Gringa Grudenta

8. Vazando informações das linhas

Aglaia se encontra deitada de lado no sofá da sua sala, uma das pernas levantadas apoiada no encosto do móvel e vestindo apenas um minishorts cinza e top preto velho, conjunto que costuma usar para dormir ou ficar em casa. A TV ligada transmite o pré-jogo entre a Granpolis United e a Red Phoenix.

 Então vamos para a escalação das Granpolis United! – anuncia a narradora – no gol, Clara Castillero, Estrada na lateral direita, Hunter na esquerda…

Na poltrona ao lado do sofá, Lumia relaxa com seu celular e uma latinha de cerveja no colo.

– Da próxima vez, leve dois bolos então – brinca Lumia, tendo acabado de terminar de ouvir de Aglaia sobre o dia anterior. A loira ri baixinho.

– Mas deu tudo certo no final – ela diz, feliz.

Logo depois de praticamente ter fugido do apartamento, Carmen viera atrás dela e a convenceu de que estava tudo bem, dizendo que Crista estava até perguntando o porquê dela ter saído. Aglaia aceitou voltar, entregar o envelope com a mensagem de “get better soon!” escrito em glitter colorido que Lumia a ajudara a fazer, porém sem as flores e, embora tenha insistido que não precisava, acabou aceitando dividir o bolo com Carmen, Flora e Crista.

A brasileira parecera bastante tranquila durante todo o evento, mas só depois de Aglaia tomar uma ducha e trocar suas roupas por roupas emprestadas de Flora. Era fofo ouvi-la tentando se comunicar em inglês e, seu sotaque, mais fofo ainda.

– Então, aposta em quem? – pergunta Lumia.

– Red Phoenix. Seria uma surpresa se perdessem.

– Eu também. Placar?

– Hm… 3 a 1?

– 2 a 0 – aposta Lumia.

– Feito – as duas fazem uma pistola de mão e apontam uma pra outra, simulam um disparo e assopram os dedos, como esses atiradores de filmes de velho oeste. É como um aperto de mãos à distância para as duas, que dão risadinhas da brincadeira.

Havia se tornado tradição das duas fazerem essas apostas desde que Aglaia fora contratada pelas Royal Foxes, dois anos antes. Ela e Lumia já se conheciam desde muito antes disso, mas Aglaia recusara todos os convites das Royal Foxes de fazer parte da equipe para evitar qualquer acusação de nepotismo, devido ao status lendário de sua mãe dentro do clube e do fato dela ser uma conselheira honorária desde que se aposentou. Por conta disso, Aglaia começara sua carreira profissional como jogadora pela Red Phoenix, a arquirrival das Royal Foxes, e fora depois contratada pela Crystal Castle, um dos principais times do interior do país, indo finalmente para sua verdadeira casa apenas aos 21 anos, na temporada de 2018/19. 

Lumia, por outro lado, nunca teve esse problema. Tendo sua própria mãe como uma ex-jogadora e atual treinadora das Royal Foxes, nunca se incomodou com a possibilidade de a acusarem de só estar lá pelo sangue que carrega e sempre provou que, de fato, merecia fazer parte da equipe.

– E agora vamos para a escalação da Red Phoenix… – diz o narrador, com uma imagem de um campo de futebol passando a ocupar a tela com 11 pontinhos em diferentes posições, cada um com um nome e um número. Crista não está entre eles – no gol com a 1 temos Tigress, Cartner na lateral-direita e Binsbergen pela esquerda, Nimba e Stevenson formam a dupla de zaga… 

– Lumia – chama Aglaia, subitamente pensando em algo.

– Hm?

– E se terminar em 2 a 1, quem ganha?

Normalmente, a vencedora das apostas entre as duas é decidida por aproximação do placar. Aglaia reflete que se terminar em 2 a 1, uma teria acertado o número de gols de um time e a outra teria acertado o número de gols do outro.

– Aí é empate – responde Lumia – aí a gente divide a carga do trabalho.

A aposta do dia é quem vai digitar o relatório de conclusão de um programa obrigatório da faculdade, o qual ambas estão fazendo juntas.

– Podemos desempatar usando nossas estatísticas dos jogos – sugere Aglaia, brincando – que tal, quem tem mais desarmes bem-sucedidos ganha?

