A Organização

Capítulo 8 – Despedidas e encontros

Helen chorava convulsivamente. Renee não mais sabia o que falar. Não conseguia perscrutar o turbilhão de sentimento que arrasavam a alma daquela que havia desestruturado todo o equilíbrio da sua própria alma. Os sentimentos eram tão fortes e intensos que custava a acreditar que, um dia, pudesse voltar ao normal.

— O que você tem?… Te magoei?… Me fala, talvez eu possa te ajudar…

Renee estava abraçada a Helen e não conseguia se desvencilhar ou diminuir o mal estar que sentia em relação àquele choro tão cáustico que a dilacerava por completo.

— Infelizmente nem você, nem ninguém pode me ajudar… Apenas eu…

Calou-se e permaneceu assim por longo tempo, até que veio o sono da derrota. Aquele que refaz nossos pensamentos, nossos sentimentos e cura quase tudo…

Na manhã seguinte, Renee acordou e percebeu pela primeira vez em todos aqueles dias, ou melhor, em toda a sua vida que nunca havia, realmente, amado alguém. Era difícil entender o que recaia sobre ela. Não sabia como agir ou o que fazer com aquele sentimento. Sabia que queria aquela mulher para si, nem que tivesse que revirar o mundo inteiro. Nem que tivesse que enfrentar impérios, não deixaria Helen sozinha, não deixaria que ninguém tocasse em um fio de cabelo daquela mulher. “E que cabelo… Macio… Cheiroso… O melhor dos melhores perfumes não conseguiria apagar a fragrância que ele exalava”.

Ela nunca esqueceria aqueles olhos que pareciam brilhar como estrelas, aquela boca harmônica e bem cortada. A pele de seda suave ao toque. Não. Não poderia deixá-la à deriva, sem um norte. Estaria com ela, mesmo que na incógnita. Protegeria. Vigiaria até que pudesse trazê-la consigo.

*****

Na partida de doutora Helen, ela havia pedido para que a deixasse em Port Moresby em Papua-Nova Guiné, com a desculpa de que ainda estaria de férias e gostaria de descansar, antes de retornar ao trabalho. Renee deduziu que assim ficaria mais fácil para ela se deslocar para qualquer parte do mundo, dificultando o seu rastreamento por parte dos seus futuros perseguidores.

Renee deveria se apressar para sua partida também, antes que perdesse a sua “caça” de vista. No entanto, deveria fazer as honras da partida de sua hospede. Paramentou-se com apuro, sentindo seu coração bater com agastamento. Afligia sua alma saber que dali para frente qualquer deslize seu, poderia colocar em risco a vida de Helen. Depois da noite em que fizeram amor, a doutora se fechou e não quisera mais vê-la, sem lhe dar qualquer explicação.

Intuía o “porque” de Helen tê-la repudiado. Não queria que os sentimentos confessados pelas duas travassem sua mente, para que pudesse traçar seu plano de fuga com bastante precisão. Gostaria de estar apoiando-a naquele momento, mas sabia que para tudo correr bem, deveria ficar incógnita. Aquietou-se assim que viu Helen despontar pelo corredor do aeroporto da Organização.

O olhar de Helen agora divagava. Renee a percebeu distante, as olheiras torneavam profundas as órbitas de seus olhos. “Ela não dormiu a noite inteira, ou melhor, talvez não tenha dormido esses dois últimos dias…” Pensou Renee.

Seria melhor assim…

…………….

Em Port Moresby, já em seu disfarce, uma aparência andrógina cabelos curtos e talhados em pontas, olhos verdes e uma bio-maquiagem aderida à pele, que dava a aparência de um rosto mais anguloso. A voz sintonizada em um timbre mais grave, uma tatuagem de um pequeno dragão de komodo subindo pelas costas, do lado direito em direção ao pescoço, reforçavam o estereótipo de mulher “descolada”. Na vestimenta, esmerou-se para manter o estilo com uma calça jeans gasta, camiseta preta e botas. Ali estava ela, ao lado de Helen, pegando as bagagens e olhando-a intensamente.

A doutora parecia não estar “esperta”… Estava dispersa, longe e desanimada. Renee, que agora tinha um codinome, lhe esboçou um belo sorriso e lhe falou:

— Não é excitante estarmos num dos poucos paraísos ainda existentes? Meu nome é Elizabeth

Estendeu-lhe a mão efusiva.

Atordoada e desconfiada, Helen lhe estendeu a mão com um sorriso de canto de boca, tentando escrutinar a mulher que se apresentava tão solícita ao seu lado.

