JOANA

Acordei sentindo que o mundo havia desabado sobre a minha cabeça e pelas dores que sentia, era bem provável que tivesse sido isso mesmo. Alguns segundos se passaram até que reconhecer o local em que me encontrava.

Meu corpo inteiro latejava, mas respirei aliviada, pois se sentia dor era sinal de que estava bem viva.

Marcela estava adormecida em uma cadeira com a cabeça apoiada sobre a cama. Segurava minha mão delicadamente. Olhei, com certa dificuldade, as horas no relógio que ela trazia no pulso. Ainda era madrugada.

Passei o resto da noite observando-a dormir e me perguntando o porquê das coisas terem que ser tão difíceis para nós. Pensei, com tristeza, no que a intolerância e o preconceito eram capazes de fazer.

— Tive tanto medo de te perder.

— Amor, estou bem e você nunca vai me perder — acalmei-a.

Enxuguei uma lágrima que insistia em escorregar por sua face e ela me abraçou novamente. Doía um pouco ser abraçada, mas não queria que se afastasse, doeria muito mais em mim não sentir o calor do seu corpo junto ao meu.

Hellena, que era a médica de plantão, praticamente teve que expulsa-la do quarto para poder me examinar.

— E aí, estou pronta para outra? — perguntei em tom de brincadeira.

Hellena sorriu e me respondeu no mesmo tom.

— Espere alguns meses antes de tentar parar um carro com seu corpo novamente.

— Oh, droga! — fiz um bico.

— Ordens da médica, mocinha!

Ela riu e fiquei feliz por estar sob seus cuidados, me sentia segura.

— Quer me contar o que aconteceu? — perguntou deixando as brincadeiras de lado.

Deixei o ar escapar de meus pulmões com uma pontada incomoda nas costelas.

— Não lembro de muita coisa.

Ela cruzou os braços, o estetoscópio brilhando sobre o jaleco branco que usava. Parecia cansada e uma pequena ruga se formou em sua testa ao ouvir minha resposta.

— Esse tipo de coisa não acontece muito por aqui — comentou.

— Acho que o cara estava bêbado — argumentei.

Ela deu de ombros.

— Mesmo assim.

Tentei sorrir para afastar o assunto e voltei a brincar.

— Então, vou viver, doutora?

— Até os cem anos, acho! — me sapecou um beijo na testa e se encaminhou para a porta.

— Todos os seus pacientes ganham beijinho na testa? — provoquei.

Ela se voltou com um sorriso largo.

— Só aqueles por quem tenho um carinho especial e dedico amizade sincera — e saiu enfiando as mãos nos bolsos ao passar pela porta que mal se fechou e Marcela adentrou no quarto, assumindo seu lugar ao lado da cama.

— Em que está pensando? — ela me tirou de meus devaneios, minutos depois.

— O que disse?

— Perguntei em que está pensando. Está aí tão calada, com o olhar no vazio. O que te preocupa? Sente alguma dor? Quer que eu chame Hellena?

Sorri, fazendo um gesto para que se acalmasse.

— Não. Estou bem, anjo. Mas quero te perguntar uma coisa.

— Manda!

— Você quer ir embora desta cidade comigo?

Ela se afastou surpresa.

— Como assim? Do que está falando?

— Estava conversando com Edu alguns dias atrás. Ele pretende abrir uma loja na cidade onde fica a nossa universidade e disse que precisava de alguém para cuidar dela e já que nós pretendemos estudar lá, seria perfeito. Assim não precisaríamos ir e vir todos os dias para cá…

— Por que não me falou disso antes?

— Não sei. Queria esperar para ver, sei lá! Ele me propôs a gerência da loja e eu aceitei.

— Sem me comunicar?

— Estou fazendo isso agora. Quero sua opinião.

Seu olhar era enigmático.

— Por que quer ir embora, Jô? As coisa estão se acertando com a sua família, estamos bem juntas…

— Não sei — menti. — Só acho que seria mais fácil para nós se vivêssemos lá e nos afastássemos um pouco daqui para respirar novos ares.

Meu coração desejava ardentemente que ela topasse a ideia. Nunca fui mulher de fugir dos meus problemas e nem pretendia fazer isso, mas não queria que Marcela sofresse mais. Seria pior para ela se soubesse o que realmente tinha acontecido.

— Desculpe, mas é que todo aquele lance com Natália me deixou um pouco abalada e sinto que precisamos dar um tempo daqui, principalmente, um tempo do teu pai — confessei.

