Amores de Sofia

4. SEXTA-FEIRA PRÓXIMA

Existia uma rotina semanal que era cumprida, na maioria das vezes, de forma leve e reflexiva. Sofia estava naquela fase da vida em que as pessoas refletem sobre tudo, principalmente sobre o tempo e sobre pessoas.

Qual a nossa relação afetiva com o tempo? Essa era uma pergunta que Ida sempre fazia à sobrinha. A Tia vivia levantando questionamentos sobre o que realmente era importante na vida. “Não deixe o tempo atropelar você, Sofia.” Isso virou um mantra para a jovem mulher, ter tempo para o que era realmente importante e para quem era importante.

A partir disso, quando assumiu de vez o controle do Aquarela, decidiu manter o bar fechado dois dias por semana – segunda e terça-feira – e abriria de forma alternada em alguns domingos. Caso modificasse algumas coisas, poderia manter a equipe, os lucros – quiçá aumentá-los – e ter tempo, ela e todos os outros que faziam parte de staff do bar.

Depois de várias reuniões e prospecções, o Aquarela abriria quatro dias por semana e em alguns domingos, tudo foi reorganizado, fornecedores foram trocados, alguns permaneceram, a ideia era dar preferência para pequenos, buscar produtos frescos, menos industrializados, ter diferenciais, tanto no cardápio, quanto nos produtos.

Toda essa mudança priorizava o tempo, assim como a qualidade, se o tempo era a chave de tudo, Sofia precisava lidar com essa metáfora física de forma plena, ou, pelo menos, quase plena.

Na semana seguinte ao bilhete, Sofia passou resolvendo coisas relacionadas ao bar, sempre ia ao Mercado Público, falava com os fornecedores, usava parte da semana para resolver compromissos pessoais, como ir ao seu terapeuta uma vez por semana, frequentar as aulas de Ioga, meditar, raramente conseguia, tinha uma cabeça acelerada demais, mas sua professora de Ioga sempre tentava ao final das aulas. Na maioria das vezes, Sofia estava de olhos fechados e a cabeça a mil e, naquela semana, vez por outra, o bilhete retornava ao pensamento da jovem empresária.

A semana foi passando e a quarta-feira chegou. Naquela quarta, o movimento de fim de tarde era sempre diferenciado, homens de paletós inundavam o salão, as mesas de sinuca ficavam cheias, e os dardos voavam pelos espaços destinados a eles, imprimindo uma áurea de disputa masculina boba e engraçada.

O público de quarta era meio Jack Kerouac, Sofia adorava, havia uma escola de escrita próxima ao bar, e uma parceria foi formada com a dona, como quarta o movimento do bar era relativamente mais calmo, das 17h às 20h, o bar tinha um pequeníssimo cardápio de café, expressos, cappuccinos, mocas, brownie e croissant feito na casa, o mais tradicional francês possível.

Sofia adorava as quartas, os beatniks, foi assim que ela os apelidou. As mochilas, os cadernos, os notebooks e a concentração dos possíveis escritores davam ao bar um ar quase juvenil e sonhador, era ali, naquele momento, que Sofia compreendia perfeitamente o poder do tempo, aquilo que tanto sua tia falava.

Naquelas horas, o tempo do bar era outro, no lugar do cheiro de cerveja o de café, o cheiro do chocolate amargo que saía do forno com os brownies quentes suplantavam os outros cheiros do bar, o tilintar das xícaras, o pequeno barulho das garrafinhas de água com gás, que em uníssono, poderiam forma uma orquestra de letras que preenchiam páginas e páginas de possíveis sucessos literários.

Era um período em que o bar estava relativamente cheio, mas tinha pouco barulho, ou barulhos pequenos, com uma atmosfera quase relaxante e inebriada pelo cheiro de café, Sofia abriu a gaveta do caixa e viu novamente o bilhete que recebera.

Achou o guardanapo de sexta-feira passada, sorriu porque o texto era inteligente e bem escrito, as mulheres tinham essa capacidade cognitiva aguçada que os homens (pelo menos não alguns) não tinham, Sofia surpreendeu-se pensando no tipo de mulher que teria escrito, ao mesmo tempo ruborizada, sentiu-se curiosa e com vontade de conhecê-la.

Olhou o guardanapo por uns cinco minutos, imaginando a coragem, a inteligência, qual das mulheres da mesa de sexta era Marina? Imaginava que fosse a que lhe encarava, mas não tinha a certeza, sentiu um leve arrepio, será que na sexta ela viria lhe falar?

