CORRENTES

Capítulo 2

Capítulo 2
Novamente, a menina da cozinha batia à porta, trazendo uma bandeja com legumes assados e pedaços de faisão. Atrás, entrava outra menina com os pratos, talheres, uma garrafa de vinho e uma jarra de água. A rainha pediu para que elas a acompanhassem e esperassem na porta do quarto da prisioneira. Etzel abriu a porta com cuidado e espiou cautelosamente, antes de entrar. A princesa estava sentada numa poltrona, diante da janela aberta, porém gradeada, e de costas para a porta. 

— Pode entrar, rainha Etzel. Não vou lhe atacar… por agora…

As palavras faladas cuidadosamente e, a percepção da sua presença, deram à rainha a certeza de que Megan era uma guerreira bem treinada. 

— Não pensei que o perfume da minha água de banho fosse tão forte. Raramente percebem a minha chegada em algum recinto. 

Etzel jogou a isca para saber se era o perfume que a denunciara para a princesa. Este era um artifício que a própria rainha costumava utilizar para perceber a presença de alguém chegando, sorrateiramente. Tinha o olfato aguçado e, quando era bem jovem, seu grande mestre de armas a ensinou como se beneficiaria treinando este sentido. 

— Não é forte, mas consegui perceber.

A princesa falava sem olhar para a rainha. Permanecia vislumbrando a paisagem através da janela. Etzel entrou primeiro para averiguar se havia alguma armadilha montada, antes de permitir que as meninas colocassem os pratos e a comida na mesa. Após a mesa posta, deixou que as garotas saíssem e mandou que os guardas trancassem por fora, puxando a trava para trancar por dentro, também. Não facilitaria para a esperta princesa-general.

— Vejo que os cuidados redobraram; por quê? — Perguntou Megan.

— Não me leve a mal, princesa Megan, mas você não é a garotinha meiga, cuja imagem seu pai se esforça em passar. Seguramente, é mais inteligente que a metade do meu exército.

— Me lisonjeia com toda a certeza, rainha Etzel, mas como elogio é bem fraco, porque seguramente, sou mais inteligente do que quase todo o meu exército.

Megan se levantou, virando-se de frente para a rainha. Olhou a mesa primorosamente posta. Pratos, taças e talheres em metal polido, dispostos harmoniosamente, e uma comida que cheirava bem e parecia apetitosa. Sorriu levemente.

— Isso sim é um agrado à minha pessoa.

Etzel não conseguiu conter o riso frouxo que precipitou por seus lábios. 

“Então, além de bonita, guerreira e inteligente, ainda tem humor, hum?! — Pensou.

— Vejo que acertei em trazer o jantar. Mas, talvez, para a sua infelicidade, não comerá sozinha. Me juntarei a você. — Falou, ainda sorrindo.

— Não é uma infelicidade. Seria se você fosse alguém desagradável, como o conselheiro e o comandante de meu pai. Não a considero no mesmo patamar que eles, pode apostar. E olha que meu pai se esforça muito para que eu aceite o comandante como noivo.  

A princesa falava num tom leve, se encaminhando em direção à mesa. Parou de frente para a cadeira e encarou Etzel. A rainha olhou de lado, estreitando os olhos, sutilmente, tentando perceber o que a outra mulher queria com aquela atitude. Sorriu, após Megan olhar a cadeira e voltar seu olhar novamente para a rainha, numa expressão inquisitiva. Etzel balançou levemente a cabeça, não acreditando no que a princesa estava insinuando.

“Eu não acredito que ela está flertando comigo. O que essa mulher pretende? — Pensou desconfiada. — Muito bem. Vamos dançar a dança dela e ver até onde vai.”

Adiantou-se e puxou a cadeira para que a princesa sentasse, não desgrudando os olhos das mãos e dos talheres. A sensação de Etzel é que Megan poderia, a qualquer momento, pegar alguma coisa que pudesse usar como arma e atacá-la. Estava num jogo perigoso. Tinha que segurar o sentimento galopante e crescente pela princesa, mas sabia que o despertar do “Dhulá” poderia trazer consequências físicas e até mudança de temperamento, se não correspondido. 

