Luz para florescer

Capítulo 13

No domingo, praticamente toda a equipe tirou o dia para curtir o mais puro ócio. A maioria das jogadoras acordou tarde. Ficaram umas batendo papo na piscina do hotel, outras navegando na internet no cyber-café instalado ao lado da recepção.

Menos Suzana.

Ela não saiu do apartamento. Permaneceu quase todo o dia ensimesmada, refletindo sobre o episódio da noite anterior e no que aquilo realmente significaria dali para frente – a descoberta do seu asilado afeto e do poderoso desejo que ela já pressentia, mas que não avaliara a amplitude até o imprevisto acontecimento. O abraço repentino, a ternura e a vontade de protegê-la, a ânsia de amá-la, naquele momento, com toda a intensidade dos desejos libertos de algum baú cuidadosamente abrigado no sótão de seu coração. Por fim, a reação da mulher mais jovem – primeiro, o seu abandono ao abraço inesperado, o descompasso da sua pulsação que a morena pôde perceber no seio palpitante apertado em seu colo. Depois, o sobressalto, a fuga quase desesperada de seu toque como se ele a repugnasse. A indiferença da despedida…

– Inferno! – Suzana quase gritou levantando-se da cama na qual passara metade do dia. Correu os dedos pelo cabelo como sempre fazia em momentos de exasperação. Abriu a pequena geladeira da minúscula cozinha do flat e pegou uma cerveja. Bebeu um longo gole e deixou-se cair sobre o sofá. Soltou uma respiração curta e abafada seguida de um sorriso irônico e triste. O destino ria-lhe na cara. Tivera a prova cabal do que já intuía nas últimas duas semanas. Ela queria Eleonora como nunca. O destino terminou por destruir o trabalho do tempo e escancarou a superficialidade do esquecimento cimentado pelos anos ao jogar-lhe nos braços a sua menina dos cabelos dourados. Para lembrá-la de como é sentir o corpo e a alma aquecidos e encantados. Para lembrá-la, sobretudo, de quem fora a única pessoa que um dia lhe proporcionara esta sensação.

Pegou o telefone num impulso.

– Camilla? Ocupada? Será que eu podia ir até aí para a gente conversar um pouquinho? Eu estou precisando. “Tá”. Daqui a uma hora, então. Beijo.

Eleonora saiu cedo do apart-hotel. Caminhou algum tempo a esmo pelas avenidas do centro de Curitiba. Em seguida, pegou a jardineira, um ônibus pitoresco em estilo antigo que faz o percurso dos parques da capital paranaense, na Praça Tiradentes. Desceu no parque Barigüi e continuou, pensativa, a caminhada pelas vias do parque repleto de pessoas aproveitando o tímido, porém reconfortante calor do sol do final da manhã fria naquele belo pedaço de verde entre o concreto da cidade.

Eleonora, absorta, mal se dava conta da população à sua volta. Fora ao parque em busca de espaço aberto para meditar livre de paredes claustrofóbicas, perguntas inconvenientes ou presenças desconcertantes. Nem ao menos trouxera o celular. Precisava de paz.

Sentou-se à beira do lago com as pernas dobradas, os braços abraçando os joelhos e o rosto claro e abatido sobre eles. Chorara muito. Como nunca havia chorado desde…Desde que Suzana a deixara sem qualquer explicação. Seu pensamento voltou àqueles dias de aflição e sofrimento. Só ela sabia como fora difícil levantar-se e retomar a sua vida. Só ela sabia o que era esperar inutilmente por um telefonema, uma carta, qualquer coisa que lhe tirasse daquela angústia…Angústia de “mulher parada, pregada na pedra do porto”, mas que não teve direito a um único adeus, nem mesmo a uma falsa promessa misericordiosa. Contudo, de uma coisa ela não sabia. Uma coisa que descobrira ontem ao se desvencilhar dos braços e da suave carícia de Suzana. Ela ainda se sentia magoada. Aliás, muito magoada. Pior do que isso, a descoberta da mágoa camuflada por anos, mostrou-lhe a impossibilidade de postar-se impassível perto de Suzana. Não era apenas a comoção do encontro, aquela mulher ainda mexia com ela de uma forma inquietante. Mas, para a sua exasperação, ela não conseguia distinguir se era porque a presença de Suzana causava-lhe ainda uma amargura que julgava superada ou uma profunda atração que também imaginava extinta.

