Loren dirigia o carro alugado por Roberto em direção ao aeroporto. Olhava Helen a seu lado e logo em seguida, dispensava um olhar pelo retrovisor percebendo algo diferente na atitude das duas agentes.
— O que houve?
— Mmm? O que houve, o quê? – Perguntou Renee desperta de seus pensamentos
— Vocês duas. – Falou displicentes. — Não estão se implicando, não estão emburradas, não estão contrariadas uma com a outra. Estão numa maravilhada introspecção.
— Estou voltando para casa.
— Estou prestes a me livrar de meu fardo.
Responderam juntas, numa explicação apressada. Fazendo com que se entreolhassem, despertando mais a curiosidade da mentora. Loren riu.
— É. Acho que deve ser isso…
O sorriso permaneceu nos lábios da mentora que imaginava o que deveria ter acontecido. Pensou que as coisas estavam começando a se encaixar nos lugares certos.
Chegaram ao aeroporto de Poços de Caldas na hora que previram. Havia pouco tempo para embarcarem. Loren passou sem problemas e Helen vinha logo a seguir. O homem pegou seu “plate “, colocou no identificador e olhou para ela.
— Você está há quantos dias aqui no Brasil?
— Um mês, mais ou menos.
Helen respondeu num português de forte sotaque.
— Por que veio?
O homem não era nem um pouco simpático.
— Vim de férias e a trabalho, pois começo a trabalhar numa empresa de mineração no norte do país, daqui a dois dias.
— Ei, está nos atrasando.
Renee falou para o homem, logo atrás de Helen
— Existem procedimentos, senhora. – Respondeu o agente alfandegário.
— Sim, mas ela está indo para uma área que ninguém se arrisca. Ninguém quer morrer cedo. Ela não está entrando no país para jogar tênis e eu, estou atrás dela e atrasada. Ou tira ela da fila ou deixe-a passar.
As pessoas que vinham atrás de Renee, começaram a resmungar em concordância.
— É isso mesmo! – Falou um senhor.
— Está achando que ela está fugindo de volta para seu país? De onde ela é?
Reclamou outro. O agente da alfândega via que a confusão se avolumava. Autorizou a passagem de Helen. Quando Renee entregou sua autorização o agente rosnou para ela.
— Estamos em estado de alerta, não vê noticiários?
— Sim, eu vejo, mas também vi uma mulher tentar pegar um voo para BH. Seria uma fuga bem inteligente de alguém que carrega uma bomba por aí.
O homem entregou o “plate” de Renee contrariado. Normalmente mandaria prender alguém que lhe afrontasse desta forma. Porém, os ânimos estavam alterados, se prendesse uma mulher por lhe responder, e do jeito que seu chefe da polícia federal andava alterado com os últimos acontecimentos, chamaria sua atenção pela inútil prisão, mas colocou uma observação sobre as duas no sistema. Se tivessem tempo em Belo Horizonte, investigariam melhor as duas.
Após passar pela porta do avião, Renee olhou seu ticket de embarque e observou que o contato de Loren havia marcado os assentos em fileiras distintas. Sentiu-se aliviada.
Após meia hora de voo, tiveram que sair no desembarque de Belo Horizonte para nova passagem pela alfandega, pois o voo que pegariam, supostamente era um voo charter que reunia funcionários de diversas empresas. Seu destino era o norte do país, próximo as áreas que haviam sido destruídas pela terceira grande guerra. Ninguém averiguava muito estes tipos de voos, uma vez que as pessoas que eram alocadas, em filiais de empresas, nestas áreas de perigo de contaminação, eram muito bem pagas para se arriscarem a tanto. Porém, quando foram passar pela alfândega, o novo agente de alfândega as tirou da fila e pediu para que elas o acompanhassem. Levou-as a uma sala e pediu para que esperassem, para que suas credenciais fossem conferidas.
— Vocês se conhecem? – Perguntou o agente antes de sair.
— Nos conhecemos no aeroporto de Poços de Caldas, numa confusão que um amigo seu fez, por isso descobri que ela irá trabalhar na mesma empresa que eu e nosso voo está marcado para…
— Eu sei que horas é o seu voo.
O homem interrompeu, antes que Renee terminasse de falar.
— Fiquem aqui. Se tudo estiver certo, serão liberadas logo.
Enquanto o homem falava, Helen vasculhava a sala com o olhar para ver se tinha câmeras de vigilância. Elas poderiam ser tão pequenas e estarem tão camufladas que poderiam não ser detectadas.
Renee olhou para Helen e ela fez um sinal afirmativo com a cabeça muito leve, indicando que estavam sob vigilância.