A princesa Megan se sentou, puxando o guardanapo para seu colo, enquanto Etzel se acomodava. Pegou os talheres, e sorriu de lado, vendo que seus gestos eram observados pela rainha, atentamente. Havia se admirado com a postura de Etzel. Sempre escutara coisas horríveis a respeito do povo de Daear, mas também ouvira as histórias de sua mãe. Uma mulher nobre que fora calada pelo pai, quando teve que se sujeitar ao casamento arranjado. O avô dela era intolerante e misógino. Graças à mãe, Megan sabia quando baixar a cabeça para conseguir o que queria com seu próprio pai, porém a gastura em determinadas situações deixava seu estômago em acidez, não permitindo que ela fosse tão submissa. 

Lia muito, perguntava bastante e, principalmente, raciocinava quando se deparava com situações inusitadas. Isto lhe deu a pecha de irreverente e impetuosa. Adjetivos nada bons para uma mulher, aos olhos do seu reino. O ápice de sua rebeldia se deu quando entrou para o exército. Sim, era permitido mulheres entrarem no exército, mas nunca houve uma nobre antes dela. As mulheres no esquadrão de Helad eram escória. Aquelas que nada tinham e não queriam se prostituir. Chocou seu pai, chocou o conselho de Helad. Tiveram que assumir uma nova postura, pois não poderiam tratá-la, ou até as outras mulheres, da mesma forma, depois que ela entrou. 

Foi duro. As provas que lhe impuseram foram piores às que, talvez, exigissem de qualquer outro. Queriam que desistisse. Não desistiu, e o pior, não puderam estuprá-la, como faziam com muitas. Ela era a filha mais velha do rei.

No entanto, Megan sofreu demais, vendo que sua atitude, fez com que muitas mulheres do exército sofressem estupros, por parte de soldados. Quase desistiu, até que  um dia, em seus braços, acudiu uma mulher atacada, dentro do próprio quartel. Ela lhe dissera: “Não desista de nós. Você deu um alento para o que vivemos; se continuar, um dia poderemos servir em paz”. Retornou de seus pensamentos e percebeu que era observada pela rainha. 

— Não estou pensando nada relativo a este jantar, se é o que está imaginando. — Pegou um pedaço de faisão assado e colocou no prato. — Estava pensando se é ou não verdade o que disse sobre a invasão.

A rainha se serviu em silêncio, e depois pronunciou:

— E a que conclusão chegou?

— Quer que eu lhe dê informações a troco de nada? Está certo. Poderia me deixar com fome, num calabouço e me torturar, mas não garantiria a verdade. Seu método de extrair informações é interessante. Sou bem tratada, colocada a par da situação e — comeu um pedaço de carne, olhando nos olhos da rainha — sou cortejada. Percebeu que não sou uma mulher comum. Compreendeu que não aprecio sexualmente homens. Mas você acha que trairia minha nação por isso?

Etzel estreitou os olhos. Era uma revelação fascinante. A princesa tinha interpretado a atitude dela de forma errada, mas interessante do mesmo jeito.

— Não. Até porque acho que trair a nação é algo terrível. Não confiaria em alguém que traísse a própria nação, principalmente por algo tão vil, mas…

Os olhos se encontraram, novamente.

— Mas, o quê?

— Mas não seria traição se você se encantasse com meus galanteios e apenas isso. — sorriu. — Ou…

— Ou?…

— Ou cedesse aos meus galanteios, principalmente se tivesse certeza de que foi traída primeiro pela sua nação.

— Mmm… Entendo. — Megan sorriu, cínica.

— O que entende? — A rainha devolveu o sorriso.