– Prefiro decidir por cruzamentos bem-sucedidos – retorque Lumia fingindo irritação. A loira solta uma risadinha.

O primeiro tempo da partida se passa como esperado, com a Red Phoenix facilmente dominando a pequena equipe de Granpolis. Quando o árbitro sinaliza o final do tempo parcial o placar já está em 2 a 0 e as donas da casa mal conseguem sair do seu campo de defesa.

– Vamos fazer pipoca! – decide Lumia, se levantando de imediato e correndo para a cozinha. Aglaia reage de imediato, se levantando quase ao mesmo tempo que ela.

– Ei, calma aí, a casa é minha!

E corre atrás da amiga, agarrando-a pelo ombro e tentando tomar a sua frente. Por fim, consegue empurrar a amiga menor para trás e chega na cozinha primeiro.

– Que injusto, você trapaceou! – reclama Lumia.

– Eeeeeeeeeeeu? Onde?! – Aglaia se faz de boba e ri da cara da amiga. Lumia teria chegado na frente se ela não a tivesse agarrado pela camisa e a puxado para trás. A menor revira os olhos grunhindo alto e vai direto para o armário pegar a pipoqueira de Aglaia, enquanto esta busca o pacotinho de pipoca e a manteiga na geladeira.

Enquanto elas estouram as pipocas, ouvem a TV na sala passando vários comerciais um atrás do outro, e em seguida, os melhores momentos do primeiro tempo.

– Mas e aí, o que espera para a Algarve Cup? – pergunta Lumia, sorrindo de leve enquanto as pipocas terminam de estourar. Aglaia abre a tampa da panela e despeja algumas colheres de manteiga dentro, fecha a panela de novo e começa a mexê-la.

Desde a era de ouro de Alter nos anos 80 e 90 que a seleção nunca mais venceu grandes títulos, sendo alcançadas pelas suas maiores rivais, os Estados Unidos. A geração atual, no entanto, tem tornado a dar esperança ao país, que conquistara o terceiro lugar na Copa do Mundo do ano anterior e conta com um elenco sólido e bem-entrosado. Os Estados Unidos não costumam participar da Copa Algarve, um torneio amistoso entre seleções que costuma acontecer entre fevereiro e março e, com a seleção alteriana na sua melhor fase em anos, elas esperam se preparar bem para as Olimpíadas que acontecerão dali alguns meses.

– Eu espero… – Aglaia nunca havia pensado nisso. Normalmente ela não pensa realmente sobre o que espera de seus jogos – … que você não encha essa pipoca com sal demais de novo.

– Quê! Eu nunca fiz isso! – retruca Lumia, ganhando um olhar sarcástico de Aglaia, que cruza os braços sobre o peito.

– Já tô até vendo os seus próximos exames de pressão sanguínea!

– Minha pressão está ótima!

– Eu tô começando a achar que a pressão que você bota nas adversárias é só um reflexo das suas veias contra o corpo – zomba Aglaia.

– Essa piada foi horrível – replica Lumia, balançando a cabeça com um meio-sorriso.

Aglaia faz questão de salpicar o sal antes que Lumia possa se apoderar do saleiro e ambas voltam para o sofá, logo quando o segundo tempo está para começar.

– IH, OLHA LÁ! SUA NAMORADA TÁ NO JOGO! – grita Lumia, estapeando os ombros de Aglaia como uma fangirl.

– ELA NÃO É MINHA NAMORADA! – esganiça-se Aglaia – de onde vocês tiraram isso?! Meu deus!

Enquanto o narrador diz que, para o segundo tempo, Crista está entrando no lugar de Wave para a sua re-estreia após a contusão, a câmera foca na brasileira correndo para o centro do campo, uma expressão concentrada em seu rosto, aquela volumosa juba o emoldurando feito um retrato…

– Tá apaixona-da! Tá apaixona-da! – provoca Lumia, fazendo Aglaia ir pra cima da amiga tentando calar a sua boca. Lumia mal tem tempo de largar a bacia de pipoca na mesinha da sala para evitar que seja derrubada, se desvencilha da mão de Aglaia tentando calá-la e grita a plenos pulmões – VOCÊ NUNCA ME CALARÁ! A REBELIÃO RESISTE!

– LUMIA, FICA QUIETA!

– JAMAAAAAAIS!

