Luz para florescer

Capítulo 3

Capítulo 3

Já estavam na quarta semana de treinos. O treinamento era puxado e justificava plenamente a fama de perfeccionista da atleta Suzana Alcott que, como treinadora, não exigiria menos do que muita dedicação de suas comandadas. Suzana já ficava de pé por mais tempo, embora ainda de muletas, e movimentava-se o máximo que podia por toda quadra gritando instruções e corrigindo posicionamentos. Após o deslumbramento inicial, todas já estavam acostumadas com a presença e a forma de trabalho da célebre jogadora. Também o auxiliar-técnico, Prof. Jorge, depressa de habituou ao modo de agir da treinadora e funcionava como uma segunda voz de Suzana. Todos eram unânimes em considerar que o time tinha melhorado muito. Suzana que já gozava da admiração, conquistou o respeito e a estima da equipe.

Entretanto, os primeiros dias de treino foram extremamente tumultuados. A imprensa não demorou a descobrir a famosa Suzana Alcott treinando um time feminino de basquete de uma universidade do interior. Logo, uma grande quantidade de correspondentes de emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas amontoavam-se na frente do ginásio do campus procurando entrevistá-la, filmar os treinamentos ou, mais seguramente, bisbilhotar a sua recuperação física. Após algumas declarações que considerou suficientes, Suzana tomou a decisão de ignorar os repórteres e seguir firmemente para a quadra com a ajuda do auxiliar-técnico, pois ainda estava sobre cadeira de rodas, até que o interesse da imprensa arrefecesse. Contudo, um episódio mudou sua aparente passividade.

Suzana seguia como de costume, séria e compenetrada, por entre uma boa quantidade de microfones e gravadores, quando um repórter soltou a infausta pergunta:

– Suzana, esta experiência como técnica significa o fim da sua carreira como jogadora?

O burburinho denunciou o frisson que a pergunta causara.

Suzana pediu para o Professor Jorge parar e retornar. Em seguida, pediu para que ele a apoiasse enquanto ela se levantava e se sustentava sobre a perna boa. A figura alta e imponente por si só causou uma atenta expectativa. O olhar gelado e a mandíbula rígida demonstravam claramente a sua enorme irritação. Eleonora, que vinha logo atrás de Suzana e acabou por ficar bem à sua frente, sentiu vontade de se abaixar como se aquele olhar pudesse fuzilar alguém. Contudo, contrariamente ao que se poderia imaginar, foi com uma voz calma e pausada que ela falou:

– Eu não tenho mais nada a falar para vocês. Vocês estão atrapalhando o meu trabalho e o sossego das minhas jogadoras. A partir desse momento, eu vou providenciar para que isso não mais aconteça.

A partir daquele dia, os jornalistas não puderam mais chegar perto do ginásio e, embora quase sempre tivesse um ou outro nas imediações, o time conseguiu tranqüilidade para treinar.

Desde quando conversaram no prédio da administração, Eleonora e Suzana desenvolveram uma mútua camaradagem. Todos os dias após o treino, Eleonora esperava Suzana para saírem batendo papo, quase sempre sobre basquete, até que chegasse Camilla, ou na sua eventual falta, um táxi, para leva-la para casa. As colegas chegavam a caçoar da pequena armadora dizendo que ela era a queridinha da treinadora, mas eram somente chacotas típicas de uma equipe de jovens atletas. Eleonora era uma companheira muito delicada e cortês para gerar inimizades, além disso, era ponto pacífico o fato dela ser a mais dedicada jogadora nos treinos. Parecia incansável. Estava sempre disposta. Dava tudo o que tinha para realizar com empenho e perfeição qualquer exercício requisitado. Um verdadeiro “leão de treino”. Mais um motivo para brincadeiras. Devido ao seu tamanho e aos cabelos louros, começou a ser chamada de leãozinho. Bastava aparecer na quadra para alguém começar: “Gosto muito de te ver, leãozinho…”, e aí, eram só risadas. Eleonora não se lembrava de ter se sentido tão contente em toda a sua vida.