— Entendo que ceder aos seus galanteios vem sempre em primeiro lugar na sua fala. Isto quer dizer que, eu ceder a você é o que mais importa, neste momento, que qualquer outra coisa.

Megan abriu mais o sorriso, levando Etzel a balançar a cabeça em sinal de negação, sustentando a expressão jocosa e desafiadora.

— Não entendeu, não. Você me atrai e não há qualquer dúvida nisso.  Não fiz questão de negar. Mas você não está em posição de ceder ou recusar algo. Você é minha prisioneira. — Etzel falou, endurecendo a face. — Acho que me expressei mal, anteriormente. Vou esclarecer melhor numa única pergunta. O que fazem no seu reino com qualquer mulher que seja espólio de guerra, hum?

Os olhos de Megan arregalaram em sinal de compreensão. Aquilo que ela mais repudiou na sua vida, dentro de seu exército, vinha de encontro a ela. Sempre odiou a forma como era tratado qualquer prisioneiro em seu exército e combateu isso na medida que podia, mas não conseguiria mudar pensamentos de séculos de uma hora para outra. Em qualquer reino da terra conhecida, era sabido da crueza com que eram tratados os prisioneiros em Helad. Não concordava, mas não podia negar que ocorria. Estava perdida.

— Você não faria isso! — Falou petrificada. — Não pode me tirar pelo que fazem em Helad! Não sou assim! Nunca pratiquei tais atos! — Gritou. — Jamais concordei com isso! — Berrou mais alto.

Embora Etzel estivesse fazendo um jogo com a princesa, seus pensamentos borbulhavam com as insinuações. Nunca havia sentido o que efervescia em suas entranhas, naquele momento. Sua vontade era tomar a princesa, mesmo que à força. Era uma insanidade. Sempre tivera o controle de suas ações. Sempre fora pacífica e repudiara qualquer violência gratuita e agora… Agora imaginava cenas, possuindo, tomando a princesa para si e satisfazendo sua vontade. Tomou um choque com seus próprios pensamentos e se enraiveceu, reagindo ao grito da princesa de Helad.

— Basta! — Levantou-se da cadeira, bradando e esmurrando a mesa para calar a outra mulher. — Não tome o povo de Daear pelo seu povo! — Continuou a gritar. — Embora vocês achem que somos bárbaros, não somos! Seu pai é que veio às nossas portas, por um ego maior que ele!

Megan calara diante da fúria que viu nos olhos da rainha. Escutaram batidas na porta. A rainha cerrou o punho, tentando aplacar a loucura que a acometeu. Suas emoções começavam a descontrolar e suplantar sua razão. Foi até a porta e destravou pelo lado de dentro, encarando quem tinha chamado. Era Kazar. O general a olhou e se assustou com a sua fisionomia dura e raivosa.

— Desculpe interromper, Etzel, mas Helad invadiu a oeste e a leste. Dividiram-se em dois.

Etzel cerrou os olhos. Lógico que Raver não concentraria as forças de um só lado do desfiladeiro. Poderia levar anos numa guerra se o fizesse, dada as condições do território de Daear.  A rainha pensava que, talvez, ele tivesse mais coisas escondidas do que imaginava. Separar o exército, também, não era uma boa tática. 

— Quem trouxe a informação falou em que condições Helad atacou?

— Apenas que tinham uma guarnição muito maior do que imaginávamos. Zênite está a leste e o general Gerdal foi para oeste. Vou me encontrar com Zênite. Sairei daqui a pouco.

— Espere. Vá para meu quarto e me espere lá. Quero conversar com você antes que parta. Vamos lançar mão da estratégia anterior. Enviando um mensageiro, comunicando que estamos com a princesa e veremos o que esse verme fala. Detectaram em qual exército Raver está?

— Pela mensagem que chegou a nós, Raver não está em campanha. O comandante que está à frente do exército que nos invade pelo oeste e, a leste, é um general de exército que não conhecemos.

