CAPÍTULO 4

MARCELA

Quando vi Joana, meu corpo inteiro tremeu de vergonha pela noite passada. Tentei sustentar o orgulho em meu olhar, contudo, senti a necessidade de lhe agradecer por ter me ajudado.

Dei-lhe um beijo no rosto agradecendo e me afastei o mais rápido que pude.

O beijo? Confesso que até agora não sei a razão de o dar. E depois que dei, me arrependi de um jeito inexplicável.

Com certeza, alguém mais além de Aninha devia ter visto. O que iriam pensar de mim? Provavelmente, alguma língua venenosa iria inventar um monte de fofocas sobre nós. Mas, eu estava devendo, não estava? Pronto! Agradeci. Agora, era ela lá e eu cá.

Aninha veio falar comigo no intervalo entre as aulas. Pediu desculpas por ter me deixado sozinha na festa. Fiz um pouco de charme, mas no fim a desculpei. Impossível sentir raiva dela por muito tempo.

— Por que você deu aquele beijo na Joana? — foi a primeira coisa que perguntou após fazermos as pazes.

— Não sei — fui sincera, ainda me perguntava a respeito também.

— Como assim, não sabe?

— Não sabendo, ora! Mas, também, precisava agradecer a ela por ter me trazido de volta para casa. Ela não te falou?

— Sim, mas não entrou em detalhes. Tudo que disse foi que você não estava em condições de dirigir, por isso ela te trouxe.

Definitivamente, aquela garota estava me surpreendendo. Fosse outra, encheria a boca para contar que a filha do prefeito estava caindo de bêbada na festa.

— Ah, ok — respondi tentando ocultar a surpresa em minha voz.

Ela fez uma carinha de cão sem dono. Sempre que fazia essa cara, era sinal de que queria saber de algo.

— Então, vai me contar o que houve?

Um pouco a contragosto acabei relatando tudo o que tinha acontecido desde que nos separamos na festa e ela começou a rir.

— Você viu mesmo a Joana e a Priscila numa situação, digamos, constrangedora?

— Constrangedora?! Elas não me pareceram nada constrangidas. Sim, infelizmente, eu as vi.

— Infelizmente? Por quê?

— Ora, Aninha, é nojento! — me apressei a dizer.

— Por quê? — insistiu.

— Porque… porque é e ponto!

— Ah, para com isso, Celinha! Vai me dizer que você não ficou nenhum pouquinho excitada?

Tenho quase certeza de que adquiri a cor de uma beterraba de tanta vergonha que senti pelo modo que falou.

— Mas, é claro que não! — a conversa já estava indo longe demais. Não iria conseguir ocultar alguns fatos dela por muito tempo. Nunca fui muito boa em esconder as coisas da Ana.

Ela fez aquela cara que eu odiava, aquela que dizia “ Sei, juro que acredito!” que, na verdade, quer dizer exatamente o contrário.

“Ninguém merece”, pensei. Aninha conseguia me ler como se eu fosse um livro.

— Sou louca para ver! — revelou com um sorriso malicioso.

— Para ver o quê? — me fiz de desentendida e agarrei, com um pouco mais de força, a madeira do banco em que estávamos sentadas.

— Duas mulheres em momentos íntimos — esclareceu.

— E para que você iria querer ver isso, Ana? — perguntei um pouco chocada, enquanto afastava da minha mente a cena que presenciei na noite anterior e que, volta e meia, surgia em meus pensamentos.

— Curiosidade, ora. Você nunca teve?

— Não. Nunca tive e, sem querer, acabei vendo! Vamos mudar de assunto que esse já deu o que tinha que dar — atalhei para evitar que ela continuasse com aquela história.

— Tudo bem, tudo bem — ergueu as mãos em sinal de desistência.

Passamos um bom tempo em silêncio devorando o pacotinho de batatas fritas que ela fez surgir de dentro de sua mochila. Ana sempre andava preparada para todas as ocasiões. Sempre tinha uma quantidade absurda das mais diferentes coisas naquela mochila que, diga-se de passagem, parecia pesar uma tonelada.

