Eva parou diante da sala do tenente Morales, olhou fixamente para a porta por alguns instantes antes de bater na mesma. Uma voz grave e autoritária ressoou por trás da porta ordenando-lhe que entrasse.
Em contraste com o seu timbre de voz o tenente Morales era um homenzinho pequeno e de tez delicada, sempre alegre e sorridente, conseguia transmitir simpatia e confiança a todos, exceto Eva que sempre desconfiou de toda a sua jovialidade e simpatia. Em respeito a ela, ele ergueu-se da cadeira e com um pequeno gesto lhe indicou outra à sua frente. Eva assentiu retribuindo o cumprimento com leve murmúrio e sentou-se. Em suas mãos, segurava a pasta que o tenente havia lhe enviado poucos minutos antes.
– Explique isso – ela ordenou-lhe.
Ele sorriu confiante, mas evidentemente nervoso, afinal, aquela mulher metia medo em qualquer ser humano com aquela mascara de frieza que vestia. Poucas foram as vezes em que conversaram, pois ele mantinha-se o mais afastado dela possível, algo nela lhe causava mal-estar.
– Bem…
– Primeiro explique a razão de ter me chamado e não ao Coronel Castilho – interrompeu-o.
Ele mexeu-se incomodamente na cadeira.
– O Coronel Castilho foi convocado a acompanhar o General Cortez à ilha de Praia Bela.
– E quanto a Gutierrez? Na ausência de Castilho ele é responsável por esse departamento.
– O Capitão Gutierrez também está acompanhando o General Cortez. Portanto, estou no comando de todas as operações e interrogatórios, mas recebi ordens de que se algo de real importância acontecesse deveria notificar o oficial de maior patente depois do Capitão Gutierrez e do Coronel Castilho. Contudo, como este não existe, a preferência é pela responsável pelo departamento de investigação interna, ou seja, a senhora. O motivo é que por seu trabalho na agência é a mais indicada para trabalhar nesse caso.
– Não fui informada de nada disso.
– Recebi ordens do Coronel Castilho de que o fizesse somente se necessário.
Eva o olhou interrogativamente por longos minutos enquanto avaliava as informações que ele lhe dera.
As Ilhas Negras eram um conjunto de dezenove ilhas, todas habitadas, e a ilha da Serra Negra era a maior e principal delas. Mais desenvolvida que o restante, era o centro do comércio do arquipélago e onde se encontrava a sede do governo. Por ser a maior, ainda mantinha sessenta por cento de seu território inexplorado o que para as FL havia se tornado uma salvação, já que suas tropas se tornaram especialistas em se locomover nesse território selvagem e desconhecido.
O Exército evitava ao máximo adentrar na floresta, pois sempre que o fazia e vinha a entrar em combate com membros das FL, saía perdendo vergonhosamente e com um total de baixas exorbitante.
O General Cortez, líder do governo havia treze anos, desde que se deu o golpe de estado por ele maquinado e executado, jamais se ausentava da ilha de Serra Negra. Houvesse o que houvesse, era ali que sempre estava. Raramente era visto em público e, ela mesma, só o tinha visto uma vez; por isso, Eva sentiu-se terrivelmente incomodada com a notícia de sua ausência da ilha.
Afugentando seus pensamentos adversos e temores, ela ordenou:
– Continue.
O Tenente Morales, que havia alguns minutos, diante do silêncio dela se concentrara em brincar com o botão de sua camisa, sobressaltou-se ao ouvir-lhe e se empertigou na cadeira apertando as mãos nervosamente. A presença de Eva sempre lhe causava mal-estar.
– Hoje pela manhã, obtivemos a informação sobre um determinado armazém que poderia estar cheio de alimentos e remédios para os rebeldes. Então, enviei um pequeno grupo para investigar o local e eles prenderam dois rapazes. Eles alegaram que foram contratados para tomar conta do local e que nada sabiam, mas nós os “convencemos” a falar.
Morales fez um gesto erguendo as mãos a altura dos ombros e fechando os dedos como se desenhasse aspas no ar, no rosto um olhar divertido.
– Nos contaram tudo sobre a operação que seria realizada esta noite e todos os planos dos rebeldes, como também, a rota que fariam para chegarem até ali. Foi um pouco em cima da hora, mas conseguimos planejar a operação que foi realizada com sucesso.
Eva mantinha-se com o olhar fixo nele, seu olhar castanho ficando cada vez mais frio.
– Recebi um telegrama, há poucos instantes, confirmando a captura de seis soldados rebeldes, entre eles, duas mulheres. Segundo nossos informantes, nesse grupo encontra-se alguém diretamente ligado a Herrera – sorriu vitorioso. – Essa pode ser a nossa chance de descobrir a localização do acampamento de Herrera e capturá-lo de vez.
Ele estava tão feliz com o sucesso da missão que Eva o comparou a uma criança que acabara de ganhar um brinquedo.