— Eu acho que entendo — falou baixinho, uma ruga se formando em sua testa.

 Tomei suas mãos nas minhas.

— Pense um pouco sobre isso, não precisa me responder agora.

Ela assentiu com um meio sorriso.

— Marcela, independente da sua decisão, estarei com você, ficarei com você. Sempre — ela sorriu iluminando todo o ambiente e me envolveu e um abraço cuidadoso.

Gostaria de ter me aprofundado mais no assunto, mas uma enfermeira entrou no quarto com uma bandeja nas mãos, trazia o meu café da manhã e Marcela logo se prontificou a me dar comida na boca.

— Amor, eu quebrei o pé e não as mãos! — ri.

— Será que não posso mimar a minha namorada doentinha? — fez uma carinha afetada e não pude deixar de rir permitindo que ela o fizesse.

Algum tempo depois, Edu e meus pais surgiram à porta e notei que era o meio da manhã e o horário de visitas havia começado. Estavam alegres por me verem acordada e, na medida em que a situação permitia, bem.

— Você está precisando de um banho — Edu informou a Marcela, fazendo uma careta afetada ao franzir o nariz. Tentava fazê-la ir para casa descansar um pouco e concordei com ele.

Ela revirou os olhos e bateu o pé, nossos argumentos estavam se esgotando.

— Parece até que querem se livrar de mim — queixou-se ela.

— Talvez no próximo verão, cunhadinha. Só achamos que você precisa descansar um pouco após toda a tensão da noite passada. Está com olheira terríveis — apelou para a vaidade dela e quase conseguiu, mas Marcela era cabeça dura.

Após muita insistência, ela foi. Mas, duas horas depois, estava de volta. Meus pais já haviam ido embora e Edu conversava comigo sobre os planos da nova loja quando ela chegou.

— Pela rapidez, alguém não descansou como deveria — disse ele ao vê-la entrar no quarto.

— Imagina, Edu! Estou ótima. Apenas aproveitei a ida até em casa para tomar um banho e comer algo. Não queria me afastar da Jô por mais tempo.

— Que foi que você fez com essa menina, hein? Teu beijo tem supercola? — brincou ele comigo.

— Se eu te contar o segredo…

— Adoraria saber, não me poupe dos detalhes picantes! — sorriu afetado.

— Seu nojento! — Marcela deu-lhe um tapinha no braço, tentando esconder o sorriso.

Ele mexeu conosco por mais alguns minutos e depois entrou no assunto do meu atropelamento, tentei desconversar e eles perceberam. No entanto, continuaram insistindo.

— Amor, você não lembra de nada mesmo? — Marcela me perguntava mais uma vez.

— Não viu quem dirigia o carro? — Edu perguntou do outro lado.

— Vocês querem parar com esse interrogatório? Não me lembro de nada, não vi nada. Por que isso não entra na cabeça de vocês?

— Porque não faz sentido — Edu respondeu gesticulando. — Esse tipo de coisa nunca acontece por aqui.

— Por favor, Jô! Todo mundo se conhece nesta cidade; por mais errado que alguém esteja, não iria fugir sem prestar socorro — Marcela atalhou.

Minha cabeça doía de tanto tentar imaginar uma forma de fazê-los esquecer o assunto, mas o que Marcela havia dito era um fato. As pessoas da nossa cidade, mesmo erradas, não deixariam alguém sangrando e inconsciente no meio da rua o que tornava minhas negativas de tocar no assunto ainda mais complicadas.

— Então, é verdade — Natália surgiu à porta chamando nossa atenção, nas mãos trazia um ursinho de pelúcia. — Ele cumpriu a ameaça.

Me fitava tão intensamente e suas palavras tinham tanta verdade que baixei os olhos.

— O que você está fazendo aqui, ruiva dos infernos? Do que está falando?

Teria rido do novo apelido que Marcela lhe deu se não estivesse tão abalada com suas palavras e presença.

— E você ainda pergunta? Estou falando do seu pai.

Marcela empalideceu.

— O que meu pai tem a ver com isso?

— Você é meio lenta mesmo ou se faz de tonta? — Natália provocou não de forma maliciosa, pois percebi que estava mesmo zangada com Marcela.

— Ora, sua… — Marcela avançou em sua direção, mas Edu a segurou.

— Calma, Marcela! Calma!

— Eu vou dar outra surra nessa peste! Me solta, Edu!

Ele aumentou a força de seus braços em volta dela e meu estômago se contraiu com a certeza da tempestade que estava por vir e que eu não poderia impedir.