— Raver é um covarde. Se esconde atrás dos muros do seu reino. Não se importa com quem morra por ele, contanto que a invasão seja feita.

A rainha sentia que era observada pela princesa, pois a conversa entre ela e seu general era feita aos sussurros.

— Me espere no meu quarto, mas antes, mande chamar um garoto que atende pelo nome de Atair. Ele trabalhava nas cocheiras. Provavelmente, trará uma garota com ele.

O general Kazar estreitou os olhos, não entendendo onde sua rainha queria chegar, mas nada comentou. Achava que Etzel estava agindo estranhamente, desde que a tal princesa chegara. Pensou que talvez a ideia de raptar a filha do rei de Helad, não a agradasse, mas conhecendo sua rainha, sabia que ela faria o que precisasse para impedir que seus súditos e companheiros de armas, não perdessem a vida em uma batalha inútil.

A rainha retornou à mesa, mais calma. Sentou-se, sendo observada pela princesa de Helad. Alguns minutos se passaram sem que qualquer uma delas falasse nada, fazendo com que o jantar ficasse cada vez mais constrangedor. Etzel estava sem fome, forçava engolir a comida, assim como a princesa. A rainha suspirou forte e pousou os talheres no prato, encarando a sua prisioneira.

— Você não sabe nem um terço das coisas que seu pai faz, não é? — Observou a expressão que Megan forçava. Queria passar segurança em seu olhar. Continuou a explicação. — Meus pais sofreram uma emboscada há anos, quando fui coroada em Daear. Na verdade, eles morreram por estarem em uma diligência comigo, em direção a Zeider. A intenção real era me matar. Eu escapei por pouco, pois meu general soube da emboscada através de nossos espiões e comandou um regimento para nos salvar. Eu fui amarrada e vi tudo acontecer, porque o precioso comandante de Helad, seu pretendente, queria me ver sofrer vendo a morte de meus pais, antes de me matar. Ele ria, enquanto cortava os membros de meu pai e mandou que soldados estuprassem a minha mãe. Para sorte dela, o regimento chegou e ela morreu sob um punhal lançado em seu peito. Não morreu sob os horrores que seu comandante planejou. Eu deveria te odiar, não acha?

Megan fechou os olhos, apertando-os fortemente. Não era difícil acreditar na história da rainha, dado o histórico que passou a conhecer do comandante, depois que entrou para o exército. Sabia que seu pai sempre planejou a morte de Etzel e, cada vez que pensava sobre o assunto, menos compreendia o ódio que ele carregava.

— E não me odeia?

Perguntou num sussurro e novamente a rainha suspirou.

— Deveria? Alguma vez já tentou me matar, ou atentou contra a vida de um Daearano sem motivo?

— Não! — Megan falou, enfática. — Olha, você pode não acreditar, mas eu não sou a favor desse ódio entre as nossas nações, apenas… Tento lutar da forma que posso para acabar com essa rivalidade, mas faço parte de poucos que pensam como eu, em Helad.

— Eu acredito em você, princesa, e por isso, vou soltá-la.

— Vai me soltar? Mas… mas não disse que…

— Já disse para não me comparar com outros que você conhece. Foi um erro tê-la raptado e não vou adiante com isso.

Etzel fechou os olhos. Estava abrindo mão de uma negociação, mas não suportaria ter que jogar com a vida da princesa. O despertar de “Dhulá” tomava seu corpo, cada vez mais, e não demoraria a sentir dores profundas. Se ela estivesse longe da princesa, talvez conseguisse controlar seus efeitos. De que adiantaria uma negociação, que poderia ser um fracasso, se não estivesse inteira para lutar no campo de batalha?

Megan olhava para a rainha com admiração. Não sabia o que estava ocorrendo consigo. Deveria ter medo daquela mulher, desconfiar de suas atitudes, mas não conseguia. Começava a nutrir um sentimento de empatia e bem-estar ao lado dela. Algo forte que estava difícil de conduzir dentro de si, fazendo com que seus pensamentos turvassem. Parou, momentaneamente, para apreciar o semblante expressivo e seguro e de beleza singular.

