Marie caiu de joelhos, sufocando um grito.
Não podia ser verdade! Mas era! Focalizou o corpo da amiga, completamente inerte entre os braços de Fantin. A mancha de sangue no peito dela continuava a crescer e Fantin afundou o rosto entre seus cabelos, sussurrando coisas incompreensíveis, enquanto Melina contemplava a cena em uma doloroso silêncio, regado a lágrimas.
Aquela dor cresceu no íntimo de Marie, destruindo qualquer felicidade plantada nele por ter estado com a mulher que amava. Tamar — Mestra Alina — esteve ao seu lado por mais de vinte anos, cultivando uma amizade carinhosa e assumindo para si a responsabilidade de tentar encontrar uma maneira de evitar a sua morte pelas mãos do Cavaleiro, — mesmo que lhe pedisse para deixar isso de lado — oferecendo sorrisos discretos de compreensão quando lhe falava sobre seus dissabores e o amor que tinha encontrado em Virnan.
A visão nublou, invadida por lágrimas grossas. A magia do círculo que conjurou, oscilou, fazendo a luz que demarcava seu limite se apagar por um segundo e este foi suficiente para que outra criatura o invadisse.
Virnan empalideceu e apressou-se até a mestra, que estava alheia ao que se passava. Obrigou-se a correr, desprezando a dor na perna ferida. Jogou-se contra ela e as duas rolaram pelo chão até atingirem a barreira final do círculo. A guardiã se pôs de joelhos, ainda em tempo de visualizar o tentáculo suspenso no ar, no exato local em que Marie esteve.
Assustada, a Mestra se pôs de pé e tomou para si a espada de um dos soldados midianos, cujo corpo jazia fora do círculo. A visão do sangue no cabo revolveu suas entranhas. Ela pertencia a Gian, cujo sorriso marcante estava sempre adornando o rosto jovem que, agora, estava desfigurado e sem vida.
— Concentre-se em manter o círculo ativo. — Virnan pediu, mas a mestra já estava a caminho da luta e teve de segurá-la. — Preste atenção, Marie!
A puxou para o lado quando Fenris foi empurrado na direção delas. O cavaleiro tropeçou nos próprios pés e caiu sentado no chão. Ele se ergueu, trincando os dentes pela fratura exposta no braço esquerdo, resultado de um golpe anterior. A couraça não foi capaz de resistir a ponta rígida dos tentáculos e exibia um buraco profundo, que vertia uma grande quantidade de sangue.
Do outro lado do círculo, Melina expandiu a aura mágica para proteger-se e a Fantin, mas não escapou de sofrer um golpe nas pernas antes disso.
Verne decepou um dos tentáculos do demônio e recuou alguns passos para escapar de outros. O movimento o fez vítima daquele que já estava preso e viu-se com um tentáculo enroscado no pescoço. Ele tentou cortar aquele que o prendia, mas a criatura enroscou outro na mão com a espada até que os ossos estalassem e ele a soltasse.
Fenris reassumiu seu lugar na luta, enquanto Távio corria em socorro do Lorde.
— Não pode encerrar a conjuração enquanto eu não disser! — Virnan insistiu, obrigando Marie a se concentrar nela. — Nem deixe que a magia fraqueje ou teremos mais dessas coisas aqui dentro!
A princesa a puxou para si, livrando-a de um golpe que seria mortal, caso tivesse lhe atingido. Virnan lhe sorriu, grata, então a empurrou em direção ao escudo de Melina, tomando-lhe a espada das mãos.
— Essa coisa é enorme e muito forte — a grã-mestra falou para elas, forçando a expansão da aura mágica para envolvê-las também.
A guardiã concordou com um balançar ligeiro de cabeça.
— E é por isso que eu odeio sugadores! — Gemeu para o vazio, preparando-se para abandonar a proteção e atacar a criatura. Fenris foi atirado contra o escudo mágico.