Levantou-se para retornar ao flat. “Seja como for, não há como continuar do jeito que está”.

Espere aí, Suzana. Você está me dizendo que veio dos Estados Unidos para se apresentar à seleção brasileira e deu de cara com aquela garota loira que virou a sua cabeça há quase dez anos atrás? – Camilla deu um assovio longo de espanto.

Suzana balançou a cabeça concordando.

– Com a exceção de que ela não é mais uma garota, é isso mesmo.

Ambas estavam sentadas uma de frente para a outra na confortável sala de estar da casa de Camilla em um condomínio fechado em Curitiba, cidade para onde ela se mudara depois de casar-se com Mike, um inglês de alma brasileira, diretor de uma multinacional. Ela tinha, hoje, dois filhos lindos de seis e três anos respectivamente e uma clínica de fisioterapia no bairro Chapangnat da capital paranaense, clínica, aliás, onde Suzana faria a sua ultra-sonografia no dia seguinte. Camilla sorriu maliciosa e perguntou:

– E aí? Como é que foi o encontro? A velha Suzana manteve a pose de sempre ou essas pernas intermináveis ameaçaram virar geléia?

Suzana arremessou a elegante almofada que compunha o jogo de sofá em cima da amiga

– Suzana, você precisa parar com essa mania – disse Camilla, rindo abertamente.

– E você precisa parar de me provocar – Suzana respondeu também com um sorriso para a sua amiga de anos. Logo depois, ela continuou com seriedade:

– Seria mentira se eu te dissesse que não fiquei imensamente surpresa. Nunca imaginei encontrá-la de novo. Eleonora era uma figura que eu havia apagado da minha vida. Pelo menos assim eu imaginava. Mesmo depois de revê-la e descobri-la mais encantadora do que nunca, ainda assim eu pensei que se tratasse de uma simples atração por uma mulher bonita e inteligente… Sei lá! Uma recaída… Estava enganada. Foi o que me revelou a noite passada.

– Sou toda ouvidos – Camilla chegou o corpo para frente, colocou os cotovelos sobre os joelhos e descansou o queixo sobre as mãos.

Suzana contou-lhe o que se passara na noite anterior e do que descobrira sobre os seus sentimentos ainda vivos por Eleonora. Camilla ouviu atentamente. Ficou algum tempo, calada, olhando fixamente para Suzana e opinou:

– Pelo o que você me contou, ela também ficou muito perturbada. Só não dá para saber bem o porquê. Em todo o caso e o mais importante é…O que você pensa em fazer?

– Sinceramente, Milla, eu poderia te dizer que não sei, que esta história parece tão complicada quanto a de anos atrás. Veja bem, não é só a proximidade do Campeonato Mundial e toda a responsabilidade profissional, minha e dela, que o envolve. Além disso, e principalmente, ela mudou muito, Camilla. Ela está tão arredia…Tão reservada. Ela me evita sempre que pode, embora delicadamente, em nosso dia-a-dia ou…Bruscamente, como ontem, quando não me permitiu falar o que eu sentia.

Suzana se levantou, caminhou para a lareira e fitou a bela aquarela dependurada acima dela, de modo a não manter contato visual com a melhor amiga. Respirou fundo e começou a falar:

– Ah! Camilla. Somente para você eu poderia confessar o que eu me recusei a enxergar… Enxergar em mim mesma – que loucura! – durante tantos anos, e que agora… Agora está tão claro. É como se… Como se eu tivesse precisado de um choque, um estalo violento e pungente para enxergar o óbvio…

Suzana baixou a cabeça e passou, nervosamente, as mãos pelos cabelos. Camilla, sensata, não se pronunciou e esperou que ela continuasse. Suzana levantou a cabeça, soltou uma expiração abafada e prosseguiu:

– Camilla, eu nunca mais toquei no nome dela, não é mesmo?

