09 anos depois…
-Eu estou ótima, mãe… não, não está muito frio por aqui… sim, eu estou me agasalhando. Mãe! Eu não sou mais uma criança! Use esta sua tagarelice para alguma coisa útil. Como está o meu sobrinho? – Eleonora mudou a face para um sorriso largo quando a mãe começou a contar as traquinagens do pequeno Matheus. André, irmão de Eleonora, fora pai aos vinte anos, e o sobrinho de dois anos era o xodó da tia coruja. Não bastasse o fato de ser uma criança linda e esperta, ele era a cara da tia – loirinho, olhos verdes e o mesmo sorriso cativante e irresistível. Eleonora o adorava. Depois de alguns minutos, despediu-se da mãe recomendando beijos para o pai e o irmão. Rapidamente, o seu pensamento voltou-se para o trabalho. Olhou para o relógio.
– Deus, oito e quarenta! Estou atrasada.
Com um mestrado em esportes coletivos de alta performance e diversas especializações específicas para o basquete, após uma elogiada temporada como preparadora física do time campeão paulista e brasileiro de basquetebol, fora convidada para compor a comissão técnica da seleção brasileira de basquete feminino em preparação para o campeonato mundial. Exultou de alegria e aceitou prontamente. Colocar os seus conhecimentos de anos de estudos em favor de uma seleção nacional, fora o que sempre sonhara. Agora, trabalhava intensamente com as atletas do selecionado brasileiro, treinando em Curitiba por dois meses antes do mundial.
Pegou a pasta sobre a cama do apart-hotel no qual morava há dez dias e saiu apressada. A seleção estava toda hospedada num recém inaugurado apart-hotel de propriedade de um dos seus patrocinadores. Tão novo, aliás, que em alguns andares ainda não haviam telefones instalados. Era o caso do quarto de Eleonora que, no entanto, pouco se aborreceu, pois o seu apartamento era um dos que possuía um pequeno luxo que ela, particularmente, adorava: uma banheira.
Por fim, após alguns dias de trabalho com a seleção, Eleonora pôde perceber que esta era uma equipe realmente habilidosa. A melhor em muitos anos. Estava feliz em fazer parte dela.
A única coisa que a aborrecia era estar longe de Luciana, bela e competente cardiologista com quem era casada há dois anos. Moravam em São Paulo num aconchegante apartamento em Vila Mariana dividido com Bertrand, um angorá cinza indolente e autoritário. Conheceram-se na residência de um casal de amigas em comum, logo depois de Eleonora voltar de sua especialização em Moscou. Eleonora sentiu-se imediatamente atraída pelos olhos castanhos profundos e suaves, e pelo sorriso caloroso e tranqüilo de covinhas quase infantis. Além disso, Luciana era muito bonita. Cabelos castanhos compridos, finos e ondulados. Tez clara e rosada. Nariz pequeno, boca de lábios finos, porém bem feitos. Estatura mediana, cerca de 1m 70cm, quadris largos, coxas grossas e firmes – a típica mulher brasileira. Eleonora não conteve um suspiro. Estava com saudade. Depois do treino, ligaria para a sua mulher.
Eleonora entrou no ginásio as nove em ponto daquela segunda-feira, início da segunda semana de treinamento da seleção. O time já estava todo lá. Procurou a técnica, Regina, por toda a quadra para se desculpar pelo atraso. Afinal, pedira para seguir para o moderno Centro de Treinamento onde treinava o selecionado brasileiro em seu próprio carro e não no ônibus da equipe – como de praxe – porque pretendia utilizar o horário de almoço e início da tarde, antes do segundo treino do dia, para rápidos assuntos particulares. Leia-se: procurar presentes para o sobrinho que faria três anos dali a alguns dias. Não gostaria que o seu presente chegasse depois da data do aniversário.
Enfim, encontrou-a no flanco lateral direito, cercada pelos demais componentes da comissão técnica e mais uma figura alta, escutando-a, com uma postura atenta e grave. O coração de Eleonora deu um salto. Ela sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Pensava estar mais preparada, mas as suas reações físicas involuntárias à simples percepção daquela presença a deixaram irritada. “Diabos, você é adulta, profissional e casada. Controle-se”. Respirou fundo. Sentindo-se mais segura, caminhou até o grupo. Regina a notou se aproximando.
– Eleonora, venha cá. Deixe eu te apresentar uma atleta excepcional.