“Pelos Deuses! Estou me sentindo atraída por ela!” 

Pensou num átimo, se reportando às lembranças de conversas com sua mãe. “Filha, não deixe que ditem sua vida. Não se case com quem não ama e lute pelo seu amor verdadeiro. Nada pode ser pior do que um casamento arranjado. Morremos aos poucos, mesmo antes da vida se esvair de nosso corpo”. “É. Mas acho que minha mãe não imaginava que eu pudesse me apaixonar pelos nossos inimigos…” — Concluiu seu pensamento.

A rainha se levantou, fazendo com que Megan a seguisse no gesto. Olharam-se, ambas pesarosas, todavia envoltas numa aura de fascínio e apreciação.

“Ah, Megan, se eu tivesse lhe conhecido em outra situação…”

— Bom, vou preparar as coisas para que a deixem em segurança na fronteira.

A rainha se virou para sair.

— Espere! — Megan se aproximou. — E se eu lhe ajudar por minha vontade na negociação?

— Por que você faria isso?

Etzel inquiriu, esperançosa. Seu coração acelerou com a proximidade do corpo da outra. Cerrou novamente os punhos, para conter seu ímpeto de segurá-la e colar seu corpo ao dela. Estava ficando insuportável se controlar. Tinha que sair dali, mas a proposta de Megan a fez pensar nas vantagens que a ajuda da princesa traria e não poderia falhar com o reino.

— Porque pensei muito no que me disse e, realmente, meu pai seria capaz de me trair para atingir seu objetivo. Mas quero ter certeza do que está falando. Não vou auxiliar Daear e ser tachada de traidora, se meu pai não fez o que disse. Muitos reinos não sabem sobre nossas leis. Mas lhe garanto que, se meu pai me enganou da forma que me falou, e isso for comprovado, ele poderá ser destituído. Enganar um ente dentro da realeza, para ter proveitos políticos, é considerado perfídia de sangue.

— E como quer que eu lhe prove? Não tenho como fazer isso.

— Você me soltaria, certo? Que tal enviar uma mensagem ao meu pai, com a negociação de troca? Esperarei pela resposta e você trará para que eu leia. Se o que diz é verdade, meu pai se recusará a fazer a retirada e a troca.

— Isso não prova nada. Ele pode ter lhe enganado, mas não querer você com ele é outra história.

— Acredite, rainha, se meu pai tramou isso, não irá querer desistir. Principalmente, porque ele sabe que não conseguirá fazer comigo o que meu avô fez com a minha mãe, dando-a em casamento. A verdade é que sou um estorvo para ele.

Esta constatação por parte da princesa arrefeceu os sentimentos de Etzel. Era triste pensar num pai que fizesse tais escolhas.

— Certo. Vou providenciar então, mas você ficará sob custódia. Não vou deixá-la presa, porém não poderá sair das dependências do castelo. Os guardas serão alertados para vigiá-la e haverá locais que não poderá acessar. Entenda, enquanto eu não estiver segura de que está falando a verdade…

— Eu entendo. Não esperaria outra atitude. Você está correta. Como soberana, tem que zelar pela segurança de seu reino.

— Aguarde aqui, até que as ordens sejam dadas. Quando isto ocorrer, alguém virá liberar a porta do quarto.

— Etzel, eu a verei… ah, deixa para lá. Você tem uma guerra para se preocupar e um exército a liderar.

Megan baixou a cabeça, momentaneamente, e se virou de súbito, ficando de costas para a rainha. Etzel a olhou e, mais uma vez, se conteve. Seu corpo tremia e o suor começou a brotar em sua testa. Virou-se abrindo a porta de pronto, cerrando-a atrás de si. Deixou-se relaxar e as dores que começavam em seu corpo, vieram fortes, fazendo-a dobrar sobre o próprio tronco.