Suzana via satisfeita o bom relacionamento da sua equipe. Também se afeiçoara às meninas. Acostumara-se á companhia de Eleonora ao final dos treinos e teria continuado nessa agradável rotina se não começasse a reparar que já esperava com incontida ansiedade o momento de ter a atenção da loirinha cativante só para si. Pior! Que seus olhos procuravam o cabelo dourado pela quadra e que, muitas vezes, chamava Eleonora para passar instruções apenas para ver aqueles olhos verdes captando, concentrados, cada palavra do que ela dizia. Preocupada, Suzana resolveu acabar com as conversas pós-treino a fim de evitar o que ela imaginava ser somente uma preferência, talvez explicada pela simpatia que nutria pela jovem armadora, mas que manifestada assim tão explicitamente, viesse a prejudicar o time. Sutilmente, Suzana passou a sair apressada do ginásio ou a conversar animadamente com outras jogadoras até que sua condução chegasse.

Decepcionada e confusa com a repentina mudança, Eleonora perdeu muito da sua espontaneidade com Suzana a ponto mesmo de ficar um pouco tímida em sua presença. Ainda assim, continuou a treinar com a mesma dedicação.

Foi durante o alongamento final naquela segunda-feira que a treinadora falou a novidade:

– Ok, garotas. Acho que já está na hora de avaliarmos o resultado do trabalho e o rendimento da equipe em situação de jogo. Portanto, marquei um amistoso para sábado próximo com o time adulto da cidade vizinha.

Foi um alvoroço.Um jogo depois de tanto tempo de treinamento duro era uma ótima notícia. Suzana acabou com o alarido com um gesto largo de silêncio e continuou:

– A partida será as 17:00. Todo mundo no vestiário às 16:00. Alguma pergunta?

Nenhuma pergunta.

– Muito bem… – Suzana não terminou porque Eleonora levantou o braço. – Você tem alguma pergunta, Elê?

– Não. É um convite. Eu quero convidar todo mundo para a minha festa de aniversário no sábado também, lá pelas nove horas da noite, em minha casa. Então, depois do jogo… Festa! Um sábado perfeito, não acham?

Nova agitação. Suzana achou melhor terminar por ali mesmo.

– Dispensadas.

As jogadoras foram saindo em pequenos grupos comentando as novidades e combinando a ida ao jogo e à festa. Suzana virou-se para pegar a prancheta sobre o banco e colocá-la na bolsa. Arrumou a bolsa esportiva de modo a não atrapalhar o seu deslocamento com as muletas e só então reparou que uma jogadora ainda não tinha saído. Eleonora estava em pé, bem a sua frente, esperando.

– Algum problema, Elê?

Suzana, de vez em quando a chamava pelo apelido como as demais colegas. Era mais curto e prático, principalmente durante o treino.

– Você vai, não é, Suzana? Digo…Ao meu aniversário.

– Não vou te prometer, Eleonora. Eu não sou muito de festas.

– “Tá”…Eu…Só queria que você soubesse que eu… Eu gostaria muito…Se você quiser, é claro…

Eleonora não era capaz de imaginar o quanto estava adorável toda tímida e embaraçada, apertando as mãos, com os cabelos molhados de suor grudados na testa e com os ternos olhos verdes hesitantes fitando Suzana, que não resistiu, e afastou delicadamente uma mecha de cabelo úmido sobre a fronte da garota.

– Está bem, Eleonora. Mas, eu vou ficar só um pouquinho. Combinado?

Eleonora não respondeu de imediato. O seu coração havia disparado no momento em que Suzana a tocou.

– Com…Combinado – conseguiu balbuciar meio atrapalhada. Saiu com um sorriso embasbacado no rosto e andando como se caminhasse em nuvens.

Suzana arrependeu-se da promessa no momento em que Eleonora saiu do ginásio.

– Droga! Lá vou eu me meter numa festa com um bando de adolescentes. E que raios de poder é esse que essa menina tem, que eu não consigo dizer não para ela? Suzana, Suzana, no que você está se metendo?