— Então, vai à festa de aniversário de casamento dos meus pais, né?

— Sim, claro! Acho que seus pais convidaram metade da cidade.

— É, verdade. Minha mãe adora chamar a atenção e não iria deixar essa data passar em branco.

Final de semana chegou e não tive mais oportunidade de ver a Aninha, nem Joana voltou a cruzar meu caminho. Me senti muito satisfeita por isso, ainda não tinha conseguido apagar da memória o momento íntimo entre ela e aquela loira sem graça que presenciei.

Não recebi castigo pela nova fuga para ir a uma festa, nem tinha mais idade para isso. Porém, ao perceber a cara de ressaca que apresentei na sexta-feira de manhã, meu pai me tomou as chaves do carro sob ameaça de ficar sem ele definitivamente.

— Não entendo o porquê de você fazer essas coisas, Marcela — disse minha mãe.

Olhei para ela do alto da escada em que me encontrava pendurando uma coisa estranha de madeira que, juro, de tanto tentar adivinhar o que era fiquei com dor de cabeça. Por fim, acabei desistindo.

Ela apoiava o pé na escada, enquanto uma das mãos repousava sobre um degrau do meio. Seus olhos negros, perfeitamente delineados, pousaram em mim e reconheci um brilho entristecido neles por um breve instante.

— Faço o quê, mãe? — me fiz de desentendida.

Ela mordiscou o lábio e fez uma pequena careta.

— Nada, Marcela, nada! Você nunca faz nada!

Desci da escada apressada e me coloquei diante dela.

— Talvez, se vocês não tentassem controlar a minha vida da forma que fazem, nossa convivência familiar fosse mais agradável.

— Não tentamos controlar sua vida, apenas desejamos e agimos de forma protetora.

Deixei uma risada cheia de escárnio escapar.

— Protetora? Sério? — perguntei cruzando os braços. — Vamos deixar a hipocrisia de lado, mãe! Ambas sabemos que essa preocupação toda é só por causa da carreira política do meu pai. Vocês gostam de me exibir para os parceiros políticos dele, aliás, gostam de me usar também.

Ela me dirigiu um olhar horrorizado, mas não travei minha língua e continuei:

— Pensam que sou idiota? Estão tentando me empurrar para aquele mauricinho há semanas…

— Aldo é um bom rapaz e manifestou interesse por você, então seu pai não viu mal algum em lhe permitir que nos visitasse regularmente. Ele até já falou que pretende se casar com você.

Acreditem, se não fosse fisicamente impossível, meu queixo teria chegado ao chão com essa informação.

— Não estou ouvindo isso! Mal conheço o cara!

— Não conhece porque não quer. É tão mal-educada que me pergunto se é realmente minha filha. Fique sabendo que seu pai faz muito gosto que esse namoro aconteça.

Revirei os olhos, enfurecida.

— Não acredito nisso, vocês são muito sem noção! Cruzes! — bati o pé e me encaminhei para fora do clube em que se realizaria a festa. Era o fim da tarde de domingo e fui recebida por uma brisa leve ao cruzar a porta. Estava tudo pronto para a noite e decidi ir para casa me arrumar.

Imaginem a minha surpresa e descontentamento quando, na hora da festa, meus pais me empurraram aquele mauricinho dizendo que ele seria meu acompanhante durante toda a noite e que era para trata-lo bem.

— Estão de brincadeira! — falei para minha mãe.

— Não, não estamos. Seu pai precisa muito do apoio do pai do Aldo e não custa nada dar um pouco de atenção ao rapaz.

— Você esqueceu o que conversamos hoje? Não estou afim desse babaca! Por mim, ele pode explodir em uma nuvem de pó multicolorida.

— Marcela! — me repreendeu. — Pelo menos, seja educada com ele esta noite. Depois conversamos com seu pai sobre o seu desejo de não se envolver com ele.

Com um suspiro resignado, acabei aceitando sua imposição. Meu humor piorou consideravelmente e o chato do mauricinho fez sua lição de casa, não largou do meu pé.

