Eva olhou para o relógio pela décima vez seguida, justo ela que tanto desprezava o tempo e a forma como ele aprisionava a humanidade, agora se via refém dele e não era capaz de controlar a ansiedade e o medo que lhe corroia o ser. Logo ela, que tanto se orgulhava de ser uma boa espiã por não se sentir presa a nada, nem ninguém. Ela que não temia nada, nem mesmo a própria morte. Logo ela, que vestia uma mascara de insensibilidade e frieza para melhor executar seu trabalho não conseguia, naquele momento, esconder toda sua angústia e medo. O medo que nunca sentira por ela, mas que agora se fazia presente em seu ser por Camila, tomando conta de cada membro e gota de sangue que corria em suas veias.
Desde que vira a prima ensangüentada no chão daquela cela, não conseguia mais parar de olhar o relógio, pois ele não corria mais a seu favor.
Temia a cada segundo que Morales, depois de ter passado algumas horas na prisão, voltasse a desobedecer suas ordens. E isso, era outra coisa que a estava incomodando, pois depois de algumas horas na cela o Tenente encontrou uma maneira de se comunicar com o Coronel Castilho e contar-lhe o que estava se passando. Este, por sua vez, enviou um telegrama a Eva ordenando-lhe que libertasse seu subordinado e informando-a de que estaria regressando a ilha no dia seguinte.
Como ela já esperava por isso, não encontrou dificuldades em adequar seu plano caso o Coronel já se encontrasse em Serra Negra no momento em que executariam a operação de resgate. No entanto, não podia deixar de temer que o tenente resolvesse interrogar sua prima. Se bem conhecia Camila, ela iria afrontá-lo, desencadearia sua ira e a possibilidade da tortura se tornaria uma certeza.
Estava cansada de esperar, mas sabia que era a ansiedade tomando conta de si, pois havia chegado quase meia hora adiantada ao encontro. Encontrava-se no interior de seu carro, sentia as mãos que sempre eram firmes, tremerem apertando com força o volante do automóvel. Acendeu um cigarro na tentativa de que a nicotina levasse um pouco mais de calma e autocontrole ao seu cérebro e este, por sua vez, dominasse o corpo.
Um jipe preto aproximava-se rapidamente deixando um rastro de poeira na estrada de terra. Apagou o cigarro e, mais uma vez, confrontou o relógio. Estavam cinco minutos adiantados. Pôs os óculos escuros que estavam sobre o painel do carro e enterrou ainda mais o boné na cabeça, descendo em seguida do veículo. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e encostou-se no carro a espera que os ocupantes do jipe se reunissem a ela.
Três homens e três mulheres saltaram do veículo armados até os dentes. O uniforme que vestiam deixava claro que faziam parte das FL e, segundo seu tio, eram os melhores soldados que possuía, além de quê, foram pessoalmente treinados por Camila e lhe eram totalmente fiéis.
Camila os escolhera para fazerem parte da equipe que acompanhava seu pai fazendo sua segurança. “Meu presente de natal”, Silas sorriu ao contar isso na noite anterior, enquanto falava sobre eles, referindo-se as palavras da filha ao apresentar aquele grupo de soldados como seus novos seguranças na noite de natal.
Eva retirou uma das mãos do bolso e levou-a até as costas apertando a pistola em sua cintura, sabia que de nada adiantaria usar aquela arma caso fosse necessário, afinal, encontrava-se em desvantagem numérica.
Armas em punho e apontadas para ela, os soldados a encaravam.
– Nomes! – ela exigiu, a voz fria e cortante como o aço ecoando como se o turbilhão de emoções em seu interior não existisse.
Nenhum deles respondeu e ela tornou a repetir a ordem, dessa vez, impondo um tom mais autoritário na voz.
– Digam seus nomes!
Uma morena de feições asiáticas aproximou-se um pouco, mas sem desviar a mira de sua arma dela.
– Aqueles que lutam pela liberdade não têm nomes, são chamados apenas de heróis ou soldados. E o seu nome, qual é?
Eva fez um movimento quase imperceptível com a cabeça ao ouvir a frase preferida de seu tio e voltou a pôr a mão no bolso da calça. Ainda avaliava a todos quando respondeu:
– Meu nome não é importante. O que importa, na verdade, é o resgate de Camila e seu grupo em segurança. Para isso, preciso da ajuda de vocês. O que me dizem?
Com as armas ainda em punho, olharam-se interrogativamente antes que a mesma moça que lhe respondera anteriormente voltasse a falar em nome do grupo.
– Como assim resgatar Camila?
As expressões de confusão estampadas em seus rostos e a pergunta proferida por ela, revelou a Eva que seu tio não os informara sobre a missão que tinham pela frente. Recordou de que, na noite anterior, ele havia dito que a captura de Camila deveria ser mantida em segredo, pois caso o exército descobrisse que tinham em seu poder a filha do General Herrera não haveria mais qualquer possibilidade de conseguirem resgatá-la ou que a encontrassem com vida.
– Do que está falando? – um rapaz loiro por trás da moça asiática perguntou.
Eva abriu a porta do carro e acomodou-se no banco dando partida no motor.
– Entrem no jipe e me sigam – saiu cantando pneus, deixando para trás rostos confusos e temerosos diante da possibilidade de Camila ter caído nas mãos do inimigo.
Pelo retrovisor, divisou entre a poeira que o seu carro deixava na estrada, o jipe se aproximando em alta velocidade até que chegaram perto o suficiente e mantiveram a velocidade regular. Não demorou muito e chegaram à mesma cabana em que ela se reunira com o tio e dois membros da família Hernandes na noite anterior.