— O meu é Darryl, como vai?

Renee percebeu que Helen desconfiara de sua atitude, o que era uma lógica, já que estaria fugindo e tentando se esconder…

— Não é emocionante estarmos aqui!! Quero dizer; isso é um dos últimos refúgios naturais em que ainda podemos visitar! Vai ficar muito tempo?!! Minha mala está demorando…

Renee fizera questão de bombardeá-la com exclamações e questionamentos para não dar tempo de Helen se esquivar as respostas.

— Possivelmente não… Estou de passagem.

— Que pena! Ficarei pelo menos uns 15 dias e adoraria ter uma companhia para conversar. Em que hotel estará? Quem sabe… Pelo menos poderíamos jantar juntas hoje.

— Sinto muito, agradeço seu convite, mas estou muito cansada. Tomarei um banho e irei para cama cedo, hoje.

— Ok! Se der, nos veremos por aí.

Renee deixou que Helen pegasse a bagagem e se distanciasse para depois segui-la, se esgueirando cuidadosamente pelos corredores do aeroporto. Tomava cuidado, pois havia se apresentado propositalmente, para que depois de alojadas no hotel em que Helen escolhesse, se manteria bem visível, aguçando assim, a curiosidade da outra em sua personagem. Seguiu-a até o hotel e após a doutora ter se instalado, foi até a recepção e sondou para ver o quarto que Helen havia se instalado, se alocando em um quarto em frente.

Mas, à noitinha, quando percebeu que Helen havia saído do quarto, foi até o restaurante do hotel. Com sorte a encontraria jantando.

“Bingo!!! Sabia que viria para cá, não quer se expor… Vai jantar e voltar para o quarto… Tenho que saber se irá embora amanhã como penso que fará. Pelo menos se fosse eu a fugir, não esquentaria muito um lugar… Passarei na recepção e verei se fechará a conta. Mas por agora começarei o meu show.”

Colocou-se em uma mesa à frente de Helen, porém estava sentada em uma cadeira em diagonal a esta, quase de costas, mas se deixando ver parcialmente. Pediu o cardápio para o garçom e percebeu o olhar inquisitivo recair sobre ela. Já havia despertado a atenção de Helen, e esta aproveitaria a deixa de terem se conhecido no aeroporto e, tentaria pesquisar, quem era a estranha figura da tatuagem. Poderia já estar sendo seguida e como fugitiva, não poderia deixar passar coincidências…

“O que essa garota está fazendo aqui? Não podem já estar me seguindo! Essa é minha rota de fuga, ninguém conhece e não poderiam saber quando eu sairia da Organização! Não tem importância… Vou averiguar isso agora e se eu desconfiar que essa garota está me seguindo, tenho que dar um jeito nela…”

— Oi! Como está? Que coincidência, nos hospedamos no mesmo hotel!!

— Oi! É mesmo. Que bom que você me viu… Eu estava me sentindo muito sozinha. Começo a pensar, afinal de contas, que uma viagem tão distante de meu país não é para se fazer desacompanhada… Sente-se, por favor.

— Não vou te incomodar?

— Claro que não… Eu estou me sentindo péssima… Deslocada… Não sei nem como fazer para iniciar a minha viagem…

— Você está de férias?

— Sim.

— E de onde você é?

— Estados Unidos, e você?

— Austrália. Vai ficar muito tempo?

— Eu estava pensando em ficar uns quinze dias, mas agora eu estou questionando se vou aguentar.

— Ahh! Fica sim! Aqui é um lugar muito legal, você vai encontrar companhia…

— E você não quer ficar mais uns dias? Chegou hoje mesmo…

— Não posso, estou só de passagem mesmo. Mas veremos. Talvez amanhã, algo de novo aconteça e me faça ficar… Boa noite. Estou um pouco cansada e vou subir para dormir.

— Boa noite.

“Ela está desconfiada… Isso é bom para mantê-la atenta. Ela não podia ficar tão dispersa quanto antes.”

De manhã bem cedo, Helen já havia partido para o aeroporto para mais uma viagem e Renee estava em seu encalço, apenas vigiou de longe para saber o seu destino. Havia mudado de disfarce e dessa vez não permitiria que a outra a visse. Queria conhecê-la em seu próximo destino, somente se esse fosse o permanente, o que achava pouco provável.

Sua próxima parada era África do Sul, Pretória. Renee teve sorte de não ter um vôo de imediato, facilitando a compra do seu bilhete.