Vi quando Ana e Joana chegaram com suas famílias e cumprimentaram meus pais. A Aninha bem que tentou me livrar das garras daquele chato dizendo que precisava muito conversar comigo, mas ele não deixou. Acreditam que ele teve a cara-de-pau de dizer que eu era dele aquela noite e que, em breve, seriamos namorados?

O fuzilei com o olhar, desejosa de enfiá-lo em um foguete com passagem só de ida para Marte.

Tentei falar com minha mãe novamente, mas ela me dispensou com um gesto e foi receber outro convidado. Tentei meu pai, mas ele estava em um debate “animado” sobre a política regional e sequer me olhou.

Indignada, fui ao banheiro, pois este era o único lugar onde aquela mala sem alça não podia me seguir. Passei um longo tempo me olhando no espelho, furiosa com meus pais, furiosa com o Zé Mané, furiosa comigo mesma.

— Será que você pode me ajudar?

Tomei um susto ao perceber que Joana estava bem atrás de mim. Imediatamente, passeei o olhar pelas portas dos sanitários e percebi que estavam todos vazios. Como não respondi, ela continuou:

— A alça do meu vestido saiu do fecho e não alcanço para recoloca-la no lugar.

Ela usava um vestidinho preto com alças que se cruzavam nas costas e eram presas por fechos dourados. Uma delas estava dependurada, deixando um de seus seios um pouco à mostra.

Outra vez me demorei em silêncio e ela fez uma careta, impaciente. Tudo no que pensava era no que pensariam se entrassem naquele banheiro e nos vissem ali, eu recostada na pia e ela a poucos centímetros de mim com parte dos seios à mostra.

Ela se zangou com meu silêncio.

— Escuta, garota, você pode ou não me ajudar? Droga, você não vai pegar uma doença contagiosa se me tocar!

Acordei do meu transe e, em silêncio, fiz o que me pediu torcendo para ninguém aparecer e nos ver. Nem esperei para ouvir seu agradecimento e parti assim que o problema foi resolvido.

Encontrei meus pais juntos perto do bar e voltei a me queixar sobre Aldo.

— Filha, ele é um excelente rapaz. Ideal para você. Perfeito para uma moça da sua classe — afirmou meu pai.

Classe? Que classe? Só se fosse a classe das filhas contrariadas e descontentes com os pais que tentavam controlar suas vidas.

— Faço muito gosto desse namoro.

— Não existe namoro algum! — pontuei.

— Mas vai existir, vocês são perfeitos juntos. São jovens, bonitos, têm a mesma classe. Além disso, ele também quer seguir carreira na política…

Fiquei louca de raiva com aquela situação. Comecei a beber e, novamente, bebi muito. Tudo em que pensava era na raiva e frustração que estava sentindo. Começou a surgir em minha mente alcoolizada o desejo de vingança.

O idiota do Aldo me encontrou após meia hora tentando me esconder dele.

— Por que você não aceita logo que o nosso destino é ficar junto?

 Dá para acreditar que ainda existam pessoas assim? Bocó!

 — Vamos lá! Seus pais querem, meus pais querem, eu quero! Fiquei louco por você desde que te vi — sorriu malicioso.

Enlaçou minha cintura e me puxou para mais perto. Não nego que era muito bonito, mas existiam milhões de outros mais bonitos. Além disso, jamais me permitiria ficar com alguém por imposição dos meus pais. Ele se curvou com a intenção de me beijar, percebi em tempo e virei o rosto, enojada com a sua falta de semancol.

Putz! Pirei de vez, atirei todo o conteúdo do meu copo na cara dele. As pessoas em volta começaram a rir, enquanto ele gritava.

— Está maluca?! Por que fez isso?

— Porque você é um idiota! Agora, larga do meu pé, chulé! Vai procurar a sua turma! — e me enfiei no meio das pessoas, deixando-o para trás com a boca aberta e um olhar colérico.

O ódio daquele idiota e de meus pais se apossou de mim. Queria me vingar. Queria estragar a noite deles como tinham feito com a minha. Foi então que vi Aninha e Joana conversando em um grupinho.

