Capítulo 1 –
— Me diga, Paren, por que tamanha incompetência? Por que estou cercada de imbecis?!
A rainha Etzel esbravejava em fúria. Sua terra fora invadida, ao sul, pelo povo de Helad e nenhuma sentinela havia sinalizado a invasão. Seu reino, Daear, caíra na armadilha e agora estavam desprotegidos naquela região.
— O que acha que falarei, hoje à noite, ao povo que se amontoa na praça principal para uma explicação?
— Sinto muito, minha soberana.
— Sinto muito?! É isso que me diz a respeito dessa situação?
Ela andava na sala do trono, de um lado a outro, impaciente, com uma das mãos sobre a testa. O assento real, feito em metal e estofado de couro, compunha o cenário que agora deixava a imagem da sala sombria. O corpo, extremamente musculoso da rainha, marcado pelo couro flexível de sua veste justa, dava a dimensão de sua força. Era temida na arena de combate, não só pelo aspecto físico, mas também pelas incríveis habilidades bélicas. O clã, ao qual pertencia, era reconhecido em qualquer parte da terra dos “Mirintai”, pelas características físicas marcantes. Rosto anguloso, altura pouco acima de dois metros e musculatura robusta, marcavam os traços do clã dos “Aterais”.
Daear era um reino que, há muito tempo, havia fincado suas leis na igualdade das etnias que o compunha. Fora uma terra conquistada pela rebelião dos “Remissis”; aqueles que não tinham ouro, posses ou dinastias. Uma verdadeira colcha de retalhos, tecida na força de seus sentimentos. A liberdade. No entanto, suas leis foram pautadas na rigidez para com aqueles que não queriam cooperar pela prosperidade do reino. Alguns poucos tentaram se valer da rebelião e do novo reino, para esconder seu caráter duvidoso, ou sua vida suja e manchada nos outros reinos. Para esses, a lei fora impiedosa. Quem matava, tinha sua vida ceifada da mesma forma; e quem roubava, trabalhava arduamente nas minas, para devolver o valor em dobro, a quem tinha sido lesado por este.
Etzel não colocaria seus descendentes no trono. Era um reino simples. Quando um rei morria, o povo, junto com o conselho instituído por ele, escolhia o sucessor. A escolha também era simples. Votavam pautados em algumas premissas: Era o candidato guerreiro audaz, respeitoso com o reino e os compatriotas? Era livre de qualquer acusação criminal, mesmo que não tivesse sido julgado? Era imbuído do sentimento de defesa ao reino? E as perguntas seguiam traçando o perfil de um candidato idôneo, inteligente. Não que isto isentasse o escolhido, futuramente. As mesmas leis que se aplicavam ao povo, se aplicavam aos reis. Houve um tempo em que um rei havia sido julgado pelo roubo dos tesouros do reino. Ele morreu trabalhando nas minas, pois a quantia que havia furtado, não conseguiria pagar nesta vida.
— Chame o general Kazar, agora! Quero as tropas em marcha e bloqueando o desfiladeiro de Verves, antes que consigam avançar!
— Sim, minha soberana!
O administrador a reverenciou e se retirou do ambiente, deixando a rainha sozinha na sala do trono. A sua fúria ainda não havia amainado. Andava de um lado a outro como um animal selvagem enjaulado. Há séculos que Daear não era invadido. O ódio entre os reinos era antigo. A rebelião dos “Remissis” começara em Helad, fazendo com que este ficasse mal visto, na época, por toda a extensão de terra verde. Eles nunca aceitaram Daear como um reino legítimo. Nunca comercializaram ou fizeram tratado de paz, mesmo depois de séculos.
Kazar, o general do exército, entrou na sala se apresentando.
— Minha soberana. — Curvou-se em uma mesura.
— Kazar, quero apenas uma coisa de você. Traga para mim a princesa Megan, enquanto sigo com as tropas para Verves.
— O quê?! Desculpe-me, Etzel, sempre vou apoiar você, mas sequestrar a princesa de Helad? Não somos bárbaros!
— Kazar, isto é uma guerra! Já entrou em alguma guerra? Não! E nem eu. O rei Raver de Helad está há anos planejando essa invasão. Ele não só é egocêntrico, como é inteligente. Sabe que nossas terras nos suprem em quase tudo. Não é só pelo ódio para conosco. Ele está usando essa desculpa esfarrapada para justificar seus atos. Sabemos que a sua filha primogênita é a sua fraqueza. Dizem que ela foi criada como um bibelô, para casar com algum general, que possa governar em seu lugar, se algo lhe acontecer. — Etzel inspirou fundo e continuou. — Ela não será presa na masmorra, ou algo parecido. Será tratada com dignidade, se ela se comportar. Apenas quero a supremacia da barganha, que sei que ele fará, se estivermos em posse dela.
— Não sei, Etzel… O conselho…
— O conselho tem preeminência em dias de paz. Na guerra, somos nós que decidimos e você sabe disso. Por quem você me toma, Kazar? Por alguém sem escrúpulos?
— Não! Claro que não. — Falou o general visivelmente encabulado.
— Então, Kazar, sabe que não farei nada com a princesa. Trataremos bem dela, mas agora temos que ser espertos para acabar com isso de uma vez por todas.
— Está certo, Etzel. Farei como pediu.
— Então, general, temos espiões infiltrados no castelo de Helad? Pode confiar neles?
— Sim. Quase todos os escribas do reino de Helad são nossos.
— E como não soubemos da invasão?