– Escuta aqui sua mergulhadora de aquário, eu vou… – Lumia escapa dos braços de Aglaia e pula por cima do braço do sofá para fora do seu alcance.

– Devo avisar aos nossos contatos na Red Phoenix – ela diz dramaticamente, tirando o celular do bolso – INFORMAÇÕES CONFIDENCIAIS FORAM TIRADAS DO INIMIGO!

– VOLTA AQUI SUA TRAIDORA – Aglaia pula por cima do braço do sofá e corre atrás de Lumia, que ri histericamente enquanto tenta digitar algo para Storm, que com certeza não está olhando para o seu celular agora.

– JAMAIS ME PEGARÁ VIVA! – Lumia ginga pra cima de Aglaia e escapa no meio dos seus braços, enquanto a amiga tromba com a geladeira, e volta correndo para a sala rindo igual uma vilã de desenho animado.

– Lumia, dá pra parar com isso antes que a gente destrua o meu apartamento?! – reclama Aglaia. Lumia trava na frente da TV, encarando a tela, como se tivesse dado tela azul. Adoro logo se junta a ela – o que foi?

O narrador ia falando alguma coisa sobre a bela técnica e trabalho em equipe de Crista e Kyveli, mas tudo o que Aglaia vê é uma das garotas da Red Phoenix cobrando o arremesso lateral.

– O que nós perdemos? – pergunta Aglaia ansiosa, e logo a imagem é cortada para um replay do que levou ao arremesso lateral. No replay, Kyveli recebe a bola perto da linha lateral e toca rápido para Crista, que domina a bola girando para cima da adversária e toca de volta para Kyveli. A ponta corta para o meio e toca de calcanhar para Crista, que ia passando pelas suas costas. Crista corre na direção da linha de fundo, gingando e pedalando pra cima da lateral adversária, com um número 15 e o nome “Estrada” nas costas, finge que vai cortar para fora e corta para dentro, fazendo Estrada escorregar e cair sozinha. Nisso, Crista manda a bola alta para o meio da área, mas a zagueira adversária se antecipa a Carmen e cabeceia a bola com força de volta para a lateral.

Aglaia nota que Crista está rindo quando oferece a mão para ajudar Estrada a se levantar.

– Pelo menos por isso você não passou – Lumia quebra o silêncio e oferece um sorrisinho provocador para a amiga.

– Há, há. Que tal você ficar nela da próxima, hein?

– Eu não, tá maluca? Tô bem feliz não sendo humilhada na frente de um estádio inteiro, obrigada.

– Mas agora é sério, por que vocês ficam insistindo nisso de eu gostar dela? Nós mal nos conhecemos, não faz sentido.

– AGLAIA, VOCÊ FEZ UM BOLO PRA ELA! COM AS SUAS PRÓPRIAS MÃOS!

– Mas isso era um pedido de desculpas!

– E VOCÊ LEVOU FLORES!

– TAMBÉM ERA UM PEDIDO DE DESCULPAS!

– VOCÊ VESTIU A ROUPA DA SUA FORMATURA!

– Vesti?

– Vestiu!

– Eu usei aquele colete na minha formatura? – a loira parece genuinamente confusa.

– Aglaia, eu NÃO ACREDITO que você não se lembra! Nós estáv…

– Peraí! – Aglaia interrompe a amiga quase enfiando a mão na boca dela quando Crista recebe a bola perto da meia-lua da área e toca de primeira, cheia de efeito para Storm, pelo alto, que chega nas costas da defesa, mata no peito e fuzila a goleira, que sequer tem tempo de sair do lugar.

– Porra… – Lumia deixa escapar impressionada, enquanto Aglaia dá gritinhos agudos e pula no lugar, comemorando. Subitamente, alguém bate na porta.

– DÁ PRA PARAR COM ESSA BARULHEIRA AÍ?! – a voz de um homem berra furiosa, fazendo as duas garotas se calarem e se aquietarem imediatamente, se dando conta que de fato, não estavam sendo nem um pouco sutis. Logo em seguida deixam escapar risadinhas, como uma piadinha interna.

Finalmente, as duas se sentam no sofá e atacam a pipoca, já não tão quentinha assim.

– Mas eu vi você gritando toda boiolinha quando elas marcaram um gol – torna a provocar Lumia, fazendo Aglaia grunhir e tacar uma pipoca na cara da outra.