Juro, que nunca em minha vida pensei em fazer algo do tipo que estava prestes a fazer, mas a raiva que sentia, impulsionada pelo álcool não permitia que desse ouvidos a razão.

Fui até elas.

— Olá, meninas!

— Olá! — responderam em uníssono.

E, olhando para a Joana, ataquei:

— Joana, desculpe o incômodo, mas será que você poderia me acompanhar um instante?

Ela me olhou surpresa. Seus grandes olhos castanhos me avaliando da mesma forma que fizeram no banheiro.

— Claro — respondeu balançando os ombros.

Aninha me olhava como se desejasse abrir meu cérebro para descobrir o que estava tramando. Deixei-a de lado, peguei a mão de Joana e saí guiando-a entre as pessoas no meio do salão.

Meus pais estavam em um grupinho formado pelos pais do mauricinho e o próprio mauricinho que, pelo modo como gesticulava, deveria estar reclamando sobre minhas ações. Quando estávamos nos aproximando deles, Joana perguntou o que eu queria. Sem parar para olhá-la respondi.

 — Preciso que me faça um favor.

— Qual?

— Preciso que me beije.

Ela parou abruptamente do meu lado.

— O quê?!

Mas, já era tarde demais; havíamos alcançado meus pais. Sem olhá-la ou soltar sua mão, disse para eles:

— Mãe, pai, — eles desviaram a atenção para nós — quero lhes apresentar a minha namorada.

Joana deu um passo atrás, completamente perplexa. Sem esperar qualquer reação deles, a puxei para um beijo.

Confesso que o objetivo daquele beijo não era outro senão provocar a ira de meus pais, me vingando deles. Nunca pensei ou desejei beijar uma mulher na minha vida, tinha nojo e ficava horrorizada só de tentar imaginar essa possibilidade. Contudo, situações extremas, pediam medidas desesperadas e eu estava muito desesperada.

Minha intensão era que aquele beijo não passasse de um encostar de lábios mais demorado. Talvez tenha sido a bebida, mas abri meus lábios para logo em seguida sentir minha boca ser invadida pela língua quente e macia de Joana. Nunca, em minha curta vida, de todos os garotos que já beijei, provei um beijo como aquele. Involuntariamente, envolvi o pescoço dela com meus braços deixando que ela explorasse minha boca de forma intensa e prazerosa.

Minha mãe nos separou bruscamente, o olhar enlouquecido e as palavras ferinas nos lábios vermelhos.

Me senti como se estivesse flutuando e de repente fosse atirada ao chão. Olhei para minha mãe que gritava, enlouquecida, insultando a Joana e depois para ela que me observava de uma forma estranha e intensa antes de nos dar as costas e sair.

Foi um escândalo, claro.

Todos nos observavam. Minha mãe estava louca de raiva, não parava de xingar Joana. Foi aí que os pais dela se aproximaram e começaram a defende-la. Só então, me dei conta do que tinha feito.

No meio da confusão que se instalou, Aninha apareceu e me arrastou para fora do lugar.

— Sua, maluca, por que fez isso?! — questionou quando chegamos à rua.

Em meio às muitas sensações que percorriam meu corpo após ter beijado Joana e todos os sentimentos controversos que senti àquela noite, me atirei em seus braços e comecei a chorar.

JOANA

Não estava nem um pouco a fim de ir à festa dos pais da Marcela. Meu pai acabou por me convencer, mas eu tinha receio. Não. Tinha medo mesmo.

Tinha medo de ver Marcela e descobrir que toda aquela gentileza da sexta-feira havia evaporado. Mas, o pior é que depois daquele beijinho na bochecha não conseguia mais tirar ela do pensamento.

Parecia que tinha doze anos de novo.

Naquela época, já estava me descobrindo lésbica. Bem, nem sabia o que era isso direito, mas percebia que, enquanto minhas amigas sonhavam com os garotos mais bonitos e populares da escola, eu sonhava com a menina mais bonita e popular. Na minha mente, ainda infantil, pensava que a vontade de estar ao lado dela era apenas o desejo de sermos amigas. Esse pensamento mudou quando beijei uma menina pela primeira vez e percebi que o que sentia por Marcela era amor, mas, infelizmente, sempre soube que ela nunca gostaria de mim ou sequer me notaria.