— Ainda não chegou nenhuma mensagem, mas, em breve, saberei e lhe passarei essas informações.
— Não terei tempo. Vou me juntar agora ao exército e partiremos assim que possível, mas me mantenha informada. Mande mensagem, avalie a situação e me traga a princesa o mais rápido que puder. Não quero perder gente nossa, em uma guerra sem sentido. Quero acabar logo com esta situação.
A rainha se aproximou do general, olhando-o de cima. Ela, seguramente, era um palmo e meio mais alta que o general e sua estrutura física o suplantava de longe.
— Não me decepcione, Kazar. O destino do nosso reino poderá depender de você. Traga a princesa e eu garanto que a guerra acaba, no mesmo instante. Conter Helad no desfiladeiro de Verves, poderá demorar e eles terão a opção de contornar, estendendo essa refrega!
Kazar assentiu e, Etzel, deixou rapidamente a sala do trono, saindo do castelo. Iria até o quartel comandar as tropas.
****
Seguiam com a cavalaria em marcha acelerada. Tentariam chegar antes do exército de Helad e provocar um deslizamento para interromper o passo do desfiladeiro de Verves. Assim, os invasores teriam que contornar o desfiladeiro, dando alguns dias a mais de tempo para que o plano de Etzel seguisse, sem qualquer problema. No entanto, quando chegaram, o exército de Helad já estava adiantado na marcha.
— Gerdal, adiante-se!
Chamou Etzel, à frente do primeiro esquadrão, para que o segundo general de seus exércitos emparelhasse seu cavalo com o dela. A armada, que seguia a pé, chegaria horas mais tarde e os esquadrões que levavam as catapultas, mais tarde ainda.
— Sim, minha senhora!
— Suba com quatro esquadrões de cavaleiros pelo caminho do costado da direita, que eu subirei com outros quatro esquadrões pela esquerda. Mas antes, quero que vá até os últimos esquadrões e ordene para que façam o deslizamento de rochas no desfiladeiro aqui no início. Rápido!
Etzel seguiu para o costado em galope apressado. Seus esquadrões a seguiam, resolutos. Olhou o outro lado da ravina e pode ver o general Gerdal comandando os outros esquadrões, subindo o costado. Esperava que o exército inimigo só os visse quando estivessem próximos, já sobre eles. Porém era algo difícil de ocorrer, dado o barulho que os cavaleiros faziam em galope. Não importava. Preferiu arriscar, já que a vantagem estava com eles.
O costado só tinha caminho pelo lado de Daear, que terminava num grande escarpado, do outro lado. Não havia como Helad ter enviado guerreiros para fazer a proteção do desfiladeiro, através do costado.
“O que esse louco planejou? Será que não vê a desvantagem que tem em entrar por aqui?”
Algo estava mal e um arrepio na nuca fez Etzel se inquietar. Parou no meio do caminho e seus esquadrões a acompanharam. Um forte grasnido de águia ecoou no ar. Era o alerta da rainha para chamar a atenção do general Gerdal do outro lado. Conseguiu ver as tropas parando e outro grasnido chegou aos ouvidos de todos. Olhou o passo e observou que o exército de Helad também parara, por conta dos sons. Chamou um batedor de seu esquadrão.
— Sim, minha rainha! — sussurrou o homem.
— Vá até o escarpado, depois da entrada do desfiladeiro, e veja o que nos espera. Vá rápido e silenciosamente. — Ordenou a rainha, noutro sussurro quase inaudível.
O guerreiro desceu do cavalo e correu na direção indicada. Seus passos eram ligeiros, no entanto, parecia que flutuava. Não era à toa que Aden era o homem que Etzel escolhera como seu batedor oficial. Rápido como um cavalo e silencioso como um fantasma.
Etzel observava o exército inimigo lá embaixo, ainda parado. Viu que alguns oficiais se aglomeraram para conversar, em seguida, olharam para o alto, em direção ao costado, tentando divisar qualquer movimentação. O ângulo em que se encontravam, não permitia qualquer visão dos esquadrões de Daear lá em cima. O único som cortando o ar, naquele momento, era do vento canalizado através do desfiladeiro. Forte e barulhento.
Vários minutos se passaram até que os oficiais do exército de Helad resolveram se colocar em marcha, novamente. A estranha sensação ainda tomava o corpo e a mente de Etzel. Aquela manobra de Helad não era sensata e muito menos inteligente. O desconforto começava a tomar o corpo da rainha, que se espremia entre as rochas para se esconder. A musculatura avantajada e o grande tamanho conferido a sua etnia, não auxiliava nesta hora. Ficaram assim durante muito tempo, até Aden a surpreender com seu retorno.
— Minha Rainha, há do outro lado, grandes catapultas preparadas para lançar sobre o costado. Não sei o que pretendem, pois estão todas armadas, contudo estão em silêncio absoluto. O exército, que está do outro lado, é sete vezes maior que os esquadrões que estão no desfiladeiro.
O homem falava num tom tão baixo que apenas a rainha conseguia lhe escutar, por estar ao seu lado. Ela tentou entender a manobra e olhou para o exército de Helad lá embaixo. Espremeu os olhos quando viu que novamente pararam. A marcha deles era muito lenta.
— Eu sei o que pretendem… É uma cilada para me matar. Sabem que eu viria com o exército e se me matam, nos pegam desprevenidos e desarticulam Daear, momentaneamente.
“Como seguir em silêncio e avisar Gerdal para descer?”