– Não comigo.

– Com ninguém.

Suzana soltou um risinho sardônico, curto e triste.

Apesar disso…Engraçado eu não ter te contado isso…Eu nunca vendi aquele Jaguar. É o único carro que mantive além do que era de meu pai. Eu simplesmente não consegui me livrar dele, Camilla!

Camilla continuou calada e pensativa enquanto Suzana caminhava pela sala e continuava com as suas revelações.

– Eu tenho guardado até hoje no fundo do armário… – Suzana riu novamente, mas desta vez como algo parecido com um soluço. – O agasalho da Universidade Santa Cruz, o que eu usava no último jogo. Eu que nunca liguei para isso e não possuo nem mesmo a minha camisa de campeã mundial. Você acredita nisso!?

Suzana, finalmente, olhou nos olhos da sua melhor amiga e os seus olhos eram como dois poços de água clara, tão vívida a tristeza estampada na íris azul. Confessou com rara simplicidade:

– Durante todo esse tempo, e você pode achar isso engraçado se quiser… Engraçado, não. Verdadeiramente patético. Eu nunca mais suportei ouvir a música “Leãozinho” de Caetano Veloso, sem sentir um aperto agudo no peito e, no entanto, sem conseguir mudar de música ou desligá-la. Todas as minhas namoradas, nenhuma com duração significativa em minha vida, eram, invariavelmente, pequenas e loiras. Pelo amor de Deus, minha amiga, onde eu estava com a minha cabeça? Onde eu confinei o meu coração!!?

Camilla, ainda emudecida, levantou-se e foi se sentar ao lado da amiga que desabara, desconsolada, no sofá. Colocou uma mão sobre o joelho dela e com a outra segurou o queixo de Suzana, levantando-o. Olhou-a nos olhos.

– Suzie, primeiro, eu não acho patético ou constrangedor e muito menos engraçado o que você está me contando. Humano, falível e talvez…Um pouco triste, sim. Triste, não por ser desgraçado ou aflito, mas pelo que nos privamos de felicidade por não enfrentarmos a nossa tristeza. E, por isso, você não sabe o quanto me alegra vê-la falando assim. Paradoxal? Não. Já estava mais do que na hora, minha querida, de você aceitar a sua tristeza. Admiti-la. Encará-la. E, então, se despedir dela. Só assim esse vulcão de força, de garra e de vontade que você desviou para tudo quanto é lado, menos para o que é mais importante, vai poder emergir…Para que você possa lutar, minha querida guerreira sem rumo…Lutar pelo que te faz sentir amor.

Suzana deu um sorriso débil e pousou a sua mão sobre a mão da melhor amiga. Camilla continuou:

– Mas, eu devo avisá-la de que esse seu caso pode ser ainda um pouco mais complicado do que você pensa. Lembra-se de que eu te contei que me encontrei com Eleonora naquela noite em que você foi embora sem qualquer explicação?

Suzana sinalizou um sim com a cabeça e recordou-se de que após quase dois meses ligara para Camilla e mal a deixara relatar o seu último contato com Eleonora. Naquela época, ela simplesmente não queria saber. Camilla prosseguiu:

– Pois bem, eu não pude te dizer que nunca havia visto tanta angústia, desespero e confusão em um rosto tão jovem. Alguma de nós é capaz de imaginar pelo que passou aquela menina quando você desapareceu da vida dela, desculpe amiga, sem a menor consideração?

Suzana tornou a baixar, tristemente, a cabeça.