Como seria se relacionar com uma mulher? Nunca tinha pensado nisso, apenas porque nunca tinha se interessado por uma, mas isso não estava fora de cogitação, fora criada para amar, não importa quem era a pessoa, o amor deveria estar entre dois seres, ouviu isso de seus pais e de sua tia sempre.

Depois de várias conjecturas, resolveu retirar o bilhete da gaveta e guardou na carteira, pensaria nele novamente e na sua dona na sexta mesmo, agora precisava voltar-se aos beatniks que adorava e sempre acabava dando um brownie ou café de graça.

Sexta-feira sempre fora um dos dias preferidos de Sofia, talvez, porque suas melhores lembranças tenham ocorrido coincidentemente nesse dia da semana. O dia que promete ser “aquele que abre o descanso” para uns, mas no caso dela, as memórias mais marcantes vinham desse dia, porque era justamente às sextas-feiras que sua família se reunia no amplo apartamento de Higienópolis, ciceroneada por sua tia Ida, ao som de Nina Simone, quem Sofia aprendeu a amar e apreciar por causa dela.

Nina (como sua tia Ida a chamava) era a personificação da força, dotada de uma consciência humana sobrenatural, Tia Ida ouviu falar de Nina Simone na década de 1980, quando viajava de carro por alguns locais americanos e ao passar pelos estados mais problemáticos da época: Lousiana, Alabama e Mississipi, que lutaram uma guerra civil entre direitos de negros e brancos. Ida conheceu Nina Simone numa apresentação em um bar de jazz em Mississipi, no início, Ida não entendia a singularidade da perfeição musical daquele ser mítico sentado ao piano, depois, anos depois, Ida comprou o primeiro LP de Nina Simone e reconheceu a mulher que vira anos antes. Nina lutou severamente a favor dos direitos dos negros, cantou no enterro de Martin Luther King e apanhava de forma violenta do marido. Teve que mudar de nome, pois seus pais eram metodistas e proibiram Nina de cantar nos cabarés e bares, dificultando seu crescimento profissional. Exímia pianista, começou a cantar por acidente, ao ser obrigada por um dono de bar, caso contrário, teria que parar de tocar piano e dá lugar a um outro cantor.

Sofia aprendeu a amar Nina Simone, não tinha um apreço tão grande assim pelo Jazz, mas com Nina era diferente. A voz de Nina era a representação das reuniões de sua família tão amada e de sua tia, então, às sextas, o dia começava ao som de Nina Simone.

Com os óculos Carrera no rosto, o relógio que pendia no seu pulso magro, com roupa de Yoga, Sofia deixava o apartamento apenas para retornar de madrugada. Sua rotina era sempre a mesma, às 9:00h – academia –, depois trocava de roupa na academia mesmo e ia resolver alguma pendência do bar e em seguida se dirigia ao seu local de emprego.

Sexta-feira era o primeiro dia da semana que o Aquarela abria para o almoço, então, de qualquer forma, ela tinha que chegar o mais cedo ao bar para resolver as pendências e preparar tudo. Durante o almoço, o Aquarela recebia praticamente executivos apressados e que buscavam uma boa comida, portanto, desde que Sofia resolveu ampliar os serviços do bar, sua permanência no local era maior e o trabalho também.

Com os dias corridos e sobrecarregados, o bilhete que recebera semana passada fora esquecido por completo. Depois do expediente do almoço e de ver seu bar lotar novamente, Sofia foi direto ao escritório para descansar, falar com os pais e ver alguns e-mails.

A noite caía e o Aquarela já recebia os primeiros clientes, animados, engravatados, e a sonoridade do ambiente deixava Sofia com um sorriso no canto da boca. Sofia descia sempre por volta das 19:30h e ficava no balcão, na verdade, atrás do balcão, sempre disponível aos olhos amorosos e protetores de Carlão, seu anjo da guarda.

A mesa do canto já recebia os primeiros da turma, mas ainda não havia nenhuma mulher, portanto Sofia desviara a atenção da mesa e fora circular pelo bar. Ida sempre dissera para a sobrinha que um bom negócio se sustentava com a mão do dono, certa de que a tia tinha razão, Sofia era uma presença constante nas mesas de clientes e de novos clientes, perguntando, questionando o atendimento e a qualidade das comidas e bebidas, conhecida pela maioria, recebia tudo de bom grado, filtrava umas indiretas básicas, mas, na maior parte do tempo, os clientes eram respeitosos e conheciam bem o Carlão, então Sofia não enfrentava problemas, pelo contrário, sempre era muito bem recebida pelos clientes e ouvia elogios constantes sobre as instalações, comidas e bebidas do Aquarela.