— Aden, vamos descer e você terá que ser mais silencioso e mais rápido do que é. Não podemos alertá-los da nossa presença. Eles pararam a marcha e esperam que cheguemos pelo costado e pelo costado e fiquemos ao alcance das catapultas para alertarem o resto do exército deles lança-las em nossa direção. Não podem avançar Até onde estamos, pois ainda estamos distantes do alcance das catapultas. Só temo por Gerdal e o esquadrão que está do outro lado, pois ao descermos, derrubaremos o passo.
— Pode deixar, minha rainha. Conseguirei avisá-los.
— Quando chegar até eles, mande-os galopar o costado abaixo o mais rápido que puderem. O som deles fará com que o exército de Helad se alerte; mas aí já será tarde, pois estarei com as guarnições provocando o deslizamento. Agora vá!
— Sim, minha rainha!
O homem correu e Etzel ordenou às tropas que descessem a pé, levando os cavalos pelo cabresto. O exército de Helad se mantinha parado no desfiladeiro e Etzel deu ordens para que seus esquadrões se juntassem aos outros, para auxiliar na derrubada das rochas na entrada do passo pelo lado de Daear. Assim que escutaram o trote dos cavalos das guarnições de Gerdal, provocaram o deslizamento, bloqueando a passagem.
Não conseguiu ver muita coisa depois da avalanche, mas os sons que chegavam pelo vento, eram de gritos e alvoroço. Etzel sorriu levemente. Por alguns dias estavam livres do exército de Helad.
Gerdal chegou com seus esquadrões. Estavam cobertos de poeira pelo galope forçado e pelo deslizamento.
— Etzel, tudo bem com você? — Perguntou o general, aflito diante da informação que lhe chegara.
— Tudo bem, Gerdal, mas quase caímos na armadilha deles.
— A benção dos Deuses estavam com você.
Etzel sorriu. Acreditava nos Deuses, mas não achava que eles fizessem algo em prol de um ou de outro povo, e sim, que a bem-aventurança vinha pelo esforço de cada um e pela honestidade.
— Gerdal, você será minha mão aqui no desfiladeiro. Mantenha alguns esquadrões de vigia e batedores espalhados. Quero saber cada manobra de Helad, por mínima que seja. Tenho que voltar ao castelo e ver se Kazar está levando adiante as minhas ordens e como anda a missão.
— Sim, minha soberana. Zênite irá com você e manterá os esquadrões em alerta, no caso deles fazerem a volta nos escarpados.
— Quem é Zênite?
— É a filha mais velha de Kazar e é a general que está no comando dos esquadrões das catapultas e dos soldados que marcham a pé. Mandarei um mensageiro para alertá-la.
— Não precisa. Quando cruzar com eles, eu mesma falarei com ela.
Etzel se condenou por não conhecer seus subordinados. Lembrava-se de Zênite quando era mais jovem, mas ela não fazia parte de seu círculo de amizades. A filha de Kazar ainda era uma adolescente e, apesar da rainha não ser muito mais velha, a idade fazia diferença entre os grupos de amigos, na época. Na realidade, isto não tinha a menor importância para Etzel, o que a incomodou foi o fato de não saber que havia uma general chamada Zênite, comandando no exército de Daear.
Apressou o passo. Fez uma cavalgada forçada e alcançou os esquadrões, comandados por Zênite, em menos de três horas. A general parou os esquadrões para receber a rainha que chegava em disparada.
— Como vai, general?
— Muito bem, minha senhora. Houve algum problema no passo?
Etzel mirou a general de cima a baixo. Era uma mulher de estrutura forte, ombros enquadrados e gestos seguros. Os olhos castanhos transmitiam segurança e a pele morena, curtida mais ainda pelo sol, demonstrava que não era uma mulher que servia ao exército pelo lado de dentro das muralhas. Gostou do que viu.
A rainha reportou tudo que ocorrera e ordenou a divisão dos esquadrões para que o limite do reino, a oeste e a leste do desfiladeiro de Verves, fosse mapeado e tivesse vigilância. Quando deixou os esquadrões, seguindo em direção ao castelo, pode ver os cabelos castanhos da general, presos em um rabo de cavalo, sacodindo ao vento, enquanto percorria as tropas dando a direção e ordens.
Etzel sorriu consigo, mais uma vez. Helad podia ter um grande exército, mas sua terra, Daear, tinham soldados empenhados e orgulhosos de ser quem eram e de lutar pelo que fora conquistado. Essa garra e senso de lealdade, não achava que havia em qualquer outro reino.
****
Entrou galopando no pátio interno da cavalariça do castelo e entregou seu cavalo para o menino das cocheiras.
— Trate bem dele. Dê comida, água e banho e… tome um banho e troque esta roupa, também. — Falou, observando os trajes sujos que o garoto usava. — Não lhe dão roupas suficientes aqui na cavalariça?
— Desculpe, minha senhora. Hoje tive muito trabalho e ainda não me banhei. — Falou envergonhado.
Ela sorriu, demonstrando que havia feito uma brincadeira com o garoto. Sabia que a vida desses meninos não era fácil. Muito trabalho e pouco descanso. O garoto devolveu o sorriso. Quando a rainha se voltou para seguir o caminho, o garoto a interpelou.
— Senhora! Posso lhe fazer um pedido?
Etzel se voltou em direção ao menino para lhe escutar.
— Fale. Se puder, lhe ajudo; se não puder, terá que se contentar com um não como resposta. Compreende isso?
— Entendo sim, minha senhora. É que estou tentando entrar para o exército e já tenho idade, mas pelo meu tamanho, não me deixam fazer as provas. Gostaria de ter oportunidade de, pelo menos, demonstrar o que sei.