– Quieta, chata! 

– Você que é chata!

As duas continuam a assistir o jogo. Aglaia nota como a maneira de jogar de Crista é completamente diferente do que está habituada: ela não parece estar pensando numa tática coletiva, como ela própria ou a maioria das jogadoras alterianas. Não é como se houvesse um plano ali. Ela age de forma instintiva, como uma surfista relaxando sobre uma onda. Aglaia aprecia como se presenciasse a beleza de uma obra de arte. Num lance, Crista conduz a bola num círculo ao redor de si, mantendo ela longe do alcance da defensora adversária, antes de fazer um lançamento rasteiro de trivela para Kyveli pela direita. Noutro, ela mata a bola no peito e antes mesmo que ela caia no chão, arremata para o gol com um voleio da entrada da área, pegando a todo mundo de surpresa e forçando a goleira a fazer uma defesa espetacular.

– Ei, a treinadora dela não é a Kaan’uh Moon? – pergunta Lumia distraidamente.

– A treinadora Moon, aham.

A treinadora Moon quase foi a primeira de Aglaia quando se tornou profissional, jogando pela Red Phoenix.

– Nossa, imagina o quanto essas duas devem brigar no vestiário – Lumia ri e arranca um sorriso amarelo de Aglaia – ei, o que foi? Minha mãe briga comigo o tempo todo, não é grande coisa.

– Ah, não sei. Eu sempre sentia um clima estranho com ela, ela é meio esquisitona.

– Aham, e você não é esquisitona – debocha Lumia, ganhando uma travesseirada na cara e rindo feito uma hiena.

– Brigitta dá um passe firme, Crista se adianta a Rivera, fica com a bola… hah, esse foi um belo drible da meia brasileira – o narrador ri e chama a atenção das duas, que se aquietam e olham para a tevê. A garota conduz a bola calmamente, pouco à frente do meio campo, quando Rivera, a adversária recém-driblada, volta para dar combate. Crista subitamente puxa a bola para trás, finta a garota e, enquanto ela ainda está desorientada, procurando pela bola, a brasileira dá uma arrancada e deixa a marcadora para trás na corrida. Rivera ainda tenta segurá-la pelo ombro, mas Crista se desvencilha. Outra defensora chega pelo outro lado para agarrá-la, porém a meia resiste ao jogo de corpo da mulher maior enquanto uma terceira defensora se aproxima para cercá-la. Subitamente Crista puxa a bola para trás, dá um toque por trás do próprio corpo e corta para a esquerda, se livrando de Rivera, mas logo as outras duas defensoras já estão em cima dela. A brasileira finge um passe, mas puxa a bola de volta no último segundo, ganhando uma fração de momento extra contra uma das marcadoras enquanto protege a bola da outra.

Um dos ângulos da câmera pega o rosto de Crista mais de perto durante a sequência e, nela, Aglaia nota como a atleta sorri feito uma criança se divertindo no futebol depois da escola. É um sorriso contagiante, a faz sorrir também. Por fim, a brasileira toca a bola de calcanhar para Carmen, que chega por trás para dar apoio e escapa entre as defensoras. Carmen toca de volta para Crista quando esta surge nas costas da zaga, a goleira já saindo em cima dela, mas Crista deixa a goleira para trás com uma arrancada, ficando com o gol todo aberto, duas defensoras passando desesperadamente pela goleira para ir se posicionar logo à frente da linha, a guarda-redes ainda caída.

Aglaia já começa a se levantar do sofá com os braços meio erguidos, prestes a gritar “gol”, quando uma quarta defensora aparece dando um carrinho violento em Crista, que cai por cima da outra jogadora. O pênalti é marcado imediatamente e a atleta que cometeu a falta leva um cartão amarelo.

– Ai… – Aglaia bota as duas mãos na cabeça, aflita, mas logo respira aliviada quando vê Crista se levantando sem maiores problemas.

– Você sabe que uma vitória delas significa que nós ficamos mais longe do título, certo? – lembra Lumia.

– Mas nós temos várias amigas na Red Phoenix – replica Aglaia – eu vou torcer por elas, ué! Além disso, eu aprecio futebol bem-jogado!

– Além da sua namorada, não é?

– Lumia.