— Estamos em um hospital, Marcela. Vamos acabar sendo expulsos daqui. Acalme-se!

Com muito custo, Marcela parou de tentar se libertar e aquiesceu. Lentamente, ele a soltou.

— Ótimo!

Ele se voltou para Natália, que não havia se movido um centímetro.

— E você, continue o que estava dizendo, por favor.

MARCELA

Não podia, não queria acreditar no que aquela cretina estava dizendo. Ela estava insinuando que meu pai era o responsável pelo atropelamento da Joana.

Isso era demais! Era inaceitável para mim, não conseguia conceber uma imagem tão terrível dele. Era certo que ele não aprovava nosso relacionamento, mas daí a chegar ao ponto de tentar matar Joana…

— Vocês não prestaram atenção ao que eu disse naquele dia… — Natália deixou um sorriso magoado escapar, depois balançou os ombros como se aceitasse algo que não podia evitar. De fato, não podia. — Tudo bem. Por que acreditar na palavra de alguém que faz o que eu fiz, não é mesmo?

Joana se remexeu na cama e a ajudei a sentar-se com uma careta de dor.

— Natty…

Natália a interrompeu com um gesto e voltou a sorrir.

— Esquece, Jô. Eu entendo — se aproximou da cama e pôs o ursinho de pelúcia que trazia nas mãos sobre o colo de Joana, pegou suas mãos entre as suas e deu-lhe um beijo no rosto, mas tão próximo aos lábios que eu quase voei no pescoço dela outra vez.

— Obrigada — Joana agradeceu sem graça.

— Quando saí do seu apartamento naquele dia, o encontrei à minha espera no portão da minha casa — sentou na beirada da cama e vi as sobrancelhas de Edu unirem-se quando franziu a testa assimilando a informação.

Joana afagou a mão dela que repousava sobre a cama e lhe enviei um olhar atravessado que ela ignorou.

— O que aconteceu? — questionou.

— Claro que ele havia me visto entrar no seu apartamento — Natália continuou.

Notei os lábios de Eduardo se comprimirem em um gesto de raiva.

— Me questionou sobre o que aconteceu e contei a verdade. Não aguentava mais seu assédio e deixei isso claro. Pedi que desistisse de separar vocês, pois realmente se amavam e nada que ele fizesse poderia separá-las — deixou os ombros caírem em uma postura derrotada.

Apesar de toda a raiva que sentia, desejei que ela pudesse encontrar a felicidade com alguém que realmente a amasse e que voltasse a ser a mulher pela qual Joana havia se apaixonado. Claro, que esperava que isso acontecesse bem longe de nós.

— O que aconteceu? — Joana insistiu.

— Ele ficou uma fera, claro. Nós discutimos e ele tentou me agredir, mas se conteve quando meu pai apareceu de repente. Enfim, saiu de lá jurando que ia separar vocês de qualquer maneira, nem que para isso tivesse que ir para a cadeia.

Ela não havia afastado a mão da de Joana e a olhava fixamente enquanto falava, enquanto eu sentia como se tivesse uma enorme pedra afundando em meu estômago.

— Achei que ele estava apenas frustrado porque seus planos não deram certo e que nada faria, mas hoje cedo encontrei uma amiga que trabalha aqui no hospital e ela me contou o que aconteceu.

Deixou um suspiro escapar e se afastou da cama com olhar fixo em mim.

— Teu pai é um homem perigoso. Confesso que me iludi com a ideia de que fosse apenas alguém em desespero, mas agora, acho que ele está bem longe disso. Mas, quem sou eu para julgar o que se passa na cabeça de alguém?

Caminhou em direção a porta, onde Edu estivera nos observando em silêncio. Ele deu um passo para o lado, liberando a passagem, mas ela não seguiu adiante. Em vez disso, se voltou para nós. Seu olhar estava marejado, mas ela não se permitiu chorar.

— Estou indo embora hoje, vou voltar para Natal. Não tenho mais motivos para permanecer aqui por mais tempo e nem para me ausentar mais do trabalho — sorriu tristemente. — Como te disse, Jô, espero encontrar alguém que me olhe assim como você olha para a sua morena. Mas, antes de ir, precisava saber como você estava.

Ela torceu as mãos nervosamente antes de continuar.

— Estou feliz em ver que nada de mais grave aconteceu. É uma pena que você tenha sido a melhor coisa que já me aconteceu na vida, mas por medo do que as pessoas poderiam pensar e do preconceito te deixei escapar.