— Então você vai trabalhar na “Norte Mineradora”?
Perguntou Renee iniciando uma conversa informal. Se estivessem as observando, tentaria tirar proveito da situação, dando informações sobre elas, que indicassem que eram pessoas comuns.
— Sim. Na área de análise de fósseis. Às vezes…
— Ei, vamos trabalhar juntas! Eu também fui contratada para esta área. Sei exatamente o que fazem lá. Já trabalhei em outra empresa deste tipo. Que confusão é esta que estão fazendo conosco, einh?
— Pois é, mas não os culpo. Viu o que fizeram numa cidadezinha no sul do estado?
— Vi sim. Que loucura, né? Será que as coisas vão começar a complicar novamente para o lado de cá?
Renee fazia a pergunta especulando ações de guerrilhas e revoltas, causadas pelas instabilidades econômicas e políticas do país.
— Não sei. Não conheço bem o Brasil. Vim pelo dinheiro e pelo reconhecimento. Como já trabalhei em um país africano de língua portuguesa, consegui o emprego.
— Você não tem família? Marido, filhos…
Nesse momento, Renee lançava um olhar sensual para a doutora. Helen entendeu o caminho que Renee queria trilhar e respondeu entrando no jogo.
— Não. Tive uma mulher que me meteu um par de chifres quando estava na África! – Encolheu os ombros. – Agora estou sozinha e na pista de novo.
— Que desperdício, doutora…?
— … Doutora Kelly Ryan. – Helen estendeu a mão para Renee. – Muito prazer.
— O meu é Clara Santos e com toda a certeza o prazer será todinho meu, doutora Ryan.
Renee segurou a mão de Helen e não soltou, olhando com intensidade.
— Nunca deixaria uma mulher linda como você por qualquer aventura…
O jogo começou. Queriam causar constrangimento aos olhos e ouvidos dos que as vigiavam, acelerando assim o processo de liberação. Permaneciam com as mãos unidas e Helen a olhava com um sorriso aparentemente envergonhado nos lábios.
— Você é muito gentil, mas se falarmos em termos de beleza, você é uma mulher muito bonita também. Acho que o prazer de nos conhecer, será mutuo e, se depender de mim, será um prazer bem grande.
Renee se aproximou mais de Helen, deixando pouco espaço entre seus corpos. Sorria sensualmente e era correspondida na mesma medida. Soltou a mão de Helen e colocou com seus dedos, uma mecha de cabelo que estava solto sobre a face de Helen, para trás da orelha, aproximando seus lábios do ouvido dela.
— Estamos sem fazer nada aqui; acredito que não tenha nada de mais começarmos a conhecer esse prazer melhor, não acha?
Falava baixo, mas não o suficiente para que não fosse captado por escutas sensíveis. Helen tomou um alento sob a voz provocativa e virou-se para capturar os lábios da outra. Antes de beija-la, respondeu no mesmo tom.
— Concordo, assim nosso tempo não será perdido.
Colou seus lábios, unindo seus corpos num abraço que não deixava qualquer espaço. Começaram a movimentar os corpos num apelo sensual enquanto se beijavam. A porta abriu.
— Han-han.
Alguém pigarreou, alarmando as duas e fazendo com que se desvencilhassem, aparentemente constrangidas.
— Estão liberadas. Sigam-me, pois o voo de vocês está só esperando que embarquem.
O agente se voltou, ligeiramente constrangido, caminhando em direção ao corredor, esperando que as duas o seguissem.
Renee e Helen se ajeitaram e o seguiram.
****
O jato não era muito grande. Quando entraram viram Anne, Rafael e Roger acomodados em algumas poltronas.
— Roger? – Falou Helen, espantada.
— Como vai, Helen? É doutora, você me deu trabalho. Tive que morrer para sair de lá, mas depois que soube o que estava acontecendo, vim para cá porque, afinal, a responsabilidade sobre você era minha. — Sorriu. – Estava no apoio da operação.
A ex-agente da Távola suspirou.
— Cansada e um pouco desnorteada. Sua aparente morte me fez questionar coisas, sabia? – sorriu.
— As coisas se encaixarão logo.
Renee foi de encontro a Anne a abraçando.
— Você está bem, Anne?
— Acho que me dei melhor do que vocês. Minha fuga não teve tantos atropelos. Mas o que foi aquilo, daquela bomba de fusão detonada? Que ideia foi essa?
Loren e Renee olharam para Helen, deixando a doutora constrangida.
— Deu certo. — Defendeu-se.