A chegada em Pretória foi muito tumultuada. A polícia especial da África do Sul estava atrás de contrabandistas e Helen não deu muito tempo para Renee se refazer. Logo que chegou, preferiu comprar um bilhete de embarque para o Chile e embarcou com espaço de apenas uma hora. Renee teve que pegar um vôo em outra companhia aérea, pois não tinha mais passagens na companhia que Helen havia comprado. Escolheu uma companhia em que o seu voo era direto e chegava pouco antes do voo de Helen. Assim daria tempo de mudar novamente de disfarce e espera-la no aeroporto de Santiago.

Renee carregava um “card” com arquivos de mais de cem rostos diferentes e conseguia imprimir em impressoras 3D compradas em qualquer loja. Bastava que a impressora 3D aceitasse a composição de material de que necessitava. Levava em sua bagagem provisão do material bio-aderente, no entanto, tinha que se precaver, caso Helen fizesse muitas alterações de destino. Não poderia vacilar e deixar seu estoque deste precioso suprimento acabar. Devia também, tomar muito cuidado e guardar com a vida o “card” com as informações, pois não poderia se expor, alocando os arquivos em uma “nuvem virtual”. Como já falavam os antigos em uma máxima do século vinte, “caiu na rede, é peixe”. Qualquer coisa colocada em servidores virtuais estaria sujeito a rastreamentos.

De Santiago, Helen seguiu para o Brasil, que pareceu ser a última parada de sua fuga aparentemente calma.

Com a chegada ao aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, Helen se encaminhou a uma agencia de aluguel de automóvel e Renee seguiu seu passo. Com outro rosto e nova composição de roupa, Renee se postou logo atrás de Helen, na fila do aluguel e pode observar que Helen entregaria o carro em uma agência em Paraty, uma pequena cidade ainda preservada no sul do estado. De posse desta informação, não precisou mais segui-la tão de perto, deixando sua “presa” se distanciar sem maiores preocupações. Finalmente, Helen havia escolhido sua cidade de esconderijo.

****

Há muito tempo Renee não voltava a sua terra natal. Quando havia alguma coisa a ser feito em seu país de origem, preferia que outros agentes se incumbissem da tarefa. Não que se incomodasse em estar ou realizar qualquer coisa no Brasil, mas havia cortado todas as relações anteriores. Amigos, o restante da família, que eram poucos, e parentes muito distantes. Disse que se mudaria para o mundo e provavelmente não retornaria. No início trocava e-mail e raras vezes, ligava para alguém. Sempre se colocando em locais diferentes do globo, com a desculpa de pesquisa científica, o que não deixava de ser verdade. Após algum tempo parou de mandar até os e-mails. Nunca mais encontrou ninguém.

Agora se via, de certa forma, sem saber o que esperar e justo em seu estado natal. Bem, de qualquer forma, se encontrasse algum conhecido também não a reconheceriam. Poderia passar despercebida, porém a possibilidade disso ocorrer a deixava com uma ansiedade um pouco maior e uma leve sensação de desconforto.

Quando Helen se afastou, Renee pediu informações à garota da agência apenas para deixar que a doutora se distanciasse o suficiente para ela sair dali. Agradeceu a menina e foi procurar uma agencia de táxi aéreo. Sabia que Helen havia alugado o carro para cortar o ciclo de sucessivas compras de passagens aéreas, mas gostaria de chegar ao destino antes dela. Desta forma, poderia procurar um local para ficar, comprar seu próprio carro e se “metamorfosear” outra vez. Quem sabe, pela última vez durante muito tempo.

Passados quarenta e cinco minutos de helicóptero, Renee chegou a seu destino, já com uma casa alugada na Praia do Pontal no centro de Paraty. Ali era um pequeno istmo de terra que se projetava no canto esquerdo da baia de Paraty e esta, dava a visão para uma praça. A negociação entre ela e o dono da agencia de táxi aéreo, durou pouco mais de dez minutos e teve a sorte do homem perguntar se já sabia onde se instalar, oferecendo-lhe este serviço.

A localização da casa era privilegiada pela vista e proximidade do centro. Mais calma, preferiu então não fazer qualquer negócio, fosse uma compra de carro ou casa, sem saber as reais intenções de Helen. Alugaria o que precisasse por enquanto, sabendo que teria que dar atenção a sua própria rota de fuga, caso algo ocorresse.

Dirigiu-se diretamente à casa alugada para que ninguém pudesse vê-la antes de mudar sua aparência novamente. O que mais a incomodava na vida de agente, era exatamente quando tinha que seguir alguém tão próximo, obrigando-a mudar constantemente até que sua “presa” se estabilizasse.