— Rainha Etzel!

Os soldados da porta a ampararam com dificuldade, dado o peso de seu corpo.

— Me ajudem a chegar em meu quarto. — Falou com dificuldade.

Quando entrou, Kazar a esperava juntamente com Atair e uma garota que Etzel não conhecia. Estava melhor, mas os soldados e os outros três, se adiantaram para ajudar a rainha a se deitar.

— Etzel, o que houve?  — Perguntou, alarmado, o general.

— Eu só precis… só preciso de um tempo, Kazar. Logo estarei bem.

— Como logo estará bem?! O que está acontecendo, Etzel? Você foi envenenada por aquela víbora! Guardas…

— Não, Kazar! — Etzel segurou o general pela gola, trazendo-o para perto dela, com dificuldade. — Não fui envenenada. Eu sei o que está acontecendo comigo. Espere só um minuto, por favor.

Os guardas retornaram aos seus postos. Poucos minutos depois, Etzel narrava a conversa com Megan, não permitindo que Kazar retirasse Atair e a garota do quarto. Ordenou que ele desse as coordenadas, a respeito da princesa e do mensageiro e, em seguida, retornasse ao quarto. Quando Kazar voltou, Etzel reuniu os três. Sua vida seria posta nas mãos de um companheiro de armas e dois desconhecidos. Quando a guerra terminasse e dependendo de como terminasse, saberia se tinha feito a escolha certa, ou se havia cravado um punhal no próprio peito.

— Como se chama, menina?

— Dagmar, senhora.

— Então, Dagmar, preste bem atenção. Essa mesma conversa tive com Atair. Você será minha escudeira. Não quero uma dama de companhia. Quero uma mulher aguerrida que esteja ao meu lado, fielmente. Se me for fiel, você terá a graça de Daear; se me trair, será decapitada, junto com Atair. O mesmo vale para ele. Atair irá atuar junto com você, mas por agora, ele terá a missão de levar uma mensagem ao rei Raver de Helad. — Olhou para ele. — Essa provavelmente é a missão mais importante da guerra, Atair. Estará em suas mãos o destino dos nossos próximos passos. Quando entregar a mensagem ao rei, veja reações dele. Repare no que fala com os conselheiros e peça para que a resposta para nós, seja dada por escrito, pois se você não chegar até o entardecer de amanhã, eu atacarei com a arma de Torvã!

Todos arregalaram os olhos. A arma de Torvã não era mencionada dentro do reino de Daear, desde a rebelião.

— Etzel…

— Não questione, Kazar. Apenas faça com que Atair chegue a Helad e volte em segurança. Mande os melhores soldados que permaneceram aqui, para escoltá-lo com a bandeira de trégua. Vista-lhe com a roupa de mensageiro real. O rei Raver é um cretino, mas não seria leviano a ponto de matar um esquadrão inteiro com a bandeira de trégua e as fardas de mensageiros, sob os olhos do seu reino. Não seria bom para ele, se depois chegasse a notícia de que sua filha primogênita estaria morta, por ele ter recusado ou exterminado o esquadrão que levava a mensagem.

— Certo. Mas voltarei assim que a missão tiver partido. Você tem muito a explicar, Etzel.

A rainha assentiu e se deixou cair novamente na cama, após os dois homens terem saído. As dores aumentavam e sentia que seu corpo começava a arder em febre. Temia não conseguir controlar os efeitos de “Dhulá”. A dor no ventre aumentava em proporções assustadoras. Dagmar foi a seu encontro, amparando-a. A mulher de olhos negros e pele da cor da noite a amparou, acalentando o corpo no seu regaço.

— Shhiii. Acalme-se. Isto vai ser dolorido, mas passará.

— O que sabe…? Por que diz isso? Não sabe o que tenho.

Etzel falava débil, sob o véu da dor e da tremedeira que a assolava.