Nunca imaginei, nos melhores sonhos que sonhei, que ela poderia me beijar. Não era idiota a ponto de pensar que ela tinha feito isso na frente de metade da cidade porque gostava de mim.

Não!

Aninha já havia me falado que estava tendo muitos problemas com os pais e que eles estavam tentando empurrar um riquinho metido a besta para ela. Achei que fosse exagero da Ana, mas vi o manézinho perseguindo Marcela a festa inteira e o modo como a felicidade e aquele sorriso lindo que eram característicos dela sumiram de sua face.

Quando a encontrei no banheiro e pedi sua ajuda, tive muita vontade de puxar assunto, tentar conquistar um pouco da sua amizade, mas logo desisti ao ver o modo como me olhou e o que temia se concretizou.

Fiquei surpresa quando me pediu que a acompanhasse e quase caí de cara no chão quando disse que queria que a beijasse. Sabia que ela estava bêbada, mas não imaginava que estivesse a esse ponto. Então, compreendi tudo quando me apresentou para os pais como namorada dela.

Meu coração parecia que ia se partir em milhares de pedacinhos. Ela estava me usando para atingir os pais e conseguiu.

Me beijou.

Quando senti os lábios dela sobre os meus, estava para lá de revoltada por estar sendo usada, mas o pensamento seguinte foi “Se é assim que ela quer, então vou me aproveitar um pouquinho, afinal, posso nunca mais ter outra chance de tocar esses lábios com os meus”. E foi o que fiz. A beijei e muito. E que lábios! Que boca! Que beijo! Que sonho!

Não conseguia acreditar! E, o melhor de tudo, é que ela me correspondeu. Mas a mãe dela tinha que atrapalhar. Ninguém merecia ser arrancado do paraíso dessa maneira, né?

Bom, tive o meu momento e fui embora.

Pouco me importava o que as pessoas iriam dizer sobre isso, afinal, todos já sabiam da minha condição, mas Marcela não sabia onde tinha se metido com seu joguinho de vingança. Tive raiva de mim por estar sentindo pena dela, afinal a garota me usou. Estava certo que eu gostei disso, mas, o pior, é que estava ainda mais apaixonada.

Andei pela cidade sem rumo durante o resto da noite. Acabei indo me esconder na loja do meu pai, como fazia quando criança, e sentei embaixo da mesa dele onde chorei por muito tempo. Não queria que fosse assim. Sempre gostei de Marcela e queria que, se um dia ela viesse a mim, que fosse por amor e não por vingança. Nem aquele preconceito tolo dela a impediu de me usar.

Cheguei em casa às cinco horas da manhã. Meu pai, mãe e irmãos estavam reunidos na sala com cara de poucos amigos. Era óbvio que aquela reunião de família improvisada era por minha causa, eles haviam feito algo semelhante quando me assumi e não foi nada agradável. Fechei a cara e sentei no sofá já sabendo o que estava por vir.

Meu irmão mais velho estava sentado ao lado da esposa, à minha frente. Quase podia enxergar sua boca espumando de raiva quando falou.

— O que pensa que está fazendo? Já não basta nos envergonhar com essa sua…

— Minha o quê? “Doença”? É isso que você pensa, não é? Será que você não tem outro discurso?

Ele ficou ainda mais possesso pela forma que falei.

— Ora, sua… — tentou avançar em minha direção, mas parou quando viu o olhar de reprovação do meu pai. — Você não podia ser mais discreta? Se tiver que ser assim, pelo menos, seja discreta! Fica se agarrando com essas vadias da sua laia por aí e, para completar, seduz a filha do prefeito e a agarra diante de metade da cidade!

Me coloquei de pé a fim de impor algum respeito, mas ficava bem difícil já que os meus um metro e setenta de altura eram insignificantes diante dos quase dois metros dele.

