Músicas que embalam o capítulo:
Holiday:
Espumas ao Vento:
http://www.youtube.com/watch?v=RUhEQVlB-dI
Camila – Diedra Roiz
Vi aquele dia amanhecer na praia. Sentada na areia úmida, com os pés imersos na água. Os raios de sol surgindo, mas só inundando de luz a escuridão que me cercava… As ondas iam e vinham… Estrondosas, violentas, ensurdecedoras quase… Demorei muito tempo para entender que à minha volta era puro silêncio… O barulho que eu tinha por dentro é que não se calava… Por mais que passasse e repassasse mentalmente as últimas vinte quatro horas… Era inútil tentar algum tipo qualquer de desculpa, alívio ou o que eu realmente buscava: paz…
Beijar Sunny tinha sido por si só algo ao mesmo tempo assustador e mágico. No entanto não estava em mim… A capacidade de romper os grilhões que me aprisionavam. Ironicamente, o sábado tinha me parecido um gigantesco suplício só por que ela sumiu…
– Acho que vou embora, Flávia.
Não precisei me estender, ela compreendeu imediatamente o que eu queria dizer: um ônibus para Blumenau, me salvando daquilo tudo. Fugir…
– Nada disso!
Não foi difícil me convencer. No fundo o que eu queria mesmo era… O que eu não podia confessar nem para mim mesma. Bebi muito, a tarde inteira. Mergulhei de cabeça na fraqueza que me tomava.
– Assim tu vai ficar imprestável!
Flávia riu ao me estender mais um abacaxi cheio de sei lá o quê… Bacardi, acho…
Ainda assim não havia desculpa. Já cheguei naquele bar procurando por ela… A receptividade de Sunny tinha ajudado, a provocação apenas um ingrediente a mais, claro… Só que… Totalmente dispensável àquela altura.
Eu!
Sim, eu.
Eu a puxei para aquele canto, para fora do bar e para a cama dela… E o teria feito independente de todo o resto, por que… Queria, precisava… Satisfazer egoisticamente o meu desejo… Mesmo sabendo que era sexo, só sexo… Não tinha mais nada para oferecer…
Não vi quando as primeiras pessoas apareceram. Quando dei por mim a praia não estava mais deserta…
Levantei e andei em direção ao apartamento de Flávia como se minhas pernas caminhassem sozinhas… Tive que tocar a campainha, pois estava sem chave. Foi Lena que abriu:
– Camila, pelo amor de Deus! Você sumiu sem avisar! Calculamos com quem estava, mas… Isso não se faz, viu? Da próxima vez… – Passei por ela sem responder. O que fez Lena completar ainda lá da sala: – Ei… Tudo bem?
Antes que eu pudesse colocar a mão na maçaneta da porta do quarto ela se abriu e Flávia colocou a cabeça para fora:
– Tá viva? – Não precisou dizer, na hora soube que ela estava acompanhada. – Pera! Quero saber detalhes!
Aproveitei o fato de ela sumir lá dentro – procurando e vestindo a roupa, provavelmente – para ir até o banheiro. Abaixei a tampa do vaso e sentei, com a cabeça entre as mãos, desejando poder sumir ralo abaixo ou entrar na privada e me dar descarga…
Ao invés disso voltei àquele exato momento…
– Pronta? Tá prontinha pra mim?
Foi o sussurro rouco que soltei, antes de minha língua descer com pressa… Rumo a um destino certo… Entre as pernas da mulher que respirava com dificuldade embaixo de mim…
Fechei os olhos e me entreguei… Tornando-me parte da pulsação incontrolavelmente suada e ardente… Segurando-a com força pelas coxas, a guiei para uma explosão que foi rápida demais…
– Ah…
Ela ameaçou relaxar depois de um gemido que não permiti ser derradeiro… Voltei a mover a língua, bem devagar no começo… Fazendo-a estremecer, mas não protestar… Muito pelo contrário, entregou-se de novo, integralmente… Mais uma vez… E outra… E outra… Até empurrar minha cabeça com força:
– Chega… Chega… Para um pouquinho… Calma…
Eu não pensei. Saiu sem querer:
– Contigo é impossível, meu bem…
Abri os olhos, levantei a cabeça e a fitei… Os olhos brilhantes e o sorriso indescritivelmente lindo… Pisquei, só então compreendendo com quem eu estava falando, e me sentindo aliviada por ela não ter percebido meu erro…
Ela me puxou, trocou de posição comigo, se colocou por cima… Deliciosa… Irresistível… De um jeito que naquele instante supria tudo que eu precisava e por isso pareceu perfeito ouvi-la dizer, antes de tomar os meus lábios com os dela:
– Minha vez…
E eu me deixei levar, me entreguei completamente, consenti… Ela que me tomasse do jeito que bem entendesse…
Liberei sem pudores a cadência que fundia as imagens da morena maravilhosa que estava ali comigo e os flashes quando eu fechava os olhos… Do corpo de Sandra, a expressão de prazer no rosto dela… Sem saber, pouco importava de quem eram… Pele, mãos, boca, língua… Como se as duas se mesclassem em minha alma, em minha mente, em minha carne… Enquanto eu gozava gemendo alto, com um prazer e um alívio que há muito tempo não me permitia:
– Sâ…
A última sílaba não saiu. Na verdade, nem eu mesma sabia qual teria completado a palavra…
Batidas impacientes na porta interromperam meu devaneio:
– Camila, abre!