Etzel estreitou os olhos, observando o garoto. Aproximou-se e a altura do menino chegava, apenas, ao tórax da rainha. O menino ficara de cabeça baixa, vendo que perderia essa empreitada, diante de sua soberana. Ela colocou os dedos no queixo dele, fazendo-o elevar o olhar para encará-la. Os olhos negros do garoto tinham um brilho vivo, uma energia e esperança juvenil, com vontade de crescer. Pareciam sinceros, mas eram olhos inocentes, ainda.
— Vejamos o que posso fazer. Qual é o seu nome?
— Atair. — Falou esperançoso.
— Procure-me amanhã, na primeira hora do alvorecer.
Ela esboçou novo sorriso, levando o garoto a abrir outro, tão grande quanto o rosto dele cabia.
Entrou e foi se banhar e comer algo, antes de procurar o administrador para saber notícias de Kazar. Recebeu uma mensagem enviada pelos escribas de Helad. Depois que leu, entendeu que o rei Raver estava agindo com o máximo de cautela para invadir Daear. Os escribas espiões não sabiam da investida até o rei tomar as tropas para a partida. Por isso, a mensagem chegara com tanto atraso.
— Interessante. — Falou para si, enquanto lia a mensagem. — Kazar tem que tomar cuidado, senão tudo irá por água abaixo. — Sussurrou ainda com os olhos fixados na mensagem.
O mensageiro a esperava, do lado de fora da porta de seu quarto, para saber se tinha alguma ordem a executar, antes de se retirar.
— Qual o seu nome, menino?
— Bertran, senhora! — Falou assustado, temendo ter feito algo errado para que a rainha o interpelasse.
— Vá até as cocheiras e chame o cavalariço Atair. Que ele me encontre na biblioteca real em uma hora.
— Sim, senhora.
Etzel fechou a porta do quarto, voltando para a mesa e terminando a refeição, antes de ir para a biblioteca para se encontrar com o menino cavalariço. Tinha alguns planos em mente.
Encontrava-se na biblioteca, estudando alguns pergaminhos de estratégia e mapas. Escutou batidas tímidas, na porta.
— Entre.
A porta se abriu e Atair entrou com um lenço na mão, a passos tímidos. Etzel esperou que fechasse a porta para mirá-lo.
— Minha soberana, queria falar comigo?
Ela o observou, atentamente. Estava banhado e com um uniforme da cavalaria. Os trajes estavam impecáveis. Esboçou um sorriso muito sutil, quase imperceptível. Pensou que, provavelmente, quando recebera a mensagem vinda da parte da rainha, esmerou-se em seu asseio por ela ter brincado com a aparência dele mais cedo.
— Atair, você gostaria de entrar para o exército e ser um guerreiro de Daear. E se eu lhe oferecesse outra posição, menos nobre do que está realizando hoje, para provar seu valor antes que lhe ajude. O que diria?
O garoto olhou nos olhos da rainha, inspirou e, após alguns segundos, respondeu resoluto:
— Aceitaria de bom grado, minha rainha. Nada é melhor ou pior se tivermos um papel a cumprir. Sei que, se julga que eu tenho que passar por algum aprendizado, devo entender, mas teria esperanças de que um dia a senhora pudesse ver meu valor, se houver algum para o reino.
Etzel estreitou os olhos e sorriu de forma discreta, novamente. O menino era inteligente e sabia que tinha orgulho pela nação, mas suprimiu o orgulho próprio em detrimento ao objetivo que almejava. Era uma boa característica para o que ela desejava fazer.
— Passará por um aprendizado sim, Atair, mas não em uma posição menor. — Riu para ele. — Você sabe o que é um escudeiro?
— Sei sim, senhora.
— Gostaria de ser meu escudeiro?
Os olhos do garoto arregalaram tamanha surpresa. Era uma posição muito melhor do que almejava. Como escudeiro da rainha, poderia chegar a ser um verdadeiro cavaleiro algum dia.
— Cla… claro, senhora! Não sei o que dizer… — Ajoelhou-se perante a rainha. — Será uma honra, e juro lealdade e dou minha vida pelo trono e pelo reino!
— Levante-se. A primeira coisa que vai aprender é que não gosto de bajuladores, mas aceito a sua oferta de lealdade. Bajulação e lealdade não combinam muito bem.
— Sim, senhora.
— Me diga, Atair, você conhece uma garota que tenha os mesmos anseios que você e que tenha o mesmo sentido de lealdade pelo reino? Pense bem, pois esta será sua primeira prova. Vou testá-lo e observá-lo o tempo inteiro.
— Uma garota, senhora? — Perguntou sem entender o que a rainha queria.
— Você terá que escolher uma garota que queira lutar pelo reino, seja leal e tenha garra. Entenda que, como sou mulher, em determinadas situações não poderei contar com a sua presença. Deverei ter uma mulher para me auxiliar. Ela será sua companheira de armas e de trabalho. Tudo que puder ensinar a vocês, eu o farei, mas com a condição de completa lealdade e discrição, sobre tudo que ouvirem e verem, quando estiverem comigo. Como disse, procure esta mulher e escolha bem, pois ao menor deslize de um, o outro também será responsabilizado. Agora vá. Quando tiver escolhido a garota, me procure e aí começarão as suas novas funções.
— Sim, senhora.
Meneou levemente a cabeça e se retirou, conforme fora pedido pela rainha.