— Natty… — Joana a chamou, mas ela voltou a calá-la com um gesto.

— Sempre terei lembranças doces de nós e torcerei por sua felicidade.

Vi tristeza no olhar de Joana, mas isso não me causou a tempestade de ciúmes habitual. Sabia que ela estava triste por Natália, por ela ter se perdido de si mesma.

— É um adeus? — ela questionou.

Natália sorriu balançado os ombros, enquanto uma das lágrimas em seu olhar deslizava por sua face alva.

— Por enquanto — respondeu com jeito maroto e saiu sem olhar para trás.

Ao vê-la partir, tive a certeza de que ainda teríamos notícias suas. No entanto, sentia que os nossos problemas com o “furacão” Natália haviam chegado ao fim.

Meu olhar encontrou o de Edu e ele estava transformado. Sua fisionomia não podia ser mais passiva, mas vi em seus olhos um tom gélido que me causou um leve calafrio. Sua boca se contorceu rapidamente em uma espécie de tique nervoso antes que ele se voltasse para Joana.

— Ela estava falando a verdade, não estava? — sua voz era um sussurro rouco e carregado de raiva.

Joana baixou os olhos para o lençol imaculadamente branco ao qual se agarrava e se manteve em silêncio.

— Olhe para mim! — ele exigiu e ela obedeceu. — Você sabia que tinha sido ele e ficou calada. Por quê? Aquele safado quase te matou e você ainda o protege! — sua fúria era quase palpável assim como aquela que me dominava no momento.

Ainda tentava assimilar tudo o que Natália havia dito, quando Joana me olhou, ainda em silêncio, e compreendi o porquê de ter se mantido calada quando perguntamos se havia visto o motorista do carro. Ela estava tentando me proteger. Não queria que eu soubesse o monstro que meu pai era.

Não contive as lágrimas que vieram aos meus olhos. Parte do meu mundo e das minhas crenças estavam desmoronando. Embora não quisesse admitir, tinha esperanças de que as coisas um dia se ajeitassem. Beijei-lhe carinhosamente, enquanto sussurrava:

— Obrigado.

Afastei-me, enxuguei as lágrimas com as costas das mãos e saí do quarto ignorando seu pedido para que retornasse. Estava mais do que na hora de ter uma conversa séria com meu pai. Não iria permitir que ele ou minha mãe voltassem a interferir em minha vida.

Edu vinha em meu encalço e dividimos a calçada, caminhando lado a lado em um silêncio ao mesmo tempo tranquilizador e cúmplice. Dividíamos, também, a raiva e a vontade de pôr fim a toda aquela loucura.

Olhei com tristeza para a casa onde cresci e de onde havia saído em fuga meses antes. Retirei as chaves da bolsa e abri o portão que rangeu dolorosamente aos meus ouvidos. No fundo, sempre achei que um dia teria a compreensão e apoio da minha família, por isso me permiti guardar aquelas chaves. Infelizmente, não estava ali para uma reconciliação.

Minha mãe se assustou ao me ver entrar na sala acompanhada de Edu que vinha logo atrás de mim.

— Marcela! — sorriu como uma criança e ficou de pé.

Ela parecia abatida e sem a vitalidade que lhe era característica, mas ainda matinha o olhar altivo e esnobe. Observei a cabeça loura do mauricinho, que estava sentado no sofá à sua frente, se voltar em minha direção com um risinho satisfeito, seus olhos me devoraram no mesmo instante e meu estômago se contraiu enojado. Esperava nunca mais voltar a pôr os olhos nele.

— Olá, mãe — soei fria até para meus próprios ouvidos.

Aldo se colocou de pé e a acompanhou até o meu encontro, mas se manteve a uma distância segura, tentou falar algo, mas o olhar de poucos amigos que lhe dediquei o fez se calar.

— Finalmente criou juízo nessa cabecinha louca e voltou para casa — comentou minha mãe, me envolvendo em um abraço apertado e senti seu perfume adocicado invadir minhas narinas, trazendo lembranças de uma época que jamais voltaria. Uma época em que ela havia sido minha mãe de verdade, uma época em que o status social ou a carreira política do meu pai não lhe importavam tanto.

Ignorei os comentários, ignorei o seu abraço ao qual não correspondi e a afastei com o máximo de delicadeza e sangue frio que a minha força de vontade permitia.

— Não voltei, mãe. Apenas preciso conversar com meu pai. Onde ele está?

Minha atitude a confundiu e me olhou fixamente por alguns segundos. Quase enxerguei a dezena de perguntas que, obviamente, estava se fazendo.