“Eleonora… Não pode ser”. Suzana virou o rosto, vagarosamente, para trás. Sentiu uma mão gelada apertar-lhe o estômago. Seus olhos azuis brilharam levemente de surpresa. A mulher jovem e loira aproximou-se andando calma e naturalmente. Olhou com firmeza para o rosto da morena alta e estendeu a mão:
– Como vai, Suzana?
A técnica passou os olhos de uma para outra, atônita.
– Vocês se conhecem?
– Sim – Suzana respondeu simplesmente e apertou a mão estendida à sua frente. – Como vai, Eleonora.
– Então é isso, Eleonora. Suzana somente se apresentou hoje porque ainda estava finalizando o tratamento terapêutico da sua lesão na coxa esquerda. Ela está parada a um mês e meio. É de se esperar que, no momento, não possa treinar com o resto do time. Por isso, ela terá que fazer um treinamento à parte até que adquira condições físicas para se juntar à equipe.
– Mas, porque eu? – Eleonora perguntou à técnica, controlando-se para não demonstrar que estava à beira da histeria.
– Não seja modesta, Elê – Regina retrucou. – Dê uma olhada no seu currículo. Você é, obviamente, a mais preparada para colocar Suzana em forma outra vez.
– Não é isso. É que… E o restante da equipe, Regina? Eu também sou a preparadora física delas. Por que você não coloca o Oscar? – disse, referindo –se ao auxiliar técnico. – Ele é experiente e, com certeza, desempenhará o trabalho tão bem quanto eu e…
– Eleonora – cortou a técnica com um leve toque de irritação. – Eu sei que você é a preparadora técnica de toda a seleção, tanto quanto sei da sua capacidade profissional!
Regina respirou fundo e continuou com mais calma:
– Nós já temos o planejamento da preparação física do time, elaborado justamente por você, para as próximas semanas. Qualquer dúvida ou necessidade de reorganização do trabalho…Ora! Nós somos uma equipe. Nós nos reuniremos e resolveremos as pendências. Agora, Elê, a seleção necessita das suas habilidades para um trabalho especialíssimo. Eu não preciso te lembrar da importância de uma jogadora como Suzana Alcott para a seleção, preciso?
– Não…
– Então, estamos combinadas. Vocês começam amanhã, às oito. Suzana prefere começar mais cedo. Alguma objeção?
– Não.
– Ótimo.
Exatamente as sete e quarenta e cinco, Eleonora entrou com o seu carro no estacionamento do Centro de Treinamento. Pelo menos enquanto durasse o treino individual de Suzana, ela teria que vir de carro, pois o ônibus da seleção saía do apart-hotel um pouco mais tarde. Já estacionava o automóvel quando se lembrou de que nem ao menos procurara saber como Suzana chegaria ao treino. Suspirou com raiva e um certo desalento, estava dispersa demais. Não podia dar-se ao luxo de ser negligente dessa forma. Entrou no ginásio com o cenho carregado por uma expressão de claro aborrecimento consigo mesma. Para sua surpresa, Suzana já se encontrava lá.
– Bom dia – cumprimentou Eleonora, educadamente, esforçando-se em disfarçar a contrariedade instalada em seu rosto delicado.
– Bom dia – respondeu Suzana, sem demonstrar sinal de ter identificado os indícios de irritação evidentes no rosto de sua nova preparadores física.
Eleonora prosseguiu sem perda e tempo:
– Nós iremos, hoje, proceder a uma meticulosa avaliação das suas condições físicas atuais mediante alguns testes pré-definidos por mim. Pretendo ser o mais minuciosa possível a fim ordenar um planejamento específico mais eficiente. Tudo bem?
Suzana apenas assentiu com a cabeça.
Eleonora logo se esqueceu da sua irritação inicial ao iniciar a avaliação com a jogadora. Concentrada em seu trabalho, reservou-lhe todos os seus esforços e pensamentos até que se desse por satisfeita com a bateria de testes.
Ao final da avaliação, Suzana estava suada e ligeiramente arfante, mas totalmente compenetrada. Submetera-se aos testes com seriedade e disciplina. Em silêncio, o mesmo que manteve durante toda a duração dos testes, andou em direção à sua bolsa pensando com saudades em um bom e relaxante banho. Disciplinada, no entanto, esperava pacientemente as ponderações da sua preparadora física.