— É, acredito que esse garoto será muito bom escudeiro e melhor espião ainda. Quem sabe futuramente consiga alcançar seus sonhos…
****
O dia seguinte fora de completa tensão. Etzel se pronunciara ao povo. As mensagens que chegavam das fronteiras eram inquietantes. Não acontecera nenhum movimento de Helad, após a ação de derrubada do passo de Verves. Isso fazia com que a espera se tornasse preocupante. Kazar também não mandara uma única mensagem de como estava a missão que Etzel havia lhe enviado.
A rainha encarava as coisas de forma peculiar. Quando não podia fazer nada a respeito de uma situação, costumava descansar cedo, para que tivesse energias suficientes para enfrentar os problemas depois. No entanto, naquele dia não conseguiu comer nada. Parecia que um nó se formava em sua garganta e não entendia o estado de tensão em que se encontrava.
A noite avançara e, finalmente, cavaleiros entraram pelos portões do castelo, mas Etzel já havia se recolhido para dormir. Kazar não esperou. Sabia que se deixasse para avisá-la no dia seguinte, ela chamaria sua atenção. Foi até seu quarto e bateu à porta.
— Etzel, cheguei agora e preciso lhe falar.
O general alertou do lado de fora, para que a rainha soubesse quem lhe perturbava àquela hora. Etzel abriu a porta e pediu que entrasse em seu quarto. Trajava uma túnica de dormir, fazendo com que Kazar se envergonhasse diante da situação e se voltasse para as janelas abertas, por onde a brisa fresca da noite entrava. Etzel, perspicaz, percebeu o desconforto de seu general.
— Ora, Kazar, não acredito que tenha melindres comigo. Fizemos exercícios de campanha no exército a vida inteira! Não acho que eu tenha muito mais a lhe mostrar de meu corpo, além do que já viu. — Sorriu diante do embaraço do seu general. — Fale logo. Como foi a missão?
O general se recompôs, afinal, o que Etzel falara era certo. Não tinha por que se sentir constrangido.
— Não foi fácil arrumar um jeito de raptá-la, Etzel. Os nossos espiões, que estão em Helad, não são guerreiros. São homens da escrita e não puderam nos ajudar muito, além de facilitar informações. Tivemos que esperar a princesa sair do castelo de Helad para emboscá-la. Ela costuma sair sozinha pelo reino, como nos informaram. Fizemos uma tocaia para pegá-la, no local onde disseram que ela cavalga com frequência.
— Onde a colocaram?
— Ela estava desacordada até chegarmos ao castelo, mas depois que despertou, esperneava muito. Colocamos um capuz nela e tivemos que prender suas mãos e pernas para que não machucasse ninguém e nem a ela mesma. Não sabia onde iria prendê-la e, a princípio, a deixamos numa cela na masmorra.
— Mandei preparar um quarto no castelo para recebê-la. Pouca mobília, janelas com grades, mas confortável. Ela não é uma bandida, Kazar, é simplesmente uma peça importante para acabarmos com a guerra. Não devemos maltratá-la. Como ela é?
— Não sei. Depois que a pegamos, saímos de lá o mais rápido que pudemos. Haviam soldados por toda a parte e não queríamos ser descobertos.
— Como sabe que é ela, então?
— Tinha um escriba conosco, que nos mostrou.
— Então vá e tire-a da masmorra. Traga-a para o quarto ao lado do meu, em frente à biblioteca. Vou me vestir enquanto isso. Quero conversar com ela e acalmá-la.
— Você contará nossas intenções para ela?
— Lógico que não, Kazar, mas não podemos deixar que ela pense que vamos matá-la, sem mais. Ainda mais, uma garota que foi criada cheia de mimos.
— Ela pode ter sido criada com mimos, mas que tem uma força terrível, ah, isso tem. Nossa, como esperneou!
****
Algum tempo mais tarde, quando escutou tumulto no corredor e o barulho da porta ao lado ser trancada, Etzel, já vestida com seus trajes do exército, saiu do quarto e encontrou homens fazendo a guarda da porta.
— Onde está o general Kazar?
— Foi a enfermaria, senhora. — Disse um dos soldados.
— A mulher que trouxemos chutou o joelho dele e parece que foi com força.
Completou o outro soldado rindo, levemente, levando Etzel a também sorrir pelo descuido do general. Anotou, mentalmente, para mais tarde fazer uma troça com o companheiro de armas de longa data.
— Então, eu devo tomar cuidado ao entrar. Pelo visto, a nossa visita é parente de cavalos selvagens, que dão coices fortes.
Os soldados riram da brincadeira da rainha, acenando com a cabeça. Etzel destrancou a porta e entrou ligeira, cerrando-a atrás de si e, de repente, sentiu uma dor aguda na cabeça. Virou-se rápido, para amparar outro golpe, embora a dor estivesse contundente. A visitante atacara com um castiçal de madeira, que havia sido deixado no quarto para iluminar a mesa de refeições. Segurou a mão da mulher que, agilmente, tracionou com força, para que não fosse agarrada pela grande figura que acabara de atacar, contudo foi infeliz na empreitada.
Etzel agarrara o braço dela com segurança, fazendo com que a princesa reagisse, socando sua face com a outra mão. Mais uma vez, Etzel bloqueou a sua investida, segurando-a com a outra mão e prendendo a princesa, próxima a seu corpo. A rainha sentiu uma dor aguda na canela, deixando-a atônita.
“Que raio de animal selvagem é essa mulher?!” — pensou.