Sofia esquecera por completo a mesa de sexta, sabia que o bar estava completamente lotado pelo horário, às 22:00 horas era o pico, e de relance observou um olhar em sua direção, imediatamente, lembrou do bilhete e percebeu que a autora já havia chegado, Marina.

Havia um problema para ser resolvido na cozinha, uma das mudanças do Aquarela foi a chef, Sofia queria uma cozinha moderna, estrelada, sabia que contratar uma chef poderia lhe trazer problemas, os magos da cozinha são difíceis às vezes, ela bem sabia disso.

Pauline era meio brasileira, meio francesa, tinha um nariz arrebitado, magra, com gestos francesas e comportamento brasileiro era a mistura perfeita que Sofia queria para a cozinha do Aquarela, mas era espirituosa demais, por vezes até demais.

Imagine colocar numa mesma cozinha uma senhora de 60 anos sem formação acadêmica, mas que faz uma comida brasileira divina sem técnicas rebuscadas e uma chef recém-chegada da França? Essa mistura que dava mais do que certa nos pratos, na cozinha era quase explosiva.

Sofia fora chamada à cozinha, Pauline decidira ir embora mais cedo, o que não era bom sinal numa sexta às dez da noite, no pico de funcionamento do bar. Quando entrou no recinto, viu D. Glória bem satisfeita assando um filé, enquanto Paulina estava de braços cruzados e parte da equipe sem saber o que fazer, mais uma vez havia ocorrido um desentendimento entre as duas, muito mais por birra de ambas, do que por diferenças gastronômicas. Sofia riu, mas estava preocupada com a frequência desses desentendimentos.

A primeira coisa que fez foi abraçar Pauline, lembrou-se da tia, quando não souber exatamente o que fazer: abrace, um abraço salva a maioria das pessoas e dos problemas. E assim, ela o fez. Abraçou quase todos na cozinha, roubou um pedaço de carne de ambas, disse que estava muito gostoso, mas precisava das duas trabalhando na melhor forma possível e pediu para fazer a famosa reunião da madrugada para que os trabalhos no coração do Aquarela fossem alinhados, naquele momento falou como chefe e dona com voz firme:

— Avisem aos familiares que todos chegaram mais tarde hoje, faremos reunião após o fechamento do bar, se teremos alimento para a reunião, isso vocês decidem, por hora, quero todos trabalhando.

Olhou para Pauline e disse: — Inclusive você!

Recado entendido, panela jogada de forma brusca e todos ouviram o chamamento da chefe, a cozinha voltou a funcionar, não da forma que ela queria, mas isso não importava naquele momento, aprendera que, em determinadas circunstâncias, os problemas só poderiam ser contornados, não resolvidos.

Retornou ao salão meia hora depois, a fila para entrar no Aquarela já estava grande, tinha escutado Carlão falar pelo rádio que usava, quer dizer que o trabalho seria insano naquelas próximas horas, Sofia gerenciava tudo atentamente, decidiu ir para o balcão, um dos melhores lugares para ficar.

A torneira de chope não parava, a espuma perfumava o ambiente e Sofia adorava aquele cheiro de cerveja, despachou alguns drinks, olhou no sistema o tempo de espera, pediu mais agilidade e quase quarenta minutos depois, as coisas começaram a ficar mais calmas, foi quando decidiu olhar para a mesa de sexta.

Foi quando avistou Marina a olhando e teve a plena certeza, naquele exato momento, que ela era a autora do bilhete, sustentou o olhar e sorriu docemente, queria que ela soubesse que lembrava do bilhete e que sabia que era ela.

Viu que Marina bebia chope, chamou um dos garçons que estava passando e entregou uma caneca, pediu que ele entregasse a Marina e dissesse que era por conta da casa.

Observou tudo de longe, a reação, o sorriso, Marina levantou o copo e agradeceu, Sofia retribuiu o agradecimento e sorriu. Conforme os minutos iam passando, o fluxo de pessoas diminuía, o Aquarela também era um bar de passagem, muitas pessoas iam primeiro lá para tomar alguns drinks e esticar a noite, já que ele fechava no máximo uma da manhã.