— Eu sei mais do que possa imaginar, minha rainha. Minha mãe era Aterai. Vi meu irmão passar pelo “Dhulá”. Foi quando ela nos contou que nosso “Dhulá” seria curto e não tão intenso, mas o dela, levou três dias, até que teve o encontro com meu pai. Eles se amavam e se amaram.

— Mas eu não tenho o amor de meu “Dhulá”. Não sei quantos dias suportarei. Eu sou a rainha e estou em guerra. Como poderei comandar assim?

— Foi a princesa?

— Hum?! Como sabe?

— Pelas conversas. Ela se mostrou importante na sua fala. — Dagmar sorriu. — Vai aprender que sou boa observadora, mas não se preocupe. Devo minha vida e meu destino a senhora. Atair me conhece há muito tempo. Ele sabe de minhas aspirações e se a senhora não desse uma chance a ele, também não tiraria de minha vida morosa e, angustiadamente, pacata. Serei eternamente grata aos dois, minha rainha. Agora buscarei algumas ervas que, feitas em infusão, deverão abrandar sua dor.

Etzel desmaiou, diante da dor intensa. 

****

Dagmar carregava uma chávena fumegante, quando foi segurada por uma mulher, antes de entrar no quarto da rainha Etzel.  Olhou a mão em seu braço, contrariada. 

— Desculpe-me. — Soltou-a. — Meu nome é Megan e procuro a rainha Etzel. Preciso falar com ela e ninguém me atende ou diz seu paradeiro.

— E por que acha que eu falaria, princesa Megan?

Dagmar desafiou a forasteira. Queria saber as intenções da princesa. Sua mãe havia lhe falado bem mais sobre o despertar de “Dhulá”, além do que disse à rainha. Não permitiria que sua soberana sofresse mais, caso a outra não fosse uma pessoa confiável.

— Olha, posso ser a inimiga aos olhos de vocês, e compreendo, mas ela… — Exalou o ar de seus pulmões, fortemente. — Deixa, não sei o que está acontecendo comigo… — falou em desânimo.

Dagmar estreitou os olhos, tentando interpretar as expressões da outra mulher. 

— Só me diga uma coisa, princesa. Se você fosse eu, e a vida de minha rainha estivesse em suas mãos, o que faria?

Megan mirou-a, compreendendo sua colocação. Deixou seus ombros caírem em desânimo. Ela não era a pessoa certa para exigir nada naquele reino. Era a inimiga de longa data. Só não entendia a angústia pela qual estava passando e o desespero de sentir que a rainha corria perigo. Era como se estivesse sufocada e seus pensamentos fixos em um único rosto. Etzel.

— Eu não deixaria a inimiga, jurada de séculos, ter acesso a ela.

Dagmar sorriu internamente, sem deixar transparecer em seu rosto. Continuou sua inquisição avaliativa.

— Então, sabe por que ninguém lhe fala a respeito da rainha. Sua resposta está dada. Mas, me responda uma outra coisa, e faça com sinceridade. Dependendo da resposta, posso falar para a rainha que quer uma audiência com ela.

Um brilho no olhar de Megan acendeu. Meneou a cabeça em aceitação ao questionamento.

— Se soubesse que a rainha tem uma doença que poderia matá-la e dependesse de você para salvá-la, mesmo sendo sua inimiga, o que faria? Não adianta mentir, pois eu saberei a verdade! — Falou imperiosa. 

 Megan perdeu o controle de suas ações. Segurou os ombros da mulher que a inquiria e sacudiu, desorientada.

— O que Etzel tem?! — Gritou. — Fale!

Guardas do corredor vieram socorrer a escudeira da soberana, segurando a mulher, descontrolada. 

— Deixem-na! — Gritou Dagmar. — Ela é a convidada da rainha, esta noite! — Bradou.

— Mas ela… — tentava falar o guarda.

— Ela se descontrolou porque a provoquei. — Deu desculpas pela atitude de Megan. — Tenho as mesmas desconfianças que vocês, com relação à ela, mas é a vontade da rainha que ela a acompanhe no chá da noite. — Concluiu Dagmar.