A rainha empurrou com toda a força que tinha, levando o corpo junto, para bloquear as investidas dolorosas da princesa. Precisava pará-la. Caíram sobre a cama, com a rainha usando seu grande corpo para imobilizar a visitante agressiva. Segurou os braços dela, acima da cabeça e entrelaçou as pernas nas da outra, empurrando o quadril para baixo. Finalmente, a princesa parou de lutar, relaxando o corpo, sob o da rainha. Viu que tinha perdido a batalha.
Encararam-se, olhando pela primeira vez o semblante da outra. A princesa, morena de pele, olhos negros expressivos e uma cicatriz que se estendia da sobrancelha esquerda até o início da têmpora, deu para Etzel a certeza de que ela não era um bibelô, como as histórias contavam. Megan era uma guerreira, uma mulher das armas. Não havia dúvidas pela forma como lutava e se defendia. Só não atingiu o objetivo de ferir a pessoa que entrara no quarto, porque Etzel era maior que ela em altura e em força física. Talvez as habilidades bélicas se igualassem, mas a compleição física superior da rainha, também fora uma surpresa para a princesa.
— Pelos Deuses, mulher! Quer se acalmar!
— Me acalmar? Vocês me raptam e querem que eu faça o quê?
Rebateu furiosa, porém admirada. Nunca tivera oportunidade de ver alguém do povo “Aterai”. Sabia da existência e já tinha lido descrições desse povo, mas em Helad, não haviam pessoas desse clã. Uma luz se fez em sua mente e agora compreendia o que estava acontecendo. Aquela mulher, que lhe prendia o corpo sobre a cama, era a rainha de Daear.
— Etzel… — sussurrou. — Você é a rainha Etzel de Daear.
Era mais uma constatação do que uma pergunta. Megan falava reparando nos traços fortes e angulosos da rainha, com certa admiração. Esta contemplação, nada velada da princesa, incomodou Etzel, já que se encontravam tão próximas, que sentiam as respirações ofegantes soprarem nas faces, uma da outra. A rainha sentiu o corpo da mulher relaxar embaixo de si e percebeu as curvas delineadas no pleno contato. Limpou a garganta, engolindo a saliva que se formara e voltou a falar, quebrando o silêncio que se fez entre elas.
— Eu posso lhe soltar? Vai ficar calma para conversarmos? — Perguntou Etzel.
— Eu tenho escolha? — Rebateu, insurgente.
— Na verdade não, mas tem escolha de fazer a sua estadia aqui, ser mais agradável e sem qualquer dor. Tenho a sua palavra de que não irá me atacar novamente?
— Tem a minha palavra de que não lhe atacarei, por agora. Me rebelar dependerá do que me aguarda. Há de convir que, somos inimigas e me encontro numa situação bem complexa, estando presa em Daear.
Etzel mirou-a, reparando nas expressões de seu olhar e de sua face. A mulher era inteligente e nada mimada. Não devia, mas havia gostado muito dessa surpreendente revelação. Soltou a princesa, a contragosto. Não tanto pelo que ela poderia fazer, mas pela agradável sensação que seu corpo lhe proporcionara, colado ao dela. As duas levantaram e se olharam frente a frente.
— Nossa! Você é alta e forte, mesmo. Oh! Perdoe a minha indelicadeza… — Falou encabulada diante da declaração.
Megan deixara escapar, assim que olhou Etzel de pé. A princesa perto da rainha, batia-lhe na altura do pescoço e quando presa na cama, percebeu seu corpo inteiramente abarcado pelo dela, com os músculos retesados. Não era uma expressão de crítica. O tom da voz era de admiração.
Apesar de tentar manter a seriedade da questão, a rainha sorriu. Escutou isso a vida inteira e até com certo pesar. O povo Aterai era muitas vezes admirado, mas na maior parte do tempo, era temido sem a razão acertada para o medo que despertavam. Não eram violentos. Foram usados como escravos guerreiros séculos atrás; no entanto, o faziam por serem obrigados.
— Não se incomode. Digamos que eu já esteja acostumada em causar essa impressão. Mas você também não é uma mulher baixa para a média das mulheres. Se fosse, seu rosto não chegaria ao meu tórax.
Sorriu para amenizar a situação, recebendo outro sorriso de volta. Os olhos não deixavam de se analisar mutuamente. Etzel não compreendia por que a filha de seu ferrenho inimigo a deixava tão à vontade Megan, por sua vez, apesar de ter se revoltado e de seu temperamento extremamente forte, esqueceu momentaneamente os desacordos, para admirar essa mulher de beleza exótica.
— Então, vamos ao assunto que fez com que me trouxesse aqui; contra a minha vontade, devo ressaltar. Sabe que me raptando, provocará uma guerra contra meu reino, não sabe?
— Uma guerra contra o seu reino? Princesa Megan, não me tome por idiota. O seu pai já declarou guerra, ao nos invadir dias atrás pelo desfiladeiro de Verves.
— Meu pai? Você está enganada. Meu pai não seria louco de fazer uma ação tão estúpida! Por que invadiríamos Daear depois de tantos séculos?
— É isso que pretendo descobrir, princesa, mas não antes de terminar essa guerra, que mal começou, com um acordo seguramente firmado.
— Não me chame de princesa! — Megan alterou a voz. — Faço parte do exército de Helad e saberia de qualquer ação que estivessem planejando. Você está mentindo!
Megan entendera a ação da rainha de Daear, imediatamente. Viu as manobras do seu exército acontecerem para um treinamento de campo, no entanto, seu pai falara que ela não participaria dessa manobra. Colocaria ela para coordenar outro treinamento, com parte do regimento, para a proteção do castelo, concomitantemente ao treinamento das forças que iriam a campo. Não queria acreditar que seu pai havia sido tão vil com ela.