– Ah! Querida. Eu sei que você dificilmente teria condições de pensar em qualquer coisa que não na tempestade infernal em que se tornou a sua vida naquela época. Mas, Suzie…Como essa mulher vai reagir, hoje…Digamos…A uma tentativa de reaproximação de sua parte? Mesmo que ela ainda sinta alguma coisa por você, minha amiga, o quanto de mágoa e desconfiança pode existir no coração dessa moça?

Suzana não respondeu de imediato. Levantou o rosto e ficou olhando para Camilla enquanto os olhos azuis se enchiam de lágrimas que, todavia, não caíram. Falou com uma voz baixa e abatida:

– Eu nunca me permiti pensar nisso. Eu…Só me encerrei em meu mundo de responsabilidades, muitas das quais eu nunca quis, para não me dar tempo de pensar no motivo de estar ali. E, no entanto, me deixei afogar no poço de ressentimento tão antigo quanto inútil que eu mesma construí e que, por fim, não me deixou enxergar mais nada por tanto tempo que… Eu já não via mais sentido em olhar para trás.

– Pois é, minha querida amiga. Você já devia saber que o passado mal resolvido sempre torna a bater em nossa porta.

– É verdade, Milla. Só que desta vez, fui eu quem magoou alguém que…

– Alguém que você amava – completou, Camilla.

– Não sei se…

– Suzana… – foi a leve repreensão da fisioterapeuta.

– Droga! Alguém que eu amava, sim – Suzana respondeu aos gritos. – E que eu não acreditava que pudesse me amar como… Não importa – continuou mais calma. – Eu deixei, eu magoei e, muito provavelmente perdi, o amor da minha vida por insegurança, covardia e, depois, desânimo. Eu não a mereço, Camilla.

– Isso não vem ao caso, Suzie. Apenas Eleonora pode te dizer o que você precisa ouvir. Talvez até o que você não queira ouvir. Mas eu acredito que isso seja absolutamente necessário até para que você possa seguir em frente, com coragem, se ela realmente te rejeitar, amiga. Até… Para dar àquela moça a explicação que ela sempre mereceu, e…Quem sabe, Suzana…Quem sabe, ela sempre quis ouvir.

– Ela pode não querer me ouvir.

– Pode. Mas, você não pode não tentar dizer!

Suzana não falou mais nada. Ficou sentada, silenciosa, olhando para o jardim da casa. Mas, quando as crianças entraram na sala, ás gargalhadas, nos braços do pai, Suzana sorriu para a família de Camilla com imenso carinho e se levantou para cumprimentá-los com verdadeira alegria. Já havia tomado a sua decisão: ela falaria com Eleonora de qualquer jeito. Mesmo que fosse escorraçada como um cão. E, por Deus, tentaria reconquistá-la com todas as forças da sua imensurável vontade e do seu amor. Já estava farta de desistir do que mais queria e amava.

Eleonora entrou em seu quarto um pouco antes das seis da tarde. Tirou o gorro, as luvas e o casaco e os colocou sobre a poltrona. Caminhou até o quarto e pegou o celular abandonado sobre a cama – oito chamadas não atendidas. Todas de Luciana. Nem bem chegou a pensar em retornar e o celular tocou.

– Alô.

– Eleonora? Pelo amor de Deus! Eu estou tentando falar com você há horas. Liguei uma dezena de vezes no seu celular. Telefonei para o hotel e o recepcionista disse que você tinha saído. Eu estou para morrer de aflição. Por tudo o que é mais sagrado, onde você esteve?

– Luciana…Amor. Primeiro…Calma.

Eleonora escutou uma respiração longa e forte do outro lado. Luciana falou pausadamente:

– Estou calma.

– Ótimo…Lu, me desculpe por ter causado tanta preocupação. Eu não tive essa intenção. Eu estive passeando pela cidade e deixei o celular no quarto…Puxa vida, eu perdi a noção das horas, foi isso! Por favor, me perdoe e não brigue comigo. Por favor,…

O tom era de súplica misturada com uma suave persuasão.

– Alguém consegue brigar com você, minha pequena? – Luciana falou com voz cansada.