Virnan se adiantou para além da defesa. Ao vê-la cruzar seu campo de visão, Mestra Fantin despertou, emergindo da dor com um grito colérico. Soltou o corpo de Alina, se colocou de pé e tornou a conjurar as argolas douradas nos punhos. Contudo, desta vez não socou o ar. Espalmou as mãos e um brilho forte saiu delas um instante antes da sugadora ser arremessada contra a parede de luz do círculo.
Ela não caiu ao chão. Pelo contrário, ficou pendurada como se uma pessoa invisível a pressionasse no local. O som de ossos se partindo se elevou, sangue negro como a pele dela escorreu da bocarra cheia de dentes pontiagudos à medida que um grito inumano lhe escapava da garganta.
— Deuses! Vai romper o círculo! — Virnan se voltou para a mestra.
Tentou se aproximar dela, mas a força da magia que empregava era assombrosa e a repelia. Girou sobre os calcanhares e atirou a espada no peito da criatura. Ela liberou novo grito, contorceu-se e silenciou.
Mesmo assim, Mestra Fantin continuava enviando ondas mágicas para ela. Às suas costas Marie empregava muita força de vontade para manter o círculo erguido e suor brotava da testa dela, enquanto rilhava os dentes. Melina encerrou a proteção, deixando vir à tona uma careta de dor pelo corte na perna. A idosa tentou chamar a atenção da ex-pupila, mas ela sequer piscou.
— Fantin! — Virnan chamou.
Ela não se moveu e a protetora colocou-se à sua frente e a obrigou a ceder para não lhe machucar. Mesmo assim, a criatura permanecia grudada à parede do círculo.
— Saia da frente! Eu vou matar essa coisa! — Fantin gritou. A voz estranhamente rouca pelo choro.
Virnan deu um passo à frente. Ainda que não estivesse mais direcionando a magia para a sugadora, a aura mágica dela era extremamente forte e brutal e lhe impunha resistência. Jamais sentiu o peso do verdadeiro poder da mestra, como naquele momento. Mas acreditava que apesar da fúria que a dominava, Fantin não tinha soltado todas as amarras e ainda se continha.
— Olhe para mim! — Exigiu.
Os olhos azuis da mestra a focalizaram, ainda cheios de lágrimas.
— Se continuar desprendendo tanta magia, vai romper o círculo que Marie conjurou e não poderemos salvar Mestra Alina. Pare antes que seja tarde!
Houve um momento longo e angustiante em que a magia do círculo ameaçou cair, antes que ela compreendesse o significado do que lhe foi dito. Baixou os braços, mas não se livrou das argolas. Às suas costas, as pernas de Marie fraquejaram e Melina a ajudou a se manter de pé, doando suas forças para que continuasse a alimentar a conjuração.
A sugadora despencou, tocando o chão com um baque surdo.
— Você pode mesmo salvá-la?
A frase não passava de um sussurro carregado de esperança. Virnan finalmente chegou até ela. Assentou as mãos em sua face, obrigando-a a se curvar um pouco para fitá-la nos olhos.
— Lembre-se bem do que lhe disse naquela estalagem, Mestra.
Ela inspirou fundo e retrucou:
— Você já fez isso.
— Não, Fantin. Não cheguei nem perto. Por vocês, vestirei vermelho novamente.
A frase pesou nos ouvidos de Marie, mas ela compeliu-se a não pensar sobre isso. Com um movimento leve, fez o chão debaixo da outra sugadora ceder. Virnan se apossou do punhal que a mestra carregava na cintura, voltou-se para a criatura e o atirou na testa dela, que começava a agitar os tentáculos novamente.
Retornou para Fantin. A tristeza que tomava o semblante dela era uma visão que jamais imaginou ter. Havia percebido a maneira que ela olhava para Alina; capitou o desejo e a paixão, mas nunca lhe chegou a compreensão da profundidade daquele sentimento até aquele instante.