O jogo foi emocionante. O time da Universidade Santa Cruz venceu nos últimos segundos com uma brilhante atuação da pequena Eleonora que correu muito, marcou como uma leoa, fez assistências, cestas e não saiu um instante da quadra, demonstrando um excelente preparo físico. Suzana estava satisfeita por enquanto, mas o time precisava melhorar em muitos aspectos, principalmente o conjunto.

O vestiário transbordava alegria e animação. Brincadeiras, gozações mútuas e comentários entusiasmados sobre lances da partida se misturavam numa feliz algazarra. Eleonora entrou no recinto em meio a cumprimentos, abraços e tapinhas no ombro, mas não tomou a costumeira chuveirada. Pegou rapidamente a mochila e gritou a todas:

– Daqui a pouco, todo mundo lá em casa, ok?

– Festa, festa, festa – foi o brado geral.

Eleonora saiu apressada, pois a mãe a esperava no estacionamento para levá-la para casa. Ela tinha que se arrumar a tempo de receber os primeiros convidados que não demorariam a chegar.

Pouco mais de uma hora depois, ela já estava pronta e ansiosa – “Será que ela viria mesmo?” Eleonora já não conseguia mais tirar Suzana da sua cabeça. Passava os dias pensando nela, sonhava com ela, contava os minutos para chegar a hora do treino e finalmente vê-la. Treinava como uma louca para impressioná-la, mas, atualmente, quando chegava perto dela, só conseguia agir como uma pateta. Deu um suspiro e saiu do quarto para a área da piscina onde seria a festa. Alguns minutos mais tarde, começaram a chegar os amigos e os familiares.

Suzana desceu do táxi em frente ao bonito sobrado que era a casa de Eleonora. Já se apoiava apenas em uma bengala e na outra mão carregava um presente para a aniversariante. Presente, aliás, que levou horas para escolher e que, por fim, cansou tanto a sua acompanhante, a pobre e exausta Camilla, que a fisioterapeuta chegou a ameaçar:

– Suzie, eu já estou morta de cansaço e se o seu joelho inchar por causa de todo este tempo em pé para escolher um simples presente de aniversário, eu juro que vou fazer você se arrepender amargamente.

Finalmente, encontrou algo que a agradou e ali estava.

O portão encontrava-se aberto e Suzana foi adentrando seguindo o barulho da música que vinha do fundo da casa. Seguiu por um jardim lateral e deu na parte de trás da residência onde já havia muitos convidados dançando no tablado montado sobre a piscina ou conversando por entre as mesas espalhadas pelo gramado. Impaciente, Suzana correu os olhos pelo ambiente festivo e barulhento até que avistou os cabelos loiros de Eleonora de costas para ela. Como que atendendo a um chamado misterioso, a jovem anfitriã se voltou repentinamente para ela e os seus olhos se encontraram.

Com um sorriso transbordante de felicidade, Eleonora veio caminhando em direção a Suzana que a esperava estática e boquiaberta. Aquela não era a menininha peralta a quem ela treinava todos os dias. Aquela era uma mulher… E… Deslumbrante! Eleonora trajava um vestido vermelho de alças, levemente rodado, à altura dos joelhos. De cintura marcada e com um generoso decote que deixava a mostra um colo alvo e perfeito, era sustentado por alças finas que começavam pouco acima dos seios e seguiam trançando pelas costas nuas e torneadas. Os cabelos brilhantes e escovados balançavam conforme ela andava sobre sandálias douradas de salto alto. Uma discreta maquiagem realçava a beleza dos olhos verdes e a perfeição da boca delicada. E, quando ela se aproximou o suficiente, um suave cheiro de flores silvestres a acompanhou, turvando ainda mais os sentidos de Suzana que, à falta de palavras, só conseguia olhar para aqueles olhos claros. Foi nesse instante que Suzana compreendeu que estava apaixonada. Total e irremediavelmente apaixonada.



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