— Onde ele está? — repeti.

— No escritório — respondeu por fim. — Mas, acho melhor você não ir até lá.

— Por quê?

— Algo o está preocupando.

— E o que seria? — fingi ignorar o motivo.

Ela deu de ombros.

— Política, imagino. Ou você, não sei. Desde que você saiu de casa, ele não tem sido ele mesmo.

— Ele não tem sido ele mesmo há muito tempo ou, talvez, seja esta a sua personalidade real — observei rancorosa.

Ela pareceu chocada, mas concordou com um inclinar de cabeça e me surpreendi com seu gesto.

— Ele está muito nervoso desde que chegou em casa ontem à noite. Você sabe como ele é. Quando algo o preocupa, se tranca naquele escritório até encontrar a solução.

— É, sei bem como é. Só que desta vez, a solução veio até ele.

Me encaminhei para o escritório antes que ela voltasse a falar e Edu seguiu em meu encalço. Aguardei alguns segundos diante da porta fechada, minha mão envolvendo o metal frio da maçaneta.

Impaciente, Edu adiantou-se pondo a mão sobre a minha, mas antes que abrisse a porta segurei seu braço firmemente.

— Fique aqui — pedi.

Seu olhar encontrou o meu e enxerguei a raiva que estava tentando conter.

— Sei o que quer fazer quando entrar nessa sala — revelei.

— Não, você não sabe.

— Ah, eu sei, sim. Acredite, desejei fazer o mesmo, mas querendo ou não ele ainda é meu pai e não vai ser assim que iremos resolver as coisas.

— Saia da frente, Marcela! — ordenou, mas mantive minha posição.

— Sei o que está sentindo.

— Não sabe, não.

Tentei sorrir para ele, mas tudo que consegui foi uma careta.

— Cara, amo a tua irmã e aprendi a te amar como a um irmão também. E é exatamente por isso que não posso deixar que você entre aí.

— Esse desgraçado tentou matar a minha irmã!

— Esse desgraçado ainda é meu pai! É um babaca, mas ainda é meu pai e Joana é minha namorada! Não quero e nem posso permitir que você faça uma besteira da qual irá se arrepender o resto de sua vida e acabe se privando de sua liberdade e da presença da sua família e namorado.

Ele baixou os olhos, os músculos de seu maxilar contraindo-se. Ainda resistia a ideia de se afastar. O empurrei devagar, ele deu um passo atrás e o abracei com carinho. Minha mãe nos observava no início do corredor, ignorei a pergunta em seu olhar e me afastei dele.

— Por favor, me deixe resolver isso sozinha. Fique aqui fora, se precisar de ajuda, — fiz uma pausa desejando não precisar — você entra e age como um príncipe encantado e salva a donzela em perigo! — brinquei e ele me brindou com um sorriso fraco.

Meu pai estava sentado atrás de sua mesa com uma expressão transtornada e olhou-me surpreso quando fechei a porta com um estrondo chamando sua atenção.

Ele esboçou um sorriso e me vi nele, éramos muito parecidos. Tínhamos os mesmos olhos, mesmo sorriso e tantas outras características físicas em comum, mas nunca tivemos as mesmas opiniões, nunca teríamos.

Caminhei decidida em sua direção, dei a volta na mesa e parei à sua frente. Ele fez um pequeno movimento tentando se levantar, o empurrei de volta para a cadeira e coloquei o peso de toda a raiva e ressentimento que estava sentindo no tapa que desferi em seu rosto moreno e bonito.

Olhou-me boquiaberto, enquanto passava a mão na marca vermelha que meus dedos deixaram em sua face. Esperei que revidasse, mas se manteve imóvel, surpreso demais para esboçar qualquer outra reação.

— Como você pôde? — quase gritei. — Como pôde tentar tirar a vida da única pessoa a quem já amei?

Tentou endurecer o olhar, assumir a postura de prefeito e homem de negócios, mas a culpa estava estampada em seu rosto assim como a marca de meus dedos.

— Não sei…

— Não tente fingir, não sou uma criança ingênua e não irei acreditar em suas mentiras.

— Marcela, filha…

— Não me chame assim!

Meu tom exaltado chamou a atenção de minha mãe que adentrou na sala seguida por Edu.

— O que está acontecendo? — ela questionou.

Edu avançou um passo, o ódio vibrava em seus olhos e nos punhos cerrados.

— Fique onde está, Edu! — ordenei e ele obedeceu, tão surpreso quanto eu pela autoridade em minha voz.