Ouviram-se batidas na porta e ele ordenou que entrassem. O mesmo rapazinho que entregara os documentos a Eva, havia poucos minutos, surgiu à porta. Sussurrou algo no ouvido de Morales e um sorriso desenhou-se em sua face enquanto o rapaz se afastava e caminhava para fora da sala.
– Os prisioneiros chegaram. – Disse simplesmente e caminhou a passos rápidos para fora da sala e em direção a ala das celas e salas de interrogatório com Eva em seu encalço.
***
A carroceria do caminhão em que se encontravam chacoalhava muito causando dor intensa no ferimento de Camila. Ela havia perdido muito sangue e encontrava-se febril. Do seu lado, Mariane a olhava preocupada, mas consciente de sua impotência. Todos pareciam estar nervosos, não com a situação em que se encontravam, mas com o seu estado de saúde.
Até mesmo os soldados que os acompanhavam, de armas prontas para reprimir qualquer ação, pareciam receosos com o seu estado e Camila pensou que estavam com medo de permitir que uma prisioneira valiosa morresse. Ironicamente, não sentia medo, nem da morte, nem do que a esperava quando chegassem ao seu destino. Fechou os olhos sentindo uma estranha sensação de sonolência e torpor tomar conta de seu corpo, mas não ousou se permitir cair no sono.
O comboio estava na estrada havia quase três horas quando o caminhão, finalmente, estacionou e com o motor ainda ligado os soldados fizeram com que Camila e seus companheiros descessem. Foram guiados, empurrados e arrastados, por corredores frios e escuros. Em algum momento, durante o trajeto que fizeram através do corredor até uma cela fétida e minúscula, José ganhou um corte no supercílio, Mariane perdeu um dente e cuspia sangue a todo instante, Júlio e Pablo foram atirados no chão por diversas vezes e espancados aos socos e pontapés, Diego recebeu tantas pancadas que acabou sendo carregado, desmaiado, pelos guardas e foi atirado ao chão frio da cela como um saco de lixo.
Os guardas saíram fechando a porta com um barulho forte e sombrio e o silêncio tomou conta do ambiente sendo cortado, apenas, pelos gemidos de dor e respirações entrecortadas de todos, enquanto Diego começava a retomar a consciência.
A porta abriu-se, mais uma vez, e dois soldados entraram e se colocaram, cada um, de um lado da porta dando passagem a duas outras pessoas. O homem baixinho, de simpatia estampada no rosto e trajando uniforme militar, causou em Camila antipatia imediata, mas não tanto quanto a mulher que surgiu logo atrás dele. Alta, de cabelos castanhos e olhos da mesma cor, trazia no olhar um tom gélido que causou um leve arrepio em sua espinha. Trajando roupas civis ela observava a todos de maneira incomum demorando-se em cada rosto mais que o necessário e, quando seus olhos encontraram os de Camila, um brilho diferente surgiu neles, mas no instante seguinte, não estava mais lá.
– Levem-nos para interrogatório imediatamente – Morales ordenou.
Ele apertava as mãos nervosamente e o sorriso estampado em seu rosto não se desfez em momento algum até que Eva falou:
– Não.
– O quê?! Como assim, não? Eles têm de ser interrogados imediatamente e…
– E irão acabar morrendo em poucos minutos sem terem emitido uma única palavra a não ser gritos de dor. Conheço seus métodos de interrogatório, Tenente Morales.
– Isso nunca foi um problema para o Coronel Castilho! – ele falou entredentes, o sorriso havia desaparecido de sua face dando lugar a uma veia saltitante em sua testa.
Eva parecia não se importar com o estado colérico em que ele se encontrava, pôs as mãos nos bolsos da calça em uma atitude puramente despreocupada, enquanto observava o Tenente se esforçar para acalmar-se, afinal, ele querendo ou não ela era sua superior, embora não fosse um membro do exército.
– Quando você veio a mim, seguindo as ordens do Coronel Castilho, estava ciente de que ao fazer isso todo o poder e responsabilidade sobre a vida e interrogatório desses prisioneiros estaria em minhas mãos, portanto, apenas obedeça.
Sentada no chão e encostada na parede fria da cela, que já se tornava escarlate devido ao sangue de seu ferimento, Camila observava aquela troca de farpas sabendo que dependia da vitória daquela mulher para sobreviver mais um dia ou, pelo menos, aquela noite.
– Coloque-os em celas separadas e providencie tratamento médico para todos, especialmente, esta aqui – apontou para Camila.
Morales abriu a boca surpreso e começou a murmurar algo quando Eva completou:
– Não podemos interrogá-la se estiver morta. Na situação em que nos encontramos todos eles são de vital importância para o sucesso do nosso trabalho – e saiu deixando todos intrigados, incluindo os prisioneiros que jamais esperavam tal atitude de seus captores.
Camila ainda vislumbrou, antes de perder completamente os sentidos, a longa cabeleira castanha sumir porta a fora e o tenente Morales ordenar entredentes e em meio a insultos sussurrados que os guardas cumprissem as ordens que lhes foram dadas.