– Sim, Aglaiazinha linda do meu coração?

– Eu não vou nem falar nada.

O pênalti é cobrado e convertido por Carmen, com um chute forte no canto direito.

– 4 a 0 – Lumia assovia admirada – e ainda tem meia hora de jogo.

Mas depois do quarto gol, a Red Phoenix diminui o ritmo. Storm e Carmen são tiradas do jogo não muito depois, deixando Crista e Kyveli fazendo o quarteto ofensivo com duas reservas. As Granpolis ganham mais espaço no jogo, com a equipe da Red Phoenix recuando, mas é óbvio que Crista ainda está jogando com todo o seu potencial, “e provavelmente está desobedecendo às ordens da treinadora de ajudar na defesa”, reflete Aglaia – o ritmo veloz dela não é seguido pelas suas companheiras, numa postura mais segura e apática com a vitória garantida.

– Será que ainda temos chance? – se pergunta Lumia, baixinho – quando as quatro estão juntas, elas parecem imbatíveis…

– A defesa delas não é tão boa quanto a nossa nem de longe – retorque Aglaia.

Nos acréscimos, Crista demonstra aquela sua mágica mais uma vez: a defesa dá um chutão pra frente de forma despretensiosa e a meio-campista não consegue resistir à ideia de surpreender a todos mais uma vez. Ela mata a bola no peito com o corpo virado de lado, conduzindo a trajetória dela para longe da marcadora e, quando a defensora adversária tenta dar o bote, Crista agilmente levanta a perna à meia-altura e dá um toquinho na bola de novo, mandando ela por cima da defensora adversária e recuperando do outro lado. Depois disso, o que se vê é uma correria desenfreada da meio-campista na direção do gol.

– Caramba – surpreende-se Lumia, enquanto Aglaia se inclina mais pra frente no sofá, os olhos completamente vidrados no lance – diga o que quiser, pra mim ela tá totalmente recuperada.

Uma outra defensora se aproxima rapidamente pelas costas de Crista. Ela agarra a jogadora pelos ombros e tenta dar um carrinho, mas Crista dá um toquinho na bola, jogando-a por cima do corpo da atleta e pulando logo atrás, evitando o carrinho e continuando em disparada na direção do gol, sozinha.

Nesse momento, Crista só tem um objetivo. Só o que ela vê é o conjunto de traves e rede com uma goleira vestida toda de preto que se coloca no seu caminho. Não existe mais nada além daquilo: não ouve som algum, não enxerga coisa alguma. É como se o mundo inteiro ao redor daquele gol fosse o vácuo sem cor do espaço.

Antes mesmo de Crista invadir a área, a goleira Castillero já vem agressivamente em sua direção, tentando fechar seu ângulo. As pernas da garota se movem por conta própria: ela pedala três vezes, dá um drible de corpo para a direita e corta para a esquerda, deixando Castillero a ver navios, estirada no chão e completamente humilhada pela segunda vez no jogo.

E vendo o gol completamente livre, Crista põe toda a força que tem na perna direita para enfiar uma bicuda na bola. Ela carrega aquele chute com toda a força do seu ódio, da sua determinação, da sua recusa a desistir agora com essa oportunidade enviada dos céus. Quando a bola estufa a rede, ela sente toda aquela pressão desaparecer. Nem que por um momento. Um único momento onde ela sente os músculos dos seus ombros e sua torrente incessante de pensamentos relaxar. “Essa é pra você, Caio”, ela pensa, correndo para a bandeirinha do escanteio lentamente enquanto os efeitos da explosão de adrenalina se dissipam. Ao chegar na bandeirinha, ela arranca a camisa vermelha-e-vinho da Red Phoenix, mostrando a camisa debaixo.

É uma camisa branca com uma foto de seu irmão sorrindo e as palavras “te amo, maninho” escritas em tinta guache vermelha logo abaixo da foto. A garota exibe sua camisa para a arquibancada, a expressão mais relaxada que seu rosto conheceu durante todo aquele dia, antes de se virar de costas para a torcida apontando para o céu. Os sons da comemoração parecem tão distantes… Crista observa aquele azul-escuro praticamente sem estrelas visíveis, e aquela pergunta que surgiu na sua mente no dia daquela ligação torna a retumbar no seu interior. Lentamente, ela faz um sinal de coração com as mãos e sem cortar contato visual com o céu, pergunta:

– Você está me vendo, maninho?