— Em primeiro lugar, nunca me agarrei a vadia alguma. Em segundo, o que faço ou deixo de fazer não é da sua conta! E a filha do prefeito já é bem grandinha para saber o que faz!

Minha mãe estava encolhida no canto da sala, ela tentava ocultar os olhos marejados deixando a cabeça baixa. Meu pai olhava para mim emudecido. Eles não tinham nada a dizer, nunca tinham.

Olhei para a porta e vi Eduardo, meu outro irmão, que havia acabado de entrar com seus olhos sempre meigos, agora, cheios de pena. Sabia muito bem o que ele estava pensando e tomei minha decisão.

— Edu…

Ele me sorriu em afirmação.

Saí da sala ouvindo meu irmão, Ricardo, gritando toda aquela baboseira preconceituosa que saía de sua boca a cada dez segundos sempre que nos víamos. Fui para o meu quarto, peguei uma mochila e comecei a jogar algumas roupas e objetos pessoais dentro. O resto voltaria para buscar em outra hora.

Quando retornei para a sala, Edu fez questão de abrir a porta para mim com um sorriso leve nos lábios.

— Aonde vai? — meu pai questionou, deixando que ouvisse sua voz pela primeira vez desde que cheguei.

Com um suspiro irritado e o coração pesado, me voltei para mirá-lo.

— Estou saindo de casa — informei, tentando dar o máximo de firmeza a voz.

Minha mãe empalideceu e seu choro se tornou audível.

— Como assim saindo de casa? Para onde pretende ir?

Edu me empurrou para fora sem qualquer cerimônia e antes que a porta se fechasse atrás dele o ouvi dizer:

— Ela vai morar comigo.

Já havia algum tempo meu irmão vinha me pedindo para sair de casa e ir morar com ele, pois minha situação com meus irmãos e o resto da família não estava nada boa e depois do que aconteceu na festa do prefeito, era evidente que iria piorar.

Ele pegou minha mochila e jogou no banco traseiro do carro sem qualquer cuidado.

— Já estava na hora — comentou.

— É… — respondi simplesmente, tentando evitar que as lágrimas abandonassem meus olhos.

Ele me fez um carinho na bochecha e pôs o carro em movimento.

Eduardo tinha vinte e seis anos e era tão gay quanto eu, mas ao contrário de mim, ele preferiu ficar em silêncio. Na verdade, ele pouco se importava com o que a nossa família iria dizer se soubesse. Ainda não tinha aberto o jogo por causa do seu namorado João Pedro que possuía um cargo político importante na cidade e cuja família era tão ou mais preconceituosa quanto a minha.

Edu sempre cuidou de mim, era meu melhor amigo, meu irmão camarada. Sempre me protegeu de tudo e todos e apesar de ser muito mais velho, sempre mantivemos uma amizade crescente. Foi ele a primeira pessoa para qual contei minhas preferências e, naquela ocasião, esperei ouvir coisas absurdas, mas para minha surpresa, tudo que ouvi dele foi um “Eu também sou”.

Desde então, nos tornamos muito mais ligados e unidos.

Quando tinha dezesseis anos, ele se empregou em uma marcenaria. Apaixonou-se pela profissão e aos vinte e dois abriu a sua própria fábrica e loja de móveis. Era muito talentoso com a madeira, seus móveis já estavam começando a fazer certo sucesso no estado e a produção e vendas estavam aumentando. Acima da sua loja havia dois apartamentos, um dos quais, era ocupado por ele e o outro agora seria meu, pois assim, ambos manteríamos nossa privacidade.

Quando me pediu para sair de casa e ir morar com ele, também havia me oferecido um emprego. Sabia que estava tentando me ajudar, mas tentei ao máximo rejeitar esse convite. Tinha esperanças de que as coisas com meus pais e irmãos mudassem. Doce engano.

Entrei no meu novo lar ainda tentando segurar as lágrimas e engolir o nó em minha garganta. Era mobiliado exatamente como o apartamento do Edu, logo em frente. Um pouco masculino demais, mas logo daria meu jeitinho feminino.