– Então, não tente. Só me perdoe.

– Está perdoada.

– Hum, hum. Diga que me ama e que está com saudade.

– Deus, Elê! Eu sou uma fonte inesgotável de saudade e você sabe o quanto eu te amo.

– Eu também.

– Não faça mais isso.

– Não faço.

– Está bem. Só que, agora, eu vou ficar conversando horas a fio até me sentir plena da sua voz. Ah! Eu também quero ouvir eu te amo pelo menos umas dez… Não, quinze vezes nesse ínterim, e… Nem uma sombra de reclamação, Eleonora Cavalcanti, mesmo que eu saiba que você não suporta ficar muito tempo ao telefone. Entendido?

– Perfeitamente – Eleonora caiu pesadamente sobre o colchão. – Condições entendidas e aceitas. Vou falar eu te amo trezentas vezes se você quiser, e se ouvir essas mesmas palavras pelo menos uma vez nas próximas horas, isso valerá cada segundo das minhas orelhas ardendo.

Luciana não segurou a gargalhada.

– Você é, definitivamente, impossível, pequena.

– Eu recebi o seu presente – Eleonora comentou, suavemente e tocou com a ponta dos dedos a seda branca do bouquet de lírios sobre a sua cama.

– E gostou?

– Não só dos lírios que você bem sabe que são os meus preferidos, mas, principalmente, dos chocolates Godiva de avelã. Um esbanjamento desnecessário, meu amor… Mas, eles são realmente… Absolutamente… Terminantemente maravilhosos… A segunda causa da minha perdição.

Luciana perguntou com a voz rouca:

– E qual é a primeira?

Eleonora respondeu baixinho, mas perfeitamente audível:

– Você…

Paz restaurada, corações abrandados, elas ainda ficaram conversando mais algum tempo até desligarem em meio às palavras sempre doces da reconciliação.

Depois se falar com sua esposa, Eleonora se levantou da cama pensando em um banho relaxante. Uma ligeira tontura a lembrou de que não havia comido nada o dia inteiro. Foi aí que notou o telefone instalado sobre o criado-mudo. “Graças aos Deuses”. Ligou para a cozinha e pediu um frango grelhado com salada e um suco de melão. Enquanto as sua leve refeição não chegava, ficou pensando no motivo de não ter contado a Luciana do seu encontro com Suzana.

É claro que a esposa sabia do seu relacionamento com a famosa jogadora no passado e, obviamente, Luciana tinha conhecimento de que Suzana estaria nessa seleção. Contudo, ela não tecera qualquer comentário à respeito, nem antes nem depois de Eleonora ter se juntado à equipe técnica da seleção. Talvez porque ela não desse importância a um acontecimento tão breve e ocorrido a tanto tempo ou…Talvez, e mais provavelmente, porque Eleonora nunca havia lhe contado os detalhes: do quanto fora apaixonada, do quanto havia sofrido ou de que havia ficado doente por semanas…Ou que demorou anos até que ela conseguisse ouvir o nome de Suzana ou vê-la na televisão sem que a sua garganta se contraísse de angústia…E, muito menos, lhe contaria a respeito das suas fortes reações à presença daquela mulher, agora. Não só para não afligi-la e, principalmente, não magoá-la, mas porque ela queria resolver essa situação sozinha. E iria resolver! Teria uma conversa definitiva com Suzana. Ouviria, sim, o que ela tinha a dizer, diria o que estava entalado na sua garganta por quase uma década e poderia, finalmente, arrancar essa página mal fadada da sua vida. Nunca fora uma pessoa de mentir para si mesma. Estava enganada quando pensou que não sentia mais nenhuma mágoa por Suzana? Enganara-se também quando imaginou que a presença da mulher por quem fora perdidamente apaixonada não a perturbaria? Pois bem! Hora de colocar as cartas na mesa…

O jantar chegou e ela se sentou para comer acompanhada da velha misteriosa calma que a acometia sempre que tomava uma decisão.