E no instante seguinte, o baque de alguém a levantando do chão, seguido por gritos de comemoração de suas companheiras a trazem de volta à realidade.

Enquanto volta para o seu lado do campo para o reinício do jogo, Crista recebe um cartão amarelo pela comemoração. Ela já tinha plena consciência que isso ia acontecer, que provavelmente a treinadora Moon não vai mais dar paz aos seus ouvidos pelo resto da semana, mas precisava fazer isso. Desde que teve aquele sonho, isso tem estado em sua mente. Não poderia ter sido de outra forma.

O jogo não dura nem dois minutos a mais.

Crista caminha para o vestiário se sentindo tão leve que nem uma bronca da chata da sua treinadora poderia estragar seu momento agora. E ao entrar, é como se a treinadora já a esperasse, recostada na parede ao lado da porta.

– Bom jogo. É esse tipo de objetividade que eu espero de você – ela diz, num tom calmo e indiferente – ainda que a sua disciplina ainda precise ser trabalhada. Aquele cartão foi totalmente desnecessário.

– Obrigada – de alguma forma, Crista entende exatamente o que foi dito. Sorri de lado e vai se sentar, fechando os olhos. Aproveita essa sensação boa de relaxamento que ela sabe que não vai durar. Ela percebe alguém se sentando bem ao seu lado.

– Belo gol, Cris – elogia a voz admirada de Carmen. Crista apenas sorri em resposta, enquanto Carmen se levanta com uma toalha e roupas debaixo limpas para ir tomar uma ducha. Depois de descansar um pouco, ela pega sua própria toalha na mochila e começa a caminhar na direção dos chuveiros. Storm passa por ela, indo na direção de outro chuveiro, com sua própria toalha pendurada no ombro.

– Storm? – ela chama, instintivamente. A mulher para onde está e sequer se vira para olhá-la. As duas não tem se falado direito desde o treino de sexta – me desculpe. Por aquilo.

– Hm. Não se preocupa.

Um silêncio ensurdecedor se põe sobre as duas. Lentamente, Storm se vira para encarar a companheira.

– Quem é aquele cara na sua camisa? – Crista não consegue evitar olhar pra baixo, se lembrando mais uma vez do dia daquela ligação, mas consegue encontrar forças para voltar a sorrir ao se lembrar do que fez hoje. Ela torna a levantar os olhos e os fixa profundamente nos olhos de Storm. Seu sorriso abre ainda mais quando ela responde.

– Meu irmão.

Ela não percebe, mas seu tom sai cheio de orgulho. Storm a oferece um sorrisinho, como quem tenta transmitir uma mensagem a qual Crista não é capaz de captar.

– Eu dediquei meu primeiro gol como profissional à minha esposa – ela conta, falando baixinho. Quando Crista pensa que ela vai continuar e contar a história completa, Storm se vira e adentra o chuveiro mais próximo.

Suspirando, Crista faz o mesmo.

Se pergunta se sua mãe e seus irmãos no Brasil viram o jogo de hoje. 

Ao terminar sua ducha, Storm volta aos bancos do vestiário e se senta com sua mochila no colo, esperando que as outras terminem para voltar ao hotel. Enquanto espera, ela busca seu celular no bolso externo para conversar com sua esposa. Em vez disso, dá com uma série de mensagens de Lumia. Ela lê algumas e começa a rir.

– Galera, vem aqui ver uma coisa! – ela chama.

relâmpago macqueen

capit

capta

CAPITÃ

REPORTANDO DAS LINHAS INIMIGAS

E uma foto toda tremida com um pedaço da cara de Lumia colada na câmera e uma Aglaia de top e minishorts correndo atrás dela. Logo o vestiário se enche de risadinhas.

– O que vem depois?! – alguém pergunta e Storm continua descendo a conversa.

relâmpago macqueen

eu dwsdobro o pntjs fraco dos ingimos capita

porra mt difícil d igiasa correndo

ponto fraco

dos inimigos

descobri

O SEGREDO

A mensagem seguinte foi enviada vários minutos depois das originais. É uma foto de Aglaia no sofá, sentada com o corpo todo inclinado pra frente e os dois cotovelos sobre o joelho, com as mãos no queixo, e a televisão ligada de fundo bem num momento em que Crista está com a bola.

relâmpago macqueen

OBSERVE

SEU MOMENTO DE VULNERABILIDADE

E É HORA DE EXPLORARMOS SUAS FRAQUEZAS!