Sentaram-se à mesa com Eva apenas três deles, incluindo, a moça de feições orientais que logo revelou se chamar Marina. Nenhum dos outros se dispôs a revelar seu nome, então Eva, quebrando o silêncio que se instalara no ambiente, iniciou o relato da situação ocultando alguns detalhes que revelavam quem ela era na verdade e como tinha aquelas informações.
Eva pôde perceber, pelas expressões que todos faziam a cada novo detalhe que contava sobre a captura de Camila, que sua prima era uma pessoa muito querida e respeitada por aquele grupo e o desejo de levá-la para casa sã e salva junto com seus amigos começava a tomar conta de seus seres como se fosse o ar que respiravam e o sangue que percorria suas veias.
Rostos tensos, olhares temerosos e respirações pesadas tomavam conta do ambiente levando até Eva a certeza de que seu tio estava correto em indicar aquele grupo para auxiliá-la no resgate de sua prima.
Era uma observadora do ser humano, cada gesto ou expressão daqueles com quem mantinha contato ou apenas via na rua era por ela analisado cuidadosamente, talvez porque ela mesma se privasse de boa parte deles, já que no trabalho que desenvolvia poderia facilmente entregar sua posição de espiã.
Portanto, para seus olhos treinados ao longo dos anos, ali estava um grupo disposto a tudo para salvar aquela a quem respeitavam e admiravam.
Heitor, que até o momento se manteve ao lado da janela, aproximou-se da mesa. Eva o encarou por trás das lentes escuras dos óculos. Era corpulento e de estatura mediana. Se não soubesse que aquele grupo era muito habilidoso e de total confiança de seu tio, duvidaria que aquele rapaz fosse capaz de segurar sequer um canivete.
– Como poderemos resgatar Cami se não sabemos onde ela está?! Com certeza, já cuidaram para que ninguém saiba a localização da filha do General Herrera ou, talvez, ela já esteja morta!
Ele cuspiu as palavras com tanta angústia na voz que ela não precisou fazer qualquer esforço para enxergar a paixão que nutria por sua prima. Os outros o olharam como se fosse um estranho, talvez ele assim o parecesse, pois provavelmente nunca deixava seus sentimentos transparecerem.
– Heitor… – Rafael, seu melhor amigo, o chamou.
Era tão corpulento quanto ele. Contudo, ao contrário do amigo, sua fisionomia era constituída por músculos bem definidos. Ele começou a falar na esperança de que o amigo caísse em si e percebesse que estava se deixando levar pelo desespero.
– Acalme-se, iremos tirar…
Heitor não permitiu que o amigo continuasse a falar, pôs-se a falar uma série de coisas desconexas e desesperadas, parecia mais um louco do que uma pessoa sã a beira do desespero.
Impaciente com aquela situação, que não lhe permitia entrar em detalhes sobre o plano de resgate, Eva ergue-se de supetão e se colocou diante de Heitor desferindo, em seguida, um tapa violento em seu rosto e fazendo com que o rapaz a olhasse pasmo e envergonhado.
– Cale a boca, sente-se e acalme-se! – foram suas ordens e ele as cumpriu sem emitir qualquer som.
Sentou-se em uma cadeira perto da porta, baixou os olhos e não os ergueu mais durante todo o tempo em que estiveram ali. Parecia ter se recolhido ao seu próprio mundo e, diante da atitude de Eva, seus companheiros preferiram não tecer qualquer comentário ou manifestar um sentimento solidário para com ele.
Eva voltou para a mesa e sentou-se novamente, dizendo:
– Prestem bastante atenção ao que vou dizer, pois não irei repetir. A Central de Inteligência do Exército ainda não tem idéia da real identidade de Camila. Nem desconfiam que ela seja a filha do General Herrera.
– Como é possível? – Rafael questionou.
– Isso não vem ao caso agora – Eva respondeu duramente.
Ela passou a mão sobre a aba do boné e o enterrou um pouco mais na cabeça lembrando-se de quão aliviada se sentiu quando soube que ao colherem as impressões digitais de sua prima, tudo que os agentes conseguiram descobrir é que ela era filha única e que em seu registro não constava o nome do pai, fato este devido a separação de seus pais um pouco antes de seu nascimento.
Somente muito tempo depois, Camila fora morar com o pai que, por alguma estranha razão, nunca se importou em pôr seu nome no registro de nascimento da filha.
– Temos menos de quarenta e oito horas para planejar e executar uma fuga. Não irá demorar muito para que eles liguem Camila ao General Herrera e, sendo assim, nós estaremos em uma corrida contra o tempo…
– É muito pouco tempo para planejar uma fuga com possibilidades mínimas de erro. Além disso, precisaremos das plantas do prédio onde ela está sendo mantida presa como, também, dos horários da guarda e…
Eva apanhou a mochila que havia atirado descuidadamente no chão quando chegaram ali e a depositou sobre a mesa tirando retirando dela um maço de papéis, os quais espalhou sobre a mesa.
– Aqui estão todas as plantas do prédio onde Camila e seus companheiros se encontram. No momento, ela está na ala médica, mas será transferida para uma cela especial esta noite. A cela deverá ser bem… – pousou o dedo sobre alguns traços no papel – aqui.
Rafael cruzou os braços sobre o peito largo e a olhou com desconfiança.
– Quem é você? – perguntou.
Ela ergueu o olhar dos papéis sobre a mesa para fitá-lo por trás das lentes escuras. Respondeu quase que imediatamente:
– Isso não importa e nem é da sua conta.
Insatisfeito com sua resposta, ele descruzou os braços e levando a mão até a cintura, sacou sua arma e apontou para ela repetindo a pergunta ameaçadoramente.
– Quem é você?