— Bom, ainda não alçamos voo, portanto, não estamos seguros. Quando chegarmos, contamos tudo. Helen, sente-se. – Loren pediu. – Você descansará até chegarmos.
— Você está insinuando que vão me sedar novamente?
— Helen. — Renee se aproximou. – É o procedimento. Confie em nós, por favor.
Renee fez o pedido de forma carinhosa e Helen suspirou.
— Ok. Mas saiba que é sob protesto.
Falou baixo se dirigindo apenas a Renee, que sorriu, a ajudando a se acomodar. Reclinou a confortável poltrona para que ficasse na posição horizontal.
— Eu já volto. Vou pessoalmente pegar o sedativo para você.
Beijou sua testa e saiu em direção a uma pequena cabine, que havia na parte de trás e foi provocada na mesma hora por Anne.
— Também quero beijinho na testa, Re.
Todos gargalharam, porém emudeceram em seguida, ao ouvirem as palavras vindas da poltrona reclinada.
— Arrume uma namorada também, Anne, e quem sabe, ela possa ser tão atenciosa como a minha. – Virou-se para Loren. — Respondi seus questionamentos lá do carro, Loren?
Piscou para ela. Todos ficaram atônitos, mas um sorriso permeava os lábios da mentora.
— Completamente, doutora.
****
Helen acordou desorientada em um quarto de hospital, igual ao que havia ficado na Organização, quando teve o colapso. Olhou em volta e conseguiu focar em uma figura sentada ao lado.
— Renee?
— Oi, estou aqui.
Renee se levantou da poltrona e caminhou até a cama.
— Isso é quase um “déjà vu”. Ei, você é você novamente! Até sua voz voltou.
Renee sorriu ao ver que Helen notara, rapidamente, sua mudança.
— Gostou? — Perguntou insegura.
— Eu gosto de você, Re. Vem cá. – Estendeu-lhe a mão. — Mila me lembra a confusão toda, Renee me lembra quando cheguei aqui e as duas me lembram todo o processo que passei. Não importa a aparência que tenha. É você e não a sua aparência.
Renee cada vez ficava mais feliz com as reações de Helen, mas precisava conversar com ela rápido, antes que as coisas precipitassem para algo desastroso.
— Ok, mas agora temos que conversar.
Renee falou um pouco tensa.
— Ah, isso temos. Eu quero saber o que estou fazendo aqui? Aconteceu alguma coisa na viagem de avião?
— Não exatamente na viagem. Nós não deixamos que acordasse depois que pousamos. A trouxemos diretamente para a clínica. Me escuta primeiro antes de tirar conclusões.
Renee interrompeu-a antes que Helen começasse a protestar.
— Tivemos um motivo forte para isso e se deixar que explique, você me dará razão. Por favor, não interrompa.
— Continue, mas vai ter que ser algo muito bom para ter me deixado dormindo.
Renee balançou a cabeça em negativa e sorrindo.
— Ok, vamos lá. Antes de sairmos de Poços de Caldas, quando Loren encontrou Roberto, ele passou algumas mensagens em vídeo que Ruth e Irina haviam enviado para ele. O canal de Roberto era seguro para que elas entrassem em contato para nos passar essas informações.
— Que informações?
— Helen!
— Tá, continua.
— Quando você saiu daqui, há pouco mais de um mês, os seus exames funcionais estavam normais, mas Vermond, o outro neurologista que havia lhe acompanhado no seu colapso, ficou intrigado, isto porque os exames, também não apresentaram nenhuma alteração nos marcadores enzimáticos que pudessem indicar stress. Ele começou a fazer uma investigação mais aprofundada e quando estávamos fugindo de Paraty, descobriu algo, tão interessante, quanto relativamente perigoso. Já ouviu falar de “nano neuroenzimas híbridas”?
— Sim. São utilizadas para tratamento de doenças psiquiátricas na indução de enzimas que carecem no organismo ou correção na indução de sinais para tratamento dessas doenças.
— Está correta, mas não servem só para tratar essas doenças psiquiátricas ou neurológicas. Elas podem ser utilizadas para fazer qualquer coisa no cérebro de um indivíduo.
— Mas é proibido.
Renee estreitou o olhar e seu semblante estava permeado de ironia. Helen se atinou de sua ingenuidade.
— Tá. Concordo que a Távola não é ética, mas você está insinuando que colocaram essas coisas em mim? Por que eu e para quê?
— Então vamos lá para a segunda parte da história. Vermond conseguiu isolar um desses “bichinhos” in vitro. Elas, além de se prestarem ao papel de condutores, carregam uma gama de informações e obliteram outras. Na verdade, essas que estão aí… – Apontou para a cabeça de Helen.