E um videozinho curto, dessa vez de Aglaia pulando no lugar toda sorridente, soltando gritinhos agudos de comemoração, enquanto a TV de fundo foca em Carmen comemorando seu gol de pênalti e Crista empoleirada em suas costas, com o resto do time ao redor.

relâmpago macqueen

e dá pra vocês pararem de vencer suas vadias????

injustiça

vcs já foram campeãs ano passado

agr é nossa vez

egoístas

MAS ENFIM VOLTANDO AO ASSUNTO

SERÁ Q A NOSSA AGLAIAZINHA FINALMENTE VAI DESENCALHAR????

As risadas ficam cada vez mais fortes até se tornarem gargalhadas conforme Storm passa a conversa pra baixo, revelando novas palhaçadas de Lumia e fotos de Aglaia obcecada com a televisão.

– Qual é a graça? – pergunta uma Crista curiosa com uma toalha enrolada na cabeça e outra sobre os ombros, sem a menor preocupação com o seu corpo exposto, saindo de um dos boxes. No começo, havia sido estranho para o resto do time a presença completamente despudorada da brasileira, mas a essa altura a maioria das atletas já se acostumou. Pelo canto dos olhos, Storm vê Kaan’uh Moon dar um tapa na própria testa, desviar o olhar e caminhar rapidamente para fora do vestiário. Ela é uma das que nunca se habituou. Rindo baixinho, Storm chama Crista com um gesto, que se enfia no meio das outras jogadoras e se senta ao lado da companheira, completamente à vontade, enquanto seca o cabelo distraidamente.

– Consegue entender? – pergunta Storm mostrando o celular, e todos os olhares se tornam para Crista, alguns com expectativa, outros com uns meio-sorrisos de provocação.

– Mina, eu num falo gringuês não – diz Crista, com um sorrisinho de incredulidade. A verdade é que ela até consegue entender uma coisa ou outra, mas ainda não confia o suficiente em suas habilidades – mas essa foto aqui tá engraçada.

Ela indica a primeira foto, de Lumia correndo de Aglaia. Storm deixa transparecer um sorrisinho.

– Lumia tá falando que a Aglaia tá caidinha por você – Crista desvia os olhos e exibe um sorriso de canto de boca.

– Ah, mano. Sacomé né – ela tem um tom metido – quero ver é não ficar caidinha na mãe aqui.

– Aham – Storm concorda ironicamente e ri, traduzindo o diálogo às outras em seguida.

– Ih alá, tão rindo mas no fundo sabem que é verdade – Crista debocha em tom de brincadeira.



NOTAS FINAIS

Momento cultura:

“Era fofo ouvi-la tentando se comunicar em inglês, e seu sotaque, mais fofo ainda.” – existem muitos estrangeiros que acham o sotaque brasileiro fofo. Para explicar a razão, eu vou usar um exemplo: “Brad Pitt”, por muitos brasileiros não falarem inglês ou por terem sotaque forte mesmo falando inglês, pronunciam “brédi piti” (atenção ao “i” no final), o que os estrangeiros ouvem como “Brady Pitty”. Colocar Y no final de algumas palavras em inglês sugere diminutivo, por isso no caso do exemplo, o que eles nos ouvem dizer é “Bradzinho Pittinho”. Essa é uma das razões que a Aglaia acha fofo o sotaque da Crista.

E gente, eu ajudei a organizar e participei de uma antologia chamada “Antologia: Distópico” que foi publicada recentemente. São 6 contos no tema “distopia”, algumas delas muito boas e eu fiquei bem orgulhosa do “conto” que eu inscrevi na antologia, é um conto sobre duas árabes sáficas badass caçadoras de tesouros. Ela está disponível no Spirit, Inkspired e Wattpad nos seguintes links:

Wattpad: https://www.wattpad.com/story/280811510-antologia-dist%C3%B3pico

Spirit: https://www.spiritfanfiction.com/historia/antologia-distopico-22801177

Inkspired: https://getinkspired.com/pt/story/157333/antologia-distopico/



Notas:



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