Sabia que ele odiava o reino de Daear. Nunca entendera, pois tudo que ocorreu na rebelião dos “Remissis”, acontecera há tantos séculos que o povo de Helad deixaria cair no esquecimento, se não fosse pelo instigar desse ódio pelo próprio rei. Megan sugeriu muitas vezes ao conselho, abandonar os embargos comerciais à Daear, pois não havia mais sentido em tal ação. Seu pai nunca permitiu que seu conselho atuasse para estreitar essas relações comerciais, mas daí a mentir para a filha e excluí-la de uma ação do exército?
Etzel se surpreendeu com essa informação. Então, os espiões que eram tão fiéis a Kazar, não eram tão bons assim, ou não eram tão fiéis.
— Você é comandante do exército de Helad… Então, ou mentiram para você e não é tão respeitada no exército, ou você mente para mim. Só soube que o propósito do exército de Helad não era uma invasão, quando fui defender as minhas fronteiras. A ação do desfiladeiro de Verves não foi para invadir, foi para me matar, mas como vê, não deu tão certo assim.
A rainha falou ríspida. Era uma mulher endurecida pelas responsabilidades que carregava, porém havia deixado suas barreiras cair diante da princesa, e tentou tomar as rédeas de si novamente.
Aquela informação abalou a princesa, pois rememorava as atitudes estranhas do pai perante ela, durante os últimos meses. Sua mente borbulhava e via sentido no que a rainha de Daear falava.
— Não sou comandante do exército, sou apenas uma general de terceira ordem. Creio que terminamos a nossa conversa, rainha Etzel. Eu não acredito em você e nem você em mim. Faça o que acredita que deva fazer, mas me deixe só. Sou sua prisioneira, pelo visto.
Megan virou de costas. Queria ficar sozinha e pensar no que havia escutado. Só que havia um problema martelando seus pensamentos; ficara dolorida com a informação que Etzel tinha lhe dado. Sentia-se traída por seu pai porque, lá no fundo, temia ser verdade.
A rainha estreitou os olhos para observar a princesa de costas. Percebeu o choque nos olhos de Megan, no exato momento que ouviu suas palavras e explanações.
“Ela não sabia, realmente…” — Pensou Etzel.
Virou-se, mas antes de ir embora, falou:
— Mandarei trazer a refeição para você. Tem preferência de comida?
Falou tentando transparecer calma, mas a angústia da outra havia lhe atingido, deixando certo mal-estar alojado no peito.
— O que enviar para comer estará bom para mim. — Respondeu desanimada.
Etzel se retirou, trancando a porta. Assim que saiu, mandou chamar Kazar.
— Vá até o general e peça para me encontrar na biblioteca, nem que ele esteja com a perna fraturada! — Esbravejou. — Chame alguém da cozinha e diga para me procurar lá, também!
Dirigiu-se até a porta em frente, abriu e fechou-a com mais força do que pretendia, causando espanto nos guardas.
— Que merda!
Gritou sozinha. Estava frustrada, pois não contava que ficaria abalada com os acontecimentos, no quarto da princesa de Helad. Seus instintos afirmavam que Megan dizia a verdade. O rei Raver tinha armado uma cilada para ela e outra para a filha dele.
— Cretino!
Ela se sentia uma completa imbecil e, o mais importante, seus generais eram “trouxas”, da mesma forma. Não sabiam nada a respeito da vida da princesa de Helad e contavam com as informações de espiões que, ou eram idiotas, ou pessoas em quem não podiam confiar.
O que mais preocupava a rainha, era outra verdade que trazia impregnada no corpo. Atraíra-se sexualmente pela princesa e de forma avassaladora. Controlara-se, muito, para não dar vazão à sua vontade de tê-la nos braços. Existiam muitas coisas que ninguém sabia sobre o povo de “Aterai”, a não ser quem era do próprio povo. Verdades que eram proibidas de falar a qualquer um, sob juramento de sangue, desde a tenra idade.
Os Aterais só se apaixonavam uma única vez e quando encontravam seu “Dhulá”, como chamavam os que os atraíam, era um sentimento imediato, inexorável e único. Por este motivo, era uma etnia quase extinta. Após serem escravizados por séculos e terem conquistado a liberdade através da rebelião, se espalharam pelos reinos Mirintai. Os casamentos não mais aconteciam, somente entre Aterais, o que diminuiu esse “instinto” atrelado ao sangue.
Mas ela, a rainha Etzel, era filha de pais Aterais e toda a sua árvore genealógica era Aterai. A atração pelo “Dhulá” era viva dentro das suas veias, contudo nunca se importou. Chegou a acreditar que era apenas uma lenda entre seu povo, pois todos os companheiros e companheiras de cama que teve, foram apenas para arrefecer a vontade sexual primária.
— Merda! O que faço agora? Eu tinha que despertar justo com a princesa de Helad? — Bradou.
Sua cabeça estava em um turbilhão. Escutou a porta abrir e olhou Kazar entrar pela passagem, mancando. Entendeu que sua face estava desfigurada, após ver o terror estampado no rosto do general, quando a olhou. A contrariedade que enfrentava dentro de si, a tinha arrastado para um estado de fúria incontida.
— O que aconteceu, Etzel? — Falou baixo e aparentemente tranquilo. — Poucas vezes vi você tão transtornada.
— Kazar, me explique por que os seus espiões não falaram que a princesa era general do exército de Helad?
