Luz para florescer

Capítulo 24

Sete dias passaram invariavelmente iguais com relação ao estado do jovem lorde. Suzana ficava a maior parte do tempo no hospital com Eleonora ao seu lado dando-lhe apoio incondicional e suportando estoicamente as alfinetadas do velho lorde.

Naquela tarde, Eleonora fazia companhia a Robert. Suzana saíra para tomar um banho antes do início da noite. A loirinha lia, concentrada, um livro de contos de Clarice Lispector. De repente, uma estranha sensação a fez retirar os olhos do livro e olhar em direção à cama. Eleonora deu um salto da poltrona. Os olhos verdes de Robert a fitavam diretamente. Com o coração aos saltos, Eleonora perguntou:

– Robert?

O rapaz não respondeu. Piscou lenta e demoradamente e olhou diretamente para Eleonora como se para confirmar que a reconhecera. Adormeceu novamente em seguida.

Suzana chegou poucos minutos depois que Eleonora lhe telefonou contando a novidade. No rosto da mulher amada, Eleonora pôde perceber esperança e ansiedade misturadas em igual medida. O médico examinou Robert e mais uma vez recomendou paciência. O breve abrir de olhos podia significar muito…e nada. Percebendo a exasperação que tomava conta dos nervos exaustos de sua mulher, Eleonora falou com doçura, mas com inequívoca firmeza:

– Ele me reconheceu, Suzie. Eu vi isso nos olhos dele. Robert vai retomar a consciência e se recuperar. Eu tenho certeza.

Na manhã seguinte, a predição de Eleonora confirmou-se com indescritível felicidade. Robert abriu os olhos mais uma vez, olhou para a irmã que se levantara num salto da poltrona e sorriu debilmente. Eleonora chamou o médico.

Robert acordara.

Desde o dia em que acordou, o jovem lorde Alcott melhorou a passos largos. Uma semana depois, os três conversavam tranqüilamente enquanto Suzana alimentava o irmão com uma sopa de cor estranha, mas de aparência consistente. Robert engolia a gororoba empurrada impiedosamente por sua irmã não sem recorrentes reclamações entre uma colherada e outra.

– Aquela árvore não conseguiu me matar, mas tenho minhas dúvidas com relação a esta comida – reclamou Robert pela décima vez.

– Cale-se, Bobby, e coma. Você precisa ficar forte – retrucou Suzana.

De fato, Robert ainda estava muito magro. Ele que já era de compleição esbelta, estava, no entanto, visivelmente muito abaixo do peso. Encontrava-se com o rosto encovado e macilento e os cabelos ruivos raspados lhe conferiam um ar ainda mais debilitado. Suzana o alimentava sem misericórdia. Robert revirava os olhos, mas comia obediente. Nesses momentos, ele olhava como um cãozinho manhoso para Eleonora que os observava com um sorriso divertido nos lábios.

No final daquela tarde, Robert recebeu a visita do avô.

– I hope you have learned something with this…misfortune.

– Yes, grandfather.

– You should be more responsible – continuou o velho lorde. – One deception is enough for this family – disse e olhou afrontosamente para Suzana.

Suzana se levantou de imediato com os olhos azuis perigosamente semicerrados. Robert se antecipou:

– Suzie, sits down, please. Grandfather, don’t worry. I will go back shortly to my responsibilities. But, I will ask to you with all respect. Never, never again you will insult my sister in front of me. I won’t tolerate.

Robert foi sereno, mas contundente. O velho Lord Alcott não se pronunciou mais e Suzana percebeu com indisfarçável orgulho que o seu irmãozinho havia crescido, afinal.

Alguns dias depois, Robert voltou para casa. Suzana contratou um enfermeiro para ajudá-lo. Ele iniciaria a fisioterapia no dia seguinte. O ruivo já recuperara boa parte da cor saudável que ostentava na face antes do acidente e engordara um pouquinho. No mais, o seu natural bom humor cuidava para que ele já tivesse uma aparência de franca recuperação.

Suzana e Eleonora prepararam-se para se despedir. Robert reclamou como um menino mimado:

– Mas, tão cedo? Eu não estou tão bem assim, ouviram? Posso ter uma recaída ou algo pior…

– Bobby, você não terá uma recaída. Você está em plena recuperação. Além disso, qualquer um que olhe para você perceberá que apesar de ainda estar nessa cama, você é forte como um touro. Portanto, pare de agir como um bezerro desmamado.