Antes que Flávia derrubasse a porta, fiz o que ela exigia entre as pancadas fortíssimas. Ela olhou em volta, como que procurando ou… Tentando certificar-se de algo.
– Pode ficar tranquila, não estou cortando os pulsos nem nada…
– E aí? – Meu olhar para ela foi cortante, mas não obteve resultado: – Não vai querer que eu acredite que ficou a noite inteira com a Sunny e não rolou nada, vai? Pode contar!
Falei baixo, sem fitá-la:
– Eu não fiquei a noite inteira com ela.
Houve uma pausa, como se Flávia se recuperasse do choque antes de finalmente voltar a falar:
– Então… Onde é que você estava?
Dessa vez olhei dentro dos olhos que me questionavam:
– Na praia.
Ela devolveu o meu olhar:
– Como na praia? Porque não veio pra cá?
– Precisava ficar sozinha.
– Mais? – Levantou sacudindo a cabeça negativamente. Passou as mãos nos cabelos, puxando-os para trás, respirou fundo antes de virar-se seriíssima para mim: – O que houve?
Mas eu não podia contar. Nunca, jamais confessaria aquilo para ninguém…
Sunny se deitou sobre mim, aconchegando o corpo dela no meu… Eu a segurei em meus braços, afundei o rosto em seu pescoço, aspirei o cheiro dela e… Estremeci… Foi ali, só ali que afinal voltei à mim… Ao quanto aquilo tudo era… Não fui capaz de definir. Não foi a razão que me motivou, foi… O quê? Como nomear o que me movia?
Não queria magoá-la, mas sequer sabia se isso era possível. Talvez para ela fosse fácil, corriqueiro, tranquilo… O que ela sentia ou pensava sobre o que tinha acontecido era um enigma que eu jamais decifraria. Tentei imprimir em minha voz o tom mais natural possível:
– Eu… Tenho que ir.
Ela não se afastou, apenas levantou o rosto e me olhou profundamente, a boca a centímetros da minha:
– Por que não fica?
A resposta deveria ser simples. Mas não para mim.
– Preciso mesmo ir.
Nosso movimento foi conjunto, em sintonia. Ela me deixou sentar na beira da cama e não insistiu. Ficou deitada atrás de mim, apenas me observando, o único contato entre nós era o olhar dela… Me atingindo como se fosse… Físico.
Não queria voltar a encará-la antes de estar completamente vestida… Mas só consegui encontrar meu sutiã e minha calcinha… Teria me virado para ela, mesmo se não me chamasse bem baixinho:
– Camila… – o olhar de Sunny… Sempre tão seguro e atrevido, continha uma fragilidade que eu jamais esperaria… – Foi ruim?
Minha mão acariciou-lhe o rosto, enquanto meus lábios sorriam:
– Não… Claro que não…
Devagar, bem devagar… Com uma cautela encantadora, ela se aproximou de mim…
– Então… – uma das mãos escorregou para a minha nuca numa carícia, enquanto ela sussurrava dentro do meu ouvido: – Não quer repetir?
Meu corpo se arrepiou inteiro… Fazendo com que a simples ideia de recusar se tornasse ridiculamente impensável e… Humanamente impossível…
Flávia não insistiu para que eu falasse. Quando viu que eu não queria deixou para lá, com a condescendência que nos últimos dois anos tinha se tornado um hábito.
Entramos no carro um par de horas depois.
– Melhor sair de manhã cedo pra não pegar engarrafamento.
Afirmação de Mônica com a qual todas nós concordávamos…
Não vi com quem Flávia tinha passado a noite, isso pouco me importava. Estava focada em esquecer aquela viagem. Apesar de estar plenamente ciente de que não seria fácil.
A segunda vez foi ainda mais voraz do que a primeira. Sunny se deixou guiar sem a menor resistência… Como se adivinhasse ou talvez… Estivesse em sintonia com a minha necessidade… Sussurrou algumas frases entre gemidos, me obrigando a fazer com que se calasse com os meus lábios… Não queria palavras… Muito menos realidade… Só a saciedade de estar com as duas naquela cama… E o mórbido prazer que aquilo me causava…
– Vai ficar bem?
Foi o que Flávia perguntou, assim que desci do carro.
– Claro.
– Mesmo?