— Elas ainda estão dentro de mim? – Helen falou alarmada.
— Se não estivessem, você estaria lembrando de muita coisa. Deixa eu continuar.
— Tá, vai. Fala logo.
Renee bufou.
— Bem, estas aí, são “nano neuroenzimas híbridas inteligentes”.
— Inteligência artificial dentro de “nano neuroenzimas hibridas”? Uau! Eu devo ser muito interessante mesmo!
— Não precisa se preocupar com isso. A única pessoa, agora, que precisa achar você “interessante”, sou eu. Sossega.
Helen riu, com o sentimento de posse que Renee demonstrou, mas apesar de fazer brincadeiras para descontrair, estava apreensiva, intrigada e nervosa.
— Bom, para encurtar, a notícia boa é que, a equipe de Vermond conseguiu descobrir o que elas induzem, as informações que carregam e conseguiu isola-las também. Utilizou a mesma tecnologia para aglutiná-las em uma área de seu cérebro.
— Você está me dizendo que agora eu tenho um aglomerado de nano enzimas igual a um tumor no meu cérebro? – Falou novamente alarmada.
— O que eu mais gosto de você, é que reúne as informações rapidamente. – Riu, burlesca. — É exatamente isso. Você tem um tumor de “nano neuroenzimas” no seu cérebro, o que não significa que não podem se reestruturar e se liberarem novamente. Essa é a notícia ruim.
— Deus, e o que querem fazer com isso?
— Queremos sua permissão para retira-las, enquanto estão aglutinadas.
— Permissão? Renee, por favor, já deveriam ter retirado!
— Não é tão simples, Helen. Uma das informações que o Vermond conseguiu extrair, é que elas são autodestrutivas em caso de violação. Por isso ele as isolou. E por isso também, queríamos que você falasse se quer ou não. Se não quiser, você viverá com elas e não poderá, de forma nenhuma, se lembrar de nada do seu passado.
O rosto de Renee transparecia preocupação e não passou despercebido por Helen. Loren e ela haviam falado coisas do passado de Helen para ela e poderiam ter detonado uma sucessão de eventos nada agradáveis, se acaso Helen tivesse feito conexões com essas informações.
— Não poderei ou não lembrarei?
— Não poderá. Não lembrar seria uma condição depois que colocaram essas coisinhas aí dentro, mas não foi assim que se delineou o programa “Torre Fulminada” para você. Provavelmente, eles não entendiam porque com você, o programa e as “nano neuroenzimas” não funcionavam você, e a missão se tornou “a missão dentro da própria missão”. Eles ainda tentaram levar adiante a missão principal, mas você desestabilizava muito e se tornou um risco. Você poderia literalmente explodir a qualquer hora. Qualquer lugar que ocorresse isto, seria um risco, pois sua autópsia poderia denunciá-los.
Helen parou uns segundos para processar o que Renee acabara de falar.
— Renee, você está me dizendo que se eu lembrar qualquer coisa do meu passado, sem mais, tendo essas “nano neuroenzimas” dentro de mim, eu posso explodir?
— Tecnicamente, sim. Elas são programadas para desestabilizarem e desagregarem. Eles não imaginavam que, realmente, pudesse ocorrer em qualquer lugar. Era como uma forma de controle para eles, por isso as fizeram assim. Só que você não respondeu ao que imaginavam. Fica tranquila, a equipe do Vermond está trabalhando para…
— Renee, por favor! Quanto tempo eu tenho até que essas coisas desaglutinem novamente?
— Não sabemos. Você está sendo monitorada e elas estão estáveis.
— Chama quem tiver que chamar para tirar isso de mim!
— Fica calma. Você esteve tanto tempo com elas, que é improvável que algo aconteça. Vou chamar Vermond agora. É isso que você quer realmente?
Renee perguntava para que Helen tivesse certeza, mas estava feliz pela decisão que ela tomara.
— Claro que é isso que eu quero, Re! E puta que pariu, se a sua intenção era me assustar, conseguiu. Como você foi convincente!
Renee se voltou imediatamente em direção a porta, para que Helen não visse seu sorriso. Era exatamente essa decisão que queria que Helen tomasse. Foi direta e deu tons dramáticos tentando ser imparcial, porém a verdade era que, desde que soubera de tudo, estava cada vez mais apreensiva com a integridade física de Helen. A cirurgia seria um risco, mas Helen não sabia da metade de seu problema. Essas “nanoenzimas” poderiam “explodir” dentro da cabeça de Helen a qualquer momento. Era um risco alto retirá-las, mas na concepção de Renee, risco maior era que a doutora ficasse com elas.