Para os agentes da Organização, “presa ou caça” era jargão utilizado para identificar alguém que estava sendo observado, seguido ou procurado. Facilitava nas comunicações, mas no caso em que se encontrava, Renee achava estranho continuar pensando assim em relação a Helen, no entanto era a mais pura verdade. No momento, Helen era realmente a sua “presa”.

Chegou à casa, observou detalhadamente o lugar. A casa parecia nova, estava bem conservada e limpa. Tinha três suítes, um grande salão em 2 ambientes que davam diretamente para uma ampla varanda, descortinando a paisagem do mar. Havia também o que poderia ser chamado de home theater. A mobília em madeira escura, com um design em linhas retas e poucos objetos de decoração, fazia o ambiente parecer mais amplo e arejado. Havia uma cozinha espaçosa com uma copa integrada e banheiro social contíguo à sala. Renee chegou à área dos quartos através de um corredor largo. Logo de cara o primeiro a agradou. Seria lá que ficaria. Um quarto com uma cama king size voltada para as portas de vidro de correr, que davam para um deck suspenso com a face voltada para o mar. A casa estava incrustada em um aclive e a parte do deck parecia estar em balanço, causando a sensação de que flutuava acima do mar. O banheiro também era muito amplo e claro, em perfeita harmonia com o restante do quarto.

“É, ficarei com esse!” — pensou.

Tomaria um banho e pensaria que tipo de aparência queria para si, já que agora deveria permanecer mais tempo neste lugar. Teria que imaginar que tipo de pessoa atrairia Helen.

****

Helen dirigiu por três horas seguidas, sem parar. Quando chegou a Paraty, já passava de sete horas da noite e ela se encontrava exausta de toda aquela maratona de viagens. Resolveu se hospedar numa pousada, para descansar antes de se estabelecer.

Já acordada às sete horas da manhã, Helen saiu da pousada para procurar um local para ficar. Andou pelas ruas fora do centro histórico e se deparou com uma imobiliária grande; resolveu entrar. Um rapaz bem apessoado a abordou. Ela disse ao homem que queria se estabelecer na cidade e procurava um imóvel para morar e outro para abrir um café.

Visitou alguns locais que o rapaz lhe mostrou para servir de casa. Interessou-se particularmente por um, que se encontrava no miolo do centro histórico.

Era um casario bem antigo de mais de quatro séculos, porém bem conservado. Já havia sido um estabelecimento comercial ao longo do tempo. Parecia que a cidade histórica brasileira havia parado no tempo, mesmo após os períodos de caos que vieram no ultimo século e pelos quais o planeta continuava passando.

Helen já havia lido sobre a cidade, mas espantou-se ao chegar. Seu encantamento foi imediato. Havia uma usina nuclear próxima, porém o governo se preocupava com a sua conservação. Ocorriam também investimentos de outros países, na intenção de explorar as ultimas riquezas naturais, mas aquele lugar permanecia inerte, com uma “fisionomia” que parecia a mesma de centenas de anos atrás. Assustadoramente conservado…

O casario tinha logo na entrada, um imenso espaço que poderia abrigar seguramente uma cafeteria e o que mais a agradou, foi o fato dele ter um jardim interno que separava de outra construção que serviria de casa para si. Uma casa muito agradável em que poderia fazer algumas reformas e deixa-la do seu jeito. Ela tinha um porão que poderia servir de adega ou outra coisa que desejasse.

Tinha nova identidade, havia fugido de forma a não deixar vestígios, mas nunca mais relaxaria. Seus antigos empregadores eram competentes e sabia da possibilidade de ser descoberta. Pensou que não seria uma coisa ruim, montar seu estúdio de guerra nesse porão.

O sol estava ameno, pelo menos nas circunstâncias atuais poderia dizer que 48ºC era ameno, pois a umidade relativa do ar em Paraty, devido às matas muito próximas, era de cinquenta por cento. Existiam locais que, além de temperaturas altíssimas, a umidade era abaixo de vinte por cento, tornando-se insuportável viver.  Mesmo utilizando os termorreguladores de ambientes internos, ir à rua, às vezes, era tortura.

 “Será que escolhi o local correto para me esconder? É um lugar tão bom para se viver, que seria fácil de me rastrearem… Não… Fiz tudo com precisão, não posso ficar tão paranoica. Pelo menos até me estabelecer”.

— Vou ficar com este. – Disse ao vendedor.



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