— O quê?
— É isso que você escutou. Ela não é uma menina mimada; é uma general do exército. Não percebeu como lutava quando a capturou? Minha preocupação aumentou muito. Não com este detalhe específico, e sim, com a falta de informação dos seus espiões!
— Desculpa, Etzel… Não sei o que dizer. Eles nunca falharam antes… Fizemos uma emboscada para derrubar o cavalo e quando ela caiu, desacordou. Não lutamos com ela. Só a amarramos e trouxemos para cá.
Mais uma vez, a rainha teve que controlar o sangue e seu instinto. Escutar que Megan fora derrubada e machucada, precipitou uma angústia em sua garganta. Não poderia deixar que esses sentimentos sobrepujassem o seu dever para com o reino.
— Eles nunca falharam? Como não falharam? E o fato do rei Raver caminhar até nós, sem que soubéssemos? Você sabe o que passa pela minha mente agora? Que tenho espiões que agem dos dois lados, ou até, alguém dentro do castelo!
Kazar espantou-se ao ouvir tais palavras. Ficou horrorizado com as insinuações da rainha.
— Como se atreve a falar de alguém dentre nós?! Não falo dos escribas, pois a maioria nasceu em Helad, mas nós?! Tenho uma filha que está lá fora, lutando por Daear. Como pode pensar isso, Etzel?
Os dois se encaravam e batidas tímidas na porta foram ouvidas por ambos, fazendo a discussão abrandar. Etzel inspirou fundo. Precisava de uma noite de sono e colocar seus sentimentos em ordem, para não ser leviana com seu amigo de longa data.
— Adiante!
Falou para a pessoa que esperava autorização para entrar. Passou a mão pelos cabelos negros e curtos, virando-se na direção da porta, fugindo do olhar de seu general.
— Senhora…
— Traga duas refeições completas, com vinho e água. Traga o que melhor tiver na cozinha.
— Sim, senhora.
A moça da cozinha saiu e quando Etzel se virou, viu que seu amigo e general estava acabrunhado.
— Desculpe, Kazar, e tente me entender. Esperamos durante séculos que essa guerra deflagrasse e aconteceu no nosso tempo. Sei que fui rude, mas não acha que deveria estar com meus dois pés fincados atrás?
— Entendo mais do que possa parecer, Etzel, mas veja, você conversou com essa mulher alguns minutos e colocou a prova toda uma história. Pelo que vejo, ainda vai jantar com ela, dando-lhe créditos. Ela é a filha de Raver, rei de Helad e são nossos inimigos!
Etzel forçou sua calma. Sabia que Kazar não entenderia se continuasse discutindo sobre condutas e atitudes. Ele não era nenhum tolo e observava tudo à sua volta, por isso era seu general.
— Ela foi enganada pelo pai. Como sei disso?
A rainha contou o que ocorrera no quarto e o que conversara com a princesa, omitindo seus sentimentos pela mulher, é claro. Tentou ser objetiva. Kazar escutou com atenção.
— O que acha?
— As histórias que já ouvi do rei Raver são sempre as mesmas. Ele é um egocêntrico, arrogante e cretino, mas trair a filha? Precisa ser muito desprezível para uma artimanha tão deslavada.
— Você acredita que a minha impressão está errada, então?
— Não, mas se suas suspeitas se confirmarem, ele não se importará em sacrificar a filha. Pense. Ele não teve filhos homens. O governo de Helad é pautado na herança do trono e é patriarcal. A filha mais velha herdaria e passaria o comando do reino para seu marido. Talvez o que escutávamos dela por aí, fosse o que o rei queria que as pessoas soubessem. Se ela é general do exército, significa que não é tão passiva quanto ele gostaria. E se morresse em nossas mãos…
— … Passaria o trono para a segunda filha e resolveria o problema do povo não apoiá-lo na sua batalha insana conosco. — Etzel completou os pensamentos de Kazar. — Mas para isso, ele teria que saber que a sequestraríamos.
— Talvez, não. E se ele não contava com isso? Se apenas queria fazer sua batalha e simplesmente facilitamos outra estratégia para ele? Pense, Etzel. Talvez ele não desejasse perder sua filha, mas ela era um estorvo para ele e quando a sequestramos… Ele não está mais nas fronteiras. Nossos esquadrões não estão avistando manobras.
— Merda, Kazar! É disso que falo! Por que os espiões nunca nos deram essa informação a respeito dela e sobre a ação do exército de Helad, também?
— Porque temos espiões traidores. Confiamos demais. Está certo que essa estratégia de ataque, o rei conseguiu esconder da própria filha.
O general se condenava pelo próprio deslize, de confiar cegamente nos seus informantes.
— O que vai fazer, Etzel? E se ele não fizer o acordo?
— Não sei o que farei. Ainda é muito cedo e o que temos são apenas suposições. Vou me juntar a ela para jantar; não comi mais cedo. Mas o fato é que preciso entender como ela pensa e tentar extrair informações.
— Boa sorte! Pelo visto, vai precisar. Entre cautelosamente dessa vez, para que ela não te ataque com a perna da cama.
— Ela não arrancaria a perna da cama para me atacar… ou arrancaria?!
Kazar gargalhou, diante da expressão de assombro que se formou no rosto da rainha, temerosa da possibilidade de que tal evento ocorresse.
— Estou só brincando, Etzel. Não acredito que ela faria isto. — Falou ainda rindo.
— Você pode não acreditar, mas eu acredito que ela faria! — Concluiu Etzel, deixando seu general atônito e espantado.