Me voltei para meu pai, ouvindo sua voz grave arranhando meus ouvidos como unhas em um quadro negro.

— Tentei fazer você enxergar a loucura que estava fazendo, tentei usar de outros meios para você perceber isso, mas nada deu certo. Então, eu… Não sei o que aconteceu! A raiva e frustração me dominaram quando a vi atravessando aquela rua sozinha. Não sei o que houve, pisei forte no acelerador e… Eu não queria, juro que não queria. Estou arrependido.

— Arrependido?! Você quase a matou e agora se diz arrependido?

Ele baixou os olhos, vi uma lágrima escorrer por sua face e quase senti pena dele nesse momento. Quase. Mas, havia ido até ali para falar algumas verdades.

— Sempre desejei ter um pai e não um projeto de um. Sempre quis que vocês prestassem atenção em mim, que se importassem com o que sentia e queria, não em me dar presentes caros como uma migalha de seu amor que nunca existiu!

— Marcela! — minha mãe gritou. — O que pensa que está dizendo?

— A verdade! Estou dizendo tudo que está guardado dentro de mim há anos.

— Somos seus pais e você não tem o direito de falar assim conosco.

— Vocês só se deram conta de que são meus pais quando a sua bonequinha aqui — apontei para mim mesma — beijou uma mulher na frente de metade da cidade envergonhando-os. Até aquele momento, eu era uma espécie de “adorno” que vocês adoravam exibir para os seus amigos.

Sufoquei o soluço em minha garganta, mas não consegui conter uma lágrima.

— Não, adorno, não! Sempre fui moeda de troca, já que vocês estavam querendo me empurrar para esse babaca! — apontei para Aldo que observava, boquiaberto, nossa discussão. O rosto dele adquiriu um tom violeta e se retirou com passos rápidos e sem olhar para trás. — Por favor, “mamãe” e “papai”, — havia desprezo em minha voz e era algo que não conseguia controlar, pois jorrava de mim como uma cachoeira — parem de fingir uma preocupação que não sentem. Só estão preocupados com o meu relacionamento com Joana por causa do que os seus “amigos” da sociedade irão dizer. Temem ouvir os comentários e piadinhas a respeito da sua filha sapatão.

Tive de usar todo o autocontrole que ainda me restava para parar as lágrimas que vertiam de meus olhos.

— Prestem bem atenção ao que vou dizer. Eu amo a Joana, Joana me ama! E pretendo viver esse amor até o fim. Pode ser que não dure, mas irei viver isso. Vou brigar com todas as minhas forças para estar ao lado dela, não importa o que aconteça e não serão vocês com seu preconceito idiota e artimanhas que irão nos separar!

— Chega! — minha mãe gritou. — Você não pode vir aqui e…

Sorri com desprezo.

— Sério? Agora você quer ter voz nessa discussão, mamãe?

Ela engoliu em seco e passei a ignorar sua presença completamente e continuei o que dizia.

— Se você voltar a se aproximar dela, te ponho na cadeia. Não me interessa que eu tenha o mesmo sangue que o teu e o seu nome esteja no meu registro de nascimento. Isso nada diz para mim. Posso não ter provas, mas tenho testemunhas dispostas a contar sobre suas ameaças e agressões. Além disso, sei duas ou três coisinhas sobre sua “excelente” administração na prefeitura. Não fique surpreso, às vezes eu prestava atenção às suas conversas durante aqueles jantares enfadonhos com seus aliados.

— Você não ousaria…

Curvei-me o suficiente para que nossos rostos ficassem próximos.

— Fique longe dela, fique longe de mim! A partir deste momento esqueçam que tiveram uma filha, pois eu esquecerei que vocês me geraram. Se nos cruzarmos na rua, finjam que não me conhecem, pois farei o mesmo. De agora em diante, Joana, Edu e todos aqueles que nos ofereceram sua amizade sincera e apoio, são a minha família. É deles o meu sangue, o meu respeito, carinho e amor e de ninguém mais.

Caminhei a passos largos e duros em direção a porta. Minha decisão estava tomada. Se eles não queriam aceitar que a minha vida estava ao lado de Joana, então não fariam mais parte dela.

Em silêncio, Edu me acompanhou até a rua. No caminho de volta ao hospital, atirei as chaves daquela casa no lixo e engoli o choro que ameaçava cair a todo instante. Estava decidida a não derramar mais nenhuma lágrima por eles e não voltaria a estar sob àquele teto nunca mais.



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