A insistência dela não era exagerada. Tinha tentado inutilmente participar das conversas, mas… Minha mente me traía… Rodava e voltava, sempre para o mesmo lugar…
– Pode ir tranquila.
– Então tá.
Ela acelerou e eu acenei antes de me virar e entrar no meu prédio arrastando a minha mala…
Depois que terminamos ainda me permiti ficar um tempo encaixada em cima dela, sentindo suas mãos acariciando minhas costas com suavidade…
Naquele instante desejei simplesmente… Poder continuar me perdendo naquele sentimento… E… O quê?
Sequer tinha conseguido estar ali com ela de verdade… O remorso veio forte, cortante, insistente… Tornou-se impossível continuar o que eu estava fazendo…
Ergui a cabeça o suficiente para encontrar o olhar de cor indefinível… Ela me puxou contra si, num movimento instintivo, como se soubesse o que viria a seguir…
Não resisti… Colei minha boca nos lábios absolutamente receptivos e os beijei, numa tentativa de amenizar, me desculpar ou quem sabe… Fazer com que ela entendesse:
– Eu tenho mesmo que ir.
A despeito do sorriso triste que me deu, dessa vez ela não tentou me impedir. Sentei na cama e vesti a calcinha e o sutiã rapidamente. Sorri para ela antes de sair do quarto em busca do resto das minhas roupas. Ela veio atrás de mim, me alcançou no exato momento em que eu enfiava a primeira perna dentro dos jeans:
– Eu te levo.
Enfiei a segunda perna, puxei a calça, abotoei… Respondi fechando o zíper:
– Não precisa…
Assim que localizei minha blusa caída perto da porta de entrada a peguei e vesti. Sentei no sofá para calçar as sandálias que achei em cantos opostos e, quando voltei a levantar, já pronta para sair, me deparei com ela ali… Parada no meio da sala inteiramente nua, os olhos fixos em mim…
Mil coisas poderiam ser ditas… Mas todas me pareceram idiotas, injustas, ridículas… Foi em silêncio que me aproximei e a beijei uma última vez antes de me retirar em definitivo…
O apartamento estava exatamente igual. Pelo menos me parecia, parada ali atrás da porta fechada, na entrada do Hall. Era a pela primeira vez que eu chegava e não precisava me policiar para não chamar:
– Amor, onde você tá?
Trazia em mim a dolorosa consciência de que Sandra não estava lá.
Acendi todas as luzes e liguei o som, onde enfiei aleatoriamente um pen drive… E como num sopro, manifestação ou mensagem… Elza Soares invadiu a sala com uma interpretação que me rasgou por dentro, me trazendo de volta à minha realidade:
“Sei que aí dentro ainda mora um pedaço de mim
Um grande amor não se acaba assim
Feito espumas ao vento
Não é coisa de momento, raiva passageira
Mania que dá e que passa, feito brincadeira
O amor deixa marcas que não dá pra apagar…”
De um dos milhares de porta retratos, Sandra me olhava, como se me reprovasse… Segurei-a com as duas mãos, e as lágrimas caíram, molhando o vidro sem, no entanto, tocá-la… A dor que eu sentia me martirizava, mas ao mesmo tempo, uma raiva imensa insurgiu, sem que eu fosse capaz de controlar… Atirei-a contra a parede, catarse e culpa se misturando no instante em que Sandra caiu no chão em mil pedaços… Corri para pegá-la, limpei-a dos estilhaços de vidro, pedi perdão mentalmente àquele… Retrato.
Imagem que, assim como todas as roupas e coisas de Sandra era… Só o que me restava.
Sentei no chão e permaneci ali imóvel, olhando para Sandra, até que a música terminasse. Então respirei fundo e apertei o botão de “rewind” para que a mesma melodia voltasse a tocar. E a lembrança que surgiu, ardendo como gelo há muito tempo em contato do corpo, foi a do dia em que Sandra evaporou no ar, como se eu a tivesse imaginado… O suplício das primeiras horas em que ela não atendeu mais ao celular… A combinação de oito dígitos que eu repeti incansavelmente, como um código que pudesse explicar o que talvez nunca fosse revelado…
Desde que Sandra tinha sido dada como desaparecida, minha verdade era o nada, nenhuma certeza ou vestígio que eu pudesse prantear… Naqueles oitocentos e noventa e três dias perdida, sem saber o que fazer, sentir ou pensar…
“Que uma coisa fique certa, amor
A porta vai estar sempre aberta, amor
O meu olhar vai dar uma festa, amor
Na hora em que você chegar”
(Espumas ao Vento – Accioly Neto)
Repeti para mim mesma baixinho:
– É a mulher que eu amo. Vou estar aqui esperando, até ela voltar.
Mas não consegui conter meu próprio pensamento, a lembrança me queimou sem que eu pudesse evitar: o olhar de Sunny para mim, antes que eu a deixasse…