha. Ele avançou para Dakota, que atirou uma cadeira nele e, sem cerimônia, pegou a pistola na cintura e atirou no joelho dele, pondo fim ao combate.

A forasteira sorriu para Alice, ignorando o choro do homem, e disse:

— Nunca leve uma faca para um tiroteio.



Notas:

Demorei um pouco a postar, pois fiquei doente.

Espero que estejam tendo um excelente Dia das Mães.

Beijos e xêros!




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2 Respostas para 4. NUNCA LEVE UMA FACA PARA UM TIROTEIO

    • Oi!

      Obrigada pela preocupação, LeSuh!
      Estou bem melhor agora.

      Espero te reencontrar nos próximos capítulos!

      Beijos!

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