Recebeu o pedido de fechamento da mesa de sexta e decidiu que ela mesma levaria conta, uma parte dos amigos já tinha ido embora, mas Marina continuava por lá e vez por outro elas se olhavam.

Marina achava Sofia linda, desde a primeira vez que a viu, sentiu aquele famoso nó no peito, sempre a observava de longe, demorou meses para decidir mandar o bilhete, percebeu que não tinha nada a perder e imaginou inúmeras vezes aquele primeiro encontro, aquela primeira conversa e parecia que naquele momento, tudo aquilo se aproximava de forma inquieta.

É verdade que estava um pouco anestesiada dos chopes, mas nada que tirasse sua total atenção daquela mulher que queria, como há tempos não desejava nenhuma outra. E Sofia foi, e chegou, e se aproximou dela, e ela sentiu o arrepio que imaginava que sentiria. E simplesmente sorriu.

— Boa noite a todos e todas, pediram a conta!? Foi assim que Sofia chegou ao lado dela.

Foi recepcionada de forma animada, alguns já estavam mais pra lá do que pra cá, entregou a conta especificamente a Marina e disse um oi bem baixinho, recebeu um sorriso largo em retribuição e um oi quase inaudível.

— O que você acha de tomarmos mais um chope, o movimento do bar está bem mais calmo, você topa?

— Claro, vou pagar a conta com o pessoal e depois vou até o balcão e conversamos, tudo bem?

— Claro! Sofia se despediu de todos, deixou um garçom para receber os valores e voltou para trás do balcão. Sentiu os olhos de Carlão sobre si, somente ele sabia do bilhete e deu toda a força do mundo para que Sofia conhecesse a mulher que havia enviado.

Vinte minutos depois, Marina estava sentada no balcão esperando Sofia. Ela pediu desculpas e cinco minutos, retornou segurando dois chopes e levou Marina para uma mesa vazia no fundo do bar, perto do jogo de dardos.

Após sentarem, Marina iniciou a conversa:

— Desculpa a audácia do bilhete, mas não resisti!

— Confesso que fiquei surpresa, pensativa e lisonjeada.

— Bem, você é uma mulher muito bonita, Sofia, não deve ter sido a primeira vez que recebeu bilhetes em guardanapos dentro de contas do seu bar.

Sofia riu. — É verdade, mas foi o primeiro bilhete que recebi de uma mulher, então, como eu disse, você me pegou de surpresa.

— E isso é ruim? – Marina perguntou.

— Depende!

— Depende de quê?

— Se eu gosto de surpresas.

— Você gosta?

— Depende.

— Para tudo você responde depende?

— Depende. E Sofia riu. — Me desculpa, Marina, gosto de surpresas boas e devo confessar que seu bilhete foi uma surpresa muito boa mesmo.

Havia um flerte natural de Marina, mas Sofia se mantinha distante, de forma educada e elegante como era feitio dela, e Marina percebeu, todavia continuava de forma também educada a paquerar a empresária.

A conversa foi leve e inteligente, cheia de cultura de coisas em comuns, até que Pauline apareceu no salão e de longe, Sofia sabia que precisava encerrar, observou o olhar de Marina olhando Pauline. E a pergunta saiu antes que ela pudesse sequer raciocinar: — Namorada?

Sofia gargalhou:

— Não! Chefe de cozinha espirituosa e problemática.

— Sei que precisa resolver coisas e eu preciso realmente ir está tarde, mas gostaria de fazer um convite e você não precisa responder agora. Domingo, uma grande amiga vai expor pela primeira vez na galeria da minha família, gostaria de convidar você se não tiver nada para fazer, claro. De antemão, não seria um encontro amoroso, mas sim de duas amigas que estão se conhecendo, então pode ficar tranquila em relação a isso. Sofia sorriu docemente, mas não respondeu nada.

— Já vou indo! – Marina levantou, pegou um guardanapo, uma caneta e escreveu seu número e entregou a Sofia.

— Se decidir aceitar, pode me enviar uma mensagem e a gente combina, se quiser ligar também não tem problema. Marina pegou a bolsa e inclinou a cabeça e beijou o rosto de Sofia, estendeu a mão, apertou a de Sofia e saiu sem esperar resposta nenhuma, deixando a empresária pensativa e ansiosa.



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