Os guardas soltaram a princesa, voltando a seus postos, taciturnos. Já passava da metade da noite e Kazar retornaria assim que a sua incumbência estivesse realizada.  Dagmar precisaria fazer com que a princesa e a rainha, fizessem a passagem de “Dhulá”, antes que o general voltasse e antes que a rainha entrasse em crise. Proteger o segredo do “Dhulá” e da rainha, era imprescindível. Se fosse descoberto, nunca mais os Aterais teriam tranquilidade para levar suas vidas. Seria um povo marcado por seu legado de sangue.

— Entre, princesa. 

Dagmar abriu a porta, fazendo a princesa Megan entrar e cerrou-a, logo em seguida.

— Eu havia trazido um chá calmante de dor para a rainha, mas você, — apontou para a princesa — pode acabar com o sofrimento dela. 

— Eu? Como? — Olhou a rainha em agonia na cama. — Pelos Deuses! O que aconteceu com Etzel?! Ela foi envenenada!

Megan falava alterada, enquanto corria para a cama, para segurar o robusto corpo da rainha em seus braços.

— Pelos Deuses! Sempre falam isso. Quantas vezes mais vou escutar, durante minha vida, essa frase?! — Dagmar revirou os olhos. — Já ouvi quando meu irmão entrou no “Dhulá”, já ouvi quando uma amiga fez a passagem. Ainda bem, que trepei com meu “Dhulá”, antes de acontecer qualquer coisa… — falou para ela mesma.

Dagmar se aproximou e observou o desespero com que a princesa de Helad segurava a cabeça da rainha.

— Ela não está envenenada. Entrou na passagem de “Dhulá”.

— O que é isso?!

— Escute, e eu te garanto que, se você não fizer a passagem de “Duhlá” e não for o verdadeiro “Duhlá” da rainha, eu mesma garantirei que essa guerra entre os reinos se acirrará a partir de hoje!

Megan não entendeu o que Dagmar quis dizer naquele momento, mas escutou atentamente cada palavra que ela expôs. Tempos depois da explanação, Megan se pronunciou exaltada.

— Eu não posso fazer sexo com ela nesse estado! — A princesa gritou em desespero. — Você está louca?! Ela está quase desacordada, febril e delirante!

— Quantas vezes mais em minha vida vou ter que ouvir isso? — Novamente Dagmar revirava os olhos. — Se não fizer, você a verá sofrer tanto que, quando tudo acabar, nem você saberá quem é e nem ela, quem é ela mesma! Estarão as duas insanas, entendeu? Vou guardar a porta pelo lado de fora para resguardá-las. Decida qual o destino de sua própria vida. Nisto eu não posso interferir.

Dagmar pegou uma espada, que havia trazido consigo, e colocou numa bainha que prendeu a sua cintura. Saiu e se postou na porta, pelo lado de fora. 

****

— Etzel… Etzel, acorde!

Megan dava tapinhas na face da rainha para acordá-la de seu delírio. Amparava-a em seu corpo, sobre a cama. A rainha pronunciava palavras indecifráveis. 

— Pelos Deuses! O que vou fazer? Não posso simplesmente tirar as roupas dela e fazer sexo, sem mais?! 

Entrou em desespero. Acomodou-a amparada nos travesseiros e se postou ao seu lado, acariciando seus cabelos. Inspirou forte.

— Tudo bem. Calma, Megan. — Falava para si, olhando a outra em sofrimento. — Está certo, Etzel, que eu senti por você muito mais que atração e me controlei na hora, mas esta história de “Dhulá”?! Não consigo imaginar você morta… me desespera essa ideia, mas fazer sexo com você, praticamente desacordada? Vamos… fala alguma coisa. 

Etzel abriu os olhos, momentaneamente.

— Oi, meu amor. Eu estou aqui, calma que tudo vai acabar bem…



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