Ainda fazendo algumas anotações na prancheta, a pequena loira ergueu os olhos e observou discretamente a mulher à sua frente que, distraída, enxugava com uma toalha o suor do rosto e do pescoço. Suzana estava mais magra e mais musculosa. Possivelmente, resultado dos anos como profissional da WNBA. Nove anos depois, a não ser por algumas poucas rugas no canto dos olhos, ela continuava com o mesmo belo rosto. Talvez… Um quê de amargura pairasse, discreto, dentro daqueles olhos azuis. Um traço que ela não carregava mesmo naquela época de dúvida e aflição – quando não sabia se poderia voltar a jogar – na qual Eleonora a conhecera. De repente, Suzana virou o rosto e pegou Eleonora observando-a. Enrubescida, a pequena loira baixou os olhos rapidamente para a prancheta e, um tanto encabulada, falou mais apressada que o necessário:
– É isso. Vou passar o resto do dia planejando o seu treinamento. Você tem a tarde livre. Aproveite, é a última. Amanhã começaremos com tudo. Ok?
– That’s ok. Actually, I’m feeling well and…Sorry, quero dizer, me desculpe, eu não tenho falado muito português nos últimos anos – justificou-se Suzana. – Claro, está ótimo para mim. Eu estou me sentindo muito bem e você pode me forçar o quanto julgar conveniente.
– Então, estamos combinadas. E, a propósito, você pode se expressar em inglês quando quiser. Eu sou fluente em inglês e espanhol e me arranjo em francês e russo.
– É mesmo? – perguntou Suzana, visivelmente impressionada.
– É – respondeu laconicamente, Eleonora. – Bem, já vou indo – bateu a mão sobre a prancheta. – Ainda tenho muito o que fazer.
Suzana a viu saindo, andando com a mesma graciosidade da qual se lembrava, acrescida, para o seu inesperado deleite, de um balouçar insinuante de mulher consciente da sua feminilidade. Num impulso, Suzana a chamou:
– Eleonora!
Eleonora estancou e se virou.
– Sim.
– Eu…- Suzana assustou-se com a inexpressividade, quase frieza, dos olhos verdes nos quais ela só se lembrava de ter visto vivacidade, calor e amor. Ficou momentaneamente sem palavras. Recuperou-se em seguida.
– É…Obrigada. Eu pude perceber o quanto você é competente. Estou grata por você estar cuidando da minha recuperação física.
– Tudo bem – Eleonora respondeu e esperou alguns instantes para ver se Suzana diria mais alguma coisa. Como ela não o fizesse, acenou com a cabeça e foi embora.
Suzana respirou profundamente. “Meu Deus, ela está mais bonita do que eu me lembro. Os fantasmas realmente voltam à vida… E, nesse caso particular, mais atraentes e perigosos do que nunca”.
A morena alta balançou fortemente a cabeça e falou alto para si mesma:
– Concentration, focus and hard work, Suzana. That’s all you need, girl.
Pegou a bolsa e seguiu para o vestiário.
Eleonora saiu caminhando aparentemente tranquila. Quando entrou no carro, deitou a cabeça sobre o volante e tentou controlar a respiração descompassada.
– Não é possível que ela faça isso comigo até hoje – bateu a cabeça com força sobre o volante.
A verdade é que quando Suzana a chamara com aquela inesquecível voz grave e aveludada, ela quase tivera um ataque cardíaco, tamanho o salto que o seu coração dera. Sentiu-o batendo nas têmporas quando se virou para ouvir o que ela tinha a dizer. Tratou-a friamente e, no entanto, saiu rezando para que as suas pernas não tremessem.
– Droga, droga! – bateu as mãos com raiva no inocente volante. – Preciso falar com Luciana.
Deu a partida convicta de que a voz da sua esposa lhe devolveria a calma de que tanto precisava.
– Meu Deus, pequena! Você deve realmente estar sentindo a minha falta – Luciana deu uma risada leve e deliciada.
– Estou mesmo, amor. Minha cama está fria. Eu não escuto mais passos furtivos invadindo a cozinha de madrugada. Eu não encontro mais o litro de leite esquecido aberto sobre a pia, de manhã. Não há toalhas molhadas no chão do banheiro. Isso aqui está horrível!