Aos seus olhos, aquela mulher sempre foi uma fortaleza. Ainda que nunca tivessem se esforçado para criar um laço de amizade, lhe admirava e divertia-se em provocá-la porque reconhecia nela uma semelhante; uma das poucas pessoas na Ordem que a olhava diretamente nos olhos e não ocultava o que pensava.
Compreendia bem a sua dor. Afinal, foi o medo de perder Marie que a fez jurar, algumas horas antes, que transformaria o mundo em um inferno antes que o Cavaleiro se aproximasse dela.
— Preste atenção. Enquanto Marie mantiver a conjuração deste círculo, temos uma chance de salvar Alina, mas é preciso que o corpo dela esteja restaurado. Então, concentre suas forças nisso e prometo trazê-la de volta para nós — inspirou fundo e baixou a voz para que somente ela ouvisse —, para você. Agora que a alma dela está ausente, seu corpo é como de qualquer não mágico e poderá curá-lo rapidamente. Mas não demore, quanto mais tempo ela fica fora do corpo, mais difícil será trazê-la de volta.
Fantin não sabia definir o tamanho da alegria que a tomava, ainda que o desespero fosse semelhante. Em silêncio, retornou para o corpo da mestra da biblioteca e iniciou o trabalho de cura. Virnan lhe deu às costas e caminhou, claudicante, até a primeira sugadora.
Verne estava ajoelhado perto dela, ainda recuperando o fôlego. Sangue vertia de um corte na testa, tingindo a face dele de vermelho. Havia muitos outros em seu corpo, mas aquele parecia ser o mais profundo. A mão direita estava quebrada, mas como um exímio lutador, também conseguia empunhar a espada com a mão esquerda.
Ao seu lado, Távio examinava o ombro, de onde metade de um tentáculo se projetava. Ele puxou o membro decepado que o penetrava com uma expressão de nojo. O atirou no chão e esmagou como se fosse um inseto.
— Dion e Grives também faleceram — disse ele, que esteve atento à conversa. — Também pode trazê-los de volta? — Perguntou esperançoso.
— Vamos vingar nossos amigos, matando logo essa coisa! — Verne declarou, apoiando-se na espada para ficar de pé e a erguendo de novo.
— Não se apresse, Badir. — Disse Virnan, o fazendo parar o movimento. — Nem tudo está perdido. E mesmo que este círculo de magia lhe permita ver e até machucar essa sugadora, sua espada não pode matá-la.
— Você acabou de fazer isso com a outra — ele retrucou.
— Foi temporário. Estou certa de que agora só está fingindo. Se tem amor a si próprio, não se aproxime dela. — Olhou para Távio. — Sinto muito, mas não posso fazer o mesmo por eles. Já não estão aqui. Estavam mortos quando chegamos. Com certeza, já estão prestes a fazerem a passagem para as Terras Imortais.
Verne mirava a criatura com olhar assassino, desejoso de pôr logo um fim naquilo. A protetora arrancou a adaga da árvore, decepando a ponta do tentáculo que prendia. Falou:
— Realmente, não temos muito tempo para perder com explicações. Basta que entendam que quando este círculo foi conjurado, fomos aprisionados e o mesmo aconteceu com as sugadoras. É por causa dele que elas se tornaram visíveis aos olhos de todos e, também, ganharam um corpo físico capaz de ser ferido. Elas sãos espíritos demoníacos, coletoras de almas. Aliás, se tivessem mais espíritos ou almas por aqui, também estariam visíveis. Se não enxergamos Dion e Grives, é justo concluir que já partiram.
Falava devagar, consciente de que perdia muito do sangue que mal tinha recuperado após a luta na estrada. Falou com a sugadora:
— Você não pode ficar com a alma da nossa amiga. Devolva-a e prometo que porei fim ao seu sofrimento.
— O que a faz pensar que essa coisa consegue entendê-la? — Verne indagou, revoltado. — Vamos matá-la de uma vez e enterrar nossos mortos.
Voltou a erguer a espada, mas ela lhe segurou o punho.