Sentei no sofá com a cabeça entre as mãos, ele largou minha mochila no chão e veio me abraçar.

— Ei, maninha, não fica assim.

— O que vou fazer agora, Edu? Me diz!

Aquele sorriso de irmão sabichão e carinhoso surgiu em seus lábios.

— Você vai morar aqui e trabalhar comigo. E vai viver a sua vida sem ninguém pegando no seu pé, exceto, seu irmãozinho querido e amado aqui — piscou o olho como sempre fazia para mim quando queria me fazer sentir segura.

Era incrível, mas dava certo. Aquele sorriso e piscar de olho sempre me faziam bem e me acalmavam. Sorri. Enxuguei as lágrimas e deitei no sofá com minha cabeça em seu colo. Ele me fez cafuné.

— Então, maninha, me conta. Que história é essa de que você está pegando a filha do prefeito? Quer dizer que finalmente conseguiu conquistar a princesinha dos seus sonhos?

— Quem dera, Edu. Ela só me usou.

— Como assim usou?

Contei tudo a ele sobre a festa, os fatos dos últimos dias e os meus encontros e desencontros com a cretina, mas linda, da Marcela.

— Não posso acreditar que ela te usou assim — comentou indignado.

— Acredite, Edu, porque ela fez mesmo isso!

Ele suspirou, coçando o queixo.

— Eu estava na festa, Jô, e vi tudo. E pelo modo que vocês estavam se beijando, diria que ela não sente nojo algum de mulher. E mais, acho que ela gosta!

— Você está louco! A menina é super preconceituosa e só me beijou porque estava caindo de bêbada e louca para se vingar dos pais por terem empurrado aquele mauricinho ridículo para cima dela.

Ele deu uma gargalhada.

— Do que está rindo?

— De você.

— Ué, por quê?

— Porque você está completamente apaixonada por ela. E por mais que você negue, adorou ser beijada por ela. E, também, sei que isso mexeu muito contigo, pois você está com aquele olhar de cão sem dono que sempre surge em seu rosto quando algo te balança.

Nossa! Como esse homem me conhecia bem.

Ele tinha razão. Aquele beijo mexeu muito comigo, mas não iria admitir isso para ele. Desconversei, dizendo que precisava de um banho para ir para a escola.

— Você passou a noite toda fora, tem certeza de que quer mesmo ir para a aula?

— Preciso ocupar minha mente com alguma coisa.

Não tinha ânimo para tomar café e nem precisava, pois sabia que iria ficar de estômago revirado assim que entrasse na escola e foi exatamente isso que aconteceu. Mas, dessa vez, todos os olhares não estavam voltados para mim.

As aulas ainda não haviam começado e todos os alunos ainda estavam no pátio do colégio esperando a sirene de aviso do início do primeiro tempo. Ao contrário dos outros dias, os alunos não estavam espalhados e divididos entre grupos pelo pátio. Estavam amontoados e se acotovelando em volta de algo.

Claro que me deixei levar pela curiosidade e travei uma batalha com eles para conseguir atravessar e chegar ao centro daquele círculo.

Os garotos rindo, gritando, vibrando e assoviando. Cheguei ao centro daquela algazarra e vi Marcela em cima de uma garota do primeiro ano. As duas estavam desgrenhadas, assanhadas, sujas, as roupas rasgadas, os rostos e braços arranhados.

Marcela havia sentado em cima da barriga da garota e enchia a cara dela de socos. É, eu disse socos, mesmo. Punhos fechados. Ela estava fazendo da menina um saco de pancadas; a coitada tentava se defender, mas a fúria de metidinha era tal que não lhe permitia.

E os idiotas em volta apenas riam e apontavam divertidos para aquela cena bizarra, a qual, nunca imaginei ver Marcela protagonizar.

Quando finalmente me aproximei delas o silêncio se fez presente, mas Marcela continuava a esmurrar a garota. Tive de usar todas as minhas forças para conseguir arranca-la de cima da menina, cujo nariz e lábios sangravam muito. 



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.