Suzana entrou no ginásio pouco antes das dez. Pela primeira vez em anos, sentia-se nervosa por ter que encarar alguém. A perspectiva de rever Eleonora tomara um sentido completamente diferente desde a última vez em que se encontraram. Estava ansiosa por conversar com ela mesmo que não soubesse ainda como iria começar a conversa e nem se ela estaria disposta a ouvi-la. Mas, não desistiria, pensava. Entretanto, ao entrar no ginásio, Suzana encontrou mais do que Eleonora a esperando. A técnica Regina e mais duas pessoas desconhecidas estavam conversando com a sua preparadora física.

– Suzana – Regina chamou, acenando com a mão.

Suzana se aproximou.

– Que surpresa, Regina. Aconteceu alguma coisa? Já não é a hora do treino da equipe?

– De fato, Suzana. Mas nós ainda teremos o treino da manhã. Estávamos à sua espera. Esses são Rita e Paulo, repórteres da ESPN. O canal solicitou permissão para filmar um dos nossos treinos a fim de fazer uma reportagem sobre a seleção brasileira de basquete que terá veiculação internacional. E, é claro, isso não poderia ser feito sem a presença da nossa estrela da WNBA.

Suzana respondeu à lisonja brincalhona balançando a cabeça com um sorriso leve estampado no belo rosto. A repórter estendeu a mão e falou:

– Suzana, prazer em revê-la.

– Nós já nos conhecemos?

– Na verdade, eu participei de uma reportagem com você há algum tempo atrás.

– Desculpe, eu não me lembro.

– Eu entendo. Nós gostaríamos de fazer uma entrevista com você mais tarde, se for possível. Fará parte do especial com a seleção brasileira, assim como algumas entrevistas com outras jogadoras e com a comissão técnica. Tudo bem?

– Por mim, sem problemas. Eleonora?

– Regina e eu já refizemos a programação do dia, Suzana. Você treina com o time agora de manhã para a realização das filmagens, e à tarde nós continuamos com a nossa preparação.

– Ok. Eu já devo me dirigir ao ginásio principal, Regina? Qual o uniforme que iremos usar?

– Vamos todos, Suzana. O seu uniforme de treino já foi separado e está com o Seu Joaquim – Regina falou, se referindo ao faz-tudo da seleção, o simpático e prestativo Seu Joaquim, quase um patrimônio do time, servindo à seleção feminina por mais de vinte anos.

Todos foram saindo em direção ao ginásio principal, distante uns duzentos metros do ginásio menor onde Suzana fazia o seu treinamento especial. Eleonora ficou um pouco para trás e se pegou observando o caminhar firme das longas pernas de Suzana, acompanhada pelo repórter Paulo, visivelmente encantado. De uma certa forma ela ficara aliviada com a novidade e a necessidade de adiar a circunstância de ficar sozinha com Suzana. Estava resolvida a falar com ela, mas isso não significava que se sentia confortável com a possibilidade.

Treinaram um par de horas, sendo cuidadosamente filmadas. Ao final, deram depoimentos e entrevistas breves aos jornalistas, de modo que a uma da tarde já estavam livres para almoçar. Suzana ainda ficou um tempo envolvida com mais alguns repórteres além de um sem número de adolescentes emocionados aos quais atendeu com paciência e simpatia, mas que a fizeram sentir saudade da tranquilidade do seu treinamento à parte, no anônimo ginásio ao lado. Ainda não sabia porque não haviam encontrado ainda o seu refúgio, mas intuía que ele não demoraria a ser descoberto. Saiu do Centro de Treinamento perto de duas horas com o estômago grudando nas costas. Mas, o desconforto da fome não era nada perto da sua apreensão por falar com Eleonora. Definitivamente, paciência nunca fora a sua principal virtude. Mas, o destino ainda iria lhe dar mais uma chance de trabalhar em si, um pouco de resignação. Eleonora não apareceria para o treino da tarde.



Notas:



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