– Eleonora…- Robert chamou à procura de uma aliada.

Eleonora riu bem humorada. Nos últimos dias, estes pedidos de socorro tinham sido uma constante. Robert sabia, com mal dissimulada esperteza, que a loirinha era a única capaz de dobrar a irmã com rara facilidade. Para o azar do jovem ruivo, Eleonora era tão meiga quanto era justa e equilibrada. Foi com um suspiro resignado que Robert escutou Eleonora concordar com Suzana.

– Já está na hora, Robert. Nós adoraríamos ficar mais tempo com você, mas além de o estarmos deixando em boas mãos, nós duas temos muitas coisas pendentes para resolver – Eleonora afagou com imensa ternura o cabelo ainda rente do irmão caçula de sua mulher. – Nós voltaremos assim que pudermos para visitá-lo. Eu prometo.

Robert fez uma cara de desolação e abandono que seria capaz de derreter o coração mais empedernido. Suzana se adiantou olhando duro para ele e fingindo zanga:

– Não se deixe levar por essa carinha desprotegida que esse moleque utiliza para ter o que quer desde que saiu dos cueiros, Elê.

– Que injustiça, Suzie – Robert reclamou.

– Eu é que sei, pestinha.

Risadas gerais fecharam o anúncio da despedida de Eleonora e Suzana.

Suzana e Eleonora partiram dois dias depois. Suzana para Los Angeles e Eleonora para São Paulo. Marcaram de se encontrar dali a dez dias.

Cada uma, sentada na poltrona de seus respectivos vôos, olhava pensativa pela janela do avião. Finalmente o furacão contínuo dos últimos meses parecia ter serenizado. Mas alguma coisa persistia em incomodar: ainda estavam separadas, mesmo que temporariamente.

Suzana se indagava do porquê de estar sentindo um inexplicável amargor na garganta e uma saudade dolorida, se fazia menos de duas horas que havia se despedido de sua loirinha.

Eleonora se perguntava se, em algum dia de sua vida, esta absurda sensação de temor que lhe tomava o peito desaparecia toda vez que Suzana por qualquer motivo se apartasse dos seus olhos.

A manhã amanheceu chuvosa em São Paulo. Eleonora olhou para o céu cinzento pela janela do pequeno apartamento que ocupava há cerca de uma semana. Ela deveria estar aborrecida com a chuva inconveniente que impedira sua corrida diária no Ibirapuera justamente numa manhã em que um bom exercício físico a ajudaria a diminuir a ansiedade desse dia tão especial…Poderia…Mas nada seria capaz de aborrecê-la no dia em que Suzana chegaria para morar definitivamente no Brasil. Entretanto, isso não significava um correspondente estado de tranqüilidade. Pelo contrário. A sua expectativa era tão grande que se sentia mais próxima de uma insurreição das suas víceras revoltadas – escapando há horas do congelamento eterno pelo frio polar que lhe tomara o estômago – do que de uma calma e despreocupada espera. Esse tipo de fleuma impassível de monge budista passava longe da impaciência que lhe tirara o sono desde as três da madrugada.

Respirou fundo e cerrou a cortina.

Os quinze dias de Suzana nos EUA se estenderam por um mês. E ainda que se falassem todos os dias e ainda que Eleonora a tivesse encorajado a ficar até que todas as suas pendências profissionais e financeiras estivessem resolvidas, a loira sentia uma saudade quase insuportável da mulher que amava…Isso, fora um agravante constrangedor: o receio quase infantil de que ela pudesse lhe escapar pelos dedos por uma desconhecida e maléfica magia antes que a jovem treinadora pudesse visualizar novamente aqueles inesquecíveis e adorados olhos azuis.

Suzana só chegaria por volta das três da tarde em Cumbica. Eleonora passou as mãos pelos cabelos loiros, desde uma semana atrás, ligeiramente mais curtos. Precisava arranjar o que fazer até lá, senão corria o sério risco de surtar naquele apartamento.

Pensou em Carlinha. “Não!” Ela estava envolvida em um importante projeto de marketing e Eleonora não queria atrapalhar a amiga. Decidiu ver uma exposição de pintores brasileiros no MASP. “Ótimo”, pensou. Ela ficaria, como sempre, por horas entretida no museu. Almoçaria por lá e depois seguiria direto para o aeroporto. A idéia lhe agradou. Pelo menos ocuparia a cabeça com outra coisa que não fosse um rosto marcante ornado por um sorriso de parar o trânsito.

Foi tomar banho.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.