– Meu Pai! O caso é grave! – Luciana riu alto desta vez. – Você está sentindo falta do que mais odeia que eu faça. Eu também estou morrendo de saudade, meu amor, mas neste próximo fim de semana eu não posso, pequena. Tenho uma cirurgia delicadíssima marcada para sexta-feira e vou acompanhar atentamente o paciente pelo menos pelas próximas quarenta e oito horas. Mas, na semana seguinte, eu prometo que vou te ver aí em Curitiba. Eu prometo…Eu te amo.
– Eu te amo – Eleonora desligou o telefone sentindo-se bem mais calma. Amava e era amada. “Ao inferno com Suzana Alcott”. Vestiu o pijama e foi dormir confiante de que há muito exorcizara o espectro alto e moreno que lhe assombrara por tanto tempo.
Apesar do sobressalto inicial e diferentemente do que Eleonora receava, o treinamento durante o restante da semana transcorreu sem maiores percalços e conforme o programado. A verdade é que Suzana tornava o seu trabalho muito fácil. Era determinada e disciplinada, executava todos os exercícios sem uma sombra de reclamação. Educada e atenta, não era necessário dizer mais do que uma vez o que a preparadora física queria que ela executasse e se acaso lhe sobrevinha alguma dúvida quanto ao exercício, explanava-a com respeitosa cortesia. Eleonora começava a sentir-se menos receosa de não conseguir trabalhar tranqüilamente com Suzana.
A comoção inicial fora apenas o choque do reencontro após tantos anos. Só isso!
As coisas estavam se acomodando onde deveriam: um treinamento feito com planejamento e aplicado com eficiência pela treinadora, uma dedicação diligente por parte da jogadora e, por fim, um relacionamento entre mulheres adultas e profissionais dentro dos limites do profissionalismo e da polidez. Eleonora sentia-se mais leve.
Suzana, por sua vez, observava com cuidadosa discrição e crescente interesse essa “nova” Eleonora. Ultrapassada a natural surpresa do reencontro inesperado e sem deixar de se aplicar com a costumeira determinação ao sempre exaustivo início de treinamento de condicionamento físico, a jogadora não podia deixar de notar que o passar dos anos fizera muito bem à pequena loira. Ao belo corpo que já possuía quando pouco mais que uma adolescente, o tempo acrescentara curvas mais audaciosas, ainda que preservasse a musculatura rija e definida. À voz, que manteve o tom meigo e agradável, sobreveio um timbre mais firme, mais baixo e musical. No entanto, o que impressionava era a postura pessoal – segura, amadurecida, completamente ciente dos seus atributos físicos e da sua competência profissional.
Eleonora se tornara uma mulher linda e interessante.
Suzana tratou de afugentar tais pensamentos e de continuar, com dedicação redobrada, os exercícios que estava executando. Afinal, era para isso que ela estava ali…Que ambas estavam ali.
Ao final da semana, após o treino de sábado, Eleonora apresentou um relatório dos primeiros dias de treinamento na reunião habitual de fim de semana da comissão técnica. Trocou algumas impressões com Aline, a fisioterapeuta da equipe e com Oscar, o auxiliar-técnico. Por fim, saiu da reunião conversando informalmente com a técnica Regina que demonstrou claramente o seu contentamento.
– Estou muito satisfeita, Elê. Os resultados iniciais estão melhores do que eu esperava. A continuar esta evolução, Suzana poderá estar treinando com o resto da equipe em pouco tempo.
– É um tanto precoce afirmar categoricamente esta rápida prontidão – ponderou Eleonora, prudentemente. – Mas, eu acredito que sim – concordou com um sorriso e completou: – O maior mérito, contudo, cabe a Suzana que é muito aplicada.
– É…Vocês formam uma dupla perfeita. A propósito, como vocês se conheceram?
Eleonora hesitou um pouco, mas, por fim, falou simplesmente:
– Você se lembra de quando Suzana Alcott treinou, por pouco tempo, um time de basquetebol de uma universidade do interior paulista…Mais ou menos há uns dez anos atrás?
– Lembro, lembro. Foi quando ela estava se recuperando de uma lesão no joelho… Pouca gente acreditava que ela voltaria a jogar, naquela época.
– Pois, é. Eu era jogadora daquela equipe. Suzana foi minha treinadora.
– Que coincidência, hein? Agora é você quem a treina.
– É…- Eleonora concordou laconicamente. Despediu-se de Regina rapidamente e foi para o quarto descansar.