— Já lhe disse e repeti que você é um homem cego. Exige respostas, mas não absorve as informações delas. Nem tudo pode ser resolvido com a lâmina de uma espada e a sua, neste caso, é inútil.
O soltou, tornando a falar com aquele ser de aspecto repugnante.
— Devolva-a e a livrarei dessa dor, desse corpo abominável.
Um calafrio percorreu o badir quando ouviu a criatura responder.
— Você não pode, mulher tola — sussurrou com uma voz estranhamente humana. — Você não tem esse poder.
Virnan ergueu a adaga e seu sangue respingou no chão quando deu um passo à frente. A sugadora se encolheu, farejando o ar.
— Você fede — sibilou. — Sinto o cheiro dele em você.
Ela deu mais um passo. E a criatura se encolheu mais.
— Você fede! Fede como ele! Fique longe de mim! — Mostrou os dentes.
A guardiã desfigurou a face em um sorriso cruel e deslizou a ponta da adaga sobre a pele dela, que teria se encolhido mais se fosse possível. Se tivesse olhos, talvez pudesse ter notado alguma surpresa neles.
— Isso é diferente — enroscou um tentáculo na mão que segurava a adaga.
Verne preparou-se para atacar, mas um olhar da guardiã o fez ficar imóvel.
— Ah, sim… É como o machado que o Lorde possui, mas a sua é diferente. Há alguém aqui! — Deslizou a ponta do tentáculo pela lâmina. — Alguém muito forte.
Soltou a mão dela, farejando o ar de novo.
— Sim… Sim, você pode fazer isso com essa lâmina. Pode me matar.
Ela sorriu, exibindo uma centena de dentes pontiagudos.
— Sinto uma magia antiga em você. — Virou a cabeça para o lado, como se estivesse tentando entender o que a guardiã era. — Não, você é que é antiga. Não pertence a este tempo. É como o meu mestre.
Fez uma pausa, ainda girando a cabeça para o lado, então se endireitou. Alguns passos adiante, a outra sugadora decidiu parar de fingir que estava morta. Ouvindo a conversa que se desenrolava com sua semelhante e compreendendo o que se passava, resolveu falar:
— Eu o ouvi sussurrando… — Retirou o punhal da testa e o soltou com um baque surdo. — Ouvi o “Vento”. Ele faz isso quando o Mestre não está por perto.
A primeira, concluiu:
— Ele fala de você. Fala do príncipe que perdeu.
Saliva escorreu pela boca, misturada a um líquido espesso e negro, como aquele que escorria dos tentáculos decepados.
— Sangue maldito! Você foi a primeira senhora dele. É… você, sim! Você é o original.
Falava como se estivesse a sussurrar para si mesma. No entanto, mantinha o rosto direcionado para Virnan. Esta, por sua vez, girava a adaga entre os dedos, concentrada em cada palavra.
— Mas que inferno essa coisa está falando? — Verne se cansou.
— Coisas que ela pensa compreender. — A guardiã respondeu. — Devolva a alma de Mestra Alina, é a última vez que peço. Faça e destruirei a abominação em que ele a transformou.
A criatura gemeu, inspirando profundamente. Virou a cabeça para a companheira, como se estivessem a combinar algo com o olhar inexistente. Virnan irritou-se:
— Posso tirá-la à força, mas se tiver de fazer isso, irei usar a tucsiana para prendê-las e garantir que fiquem nesta forma abominável por toda a eternidade! — Forçou um sorriso ameaçador, mas a verdade é que não tinha magia suficiente para fazer o que disse e Marie não poderia lhe ajudar naquele momento.
A primeira sugadora ergueu o tentáculo que seria a mão direita, passando-o pela lâmina da adaga de novo. Sabia que aquilo poderia destruí-la, mas não a temia.
— Você vai mesmo? — Havia expectativa nela. Mostrou os dentes, sem ouvir a resposta. — Você promete, Castir?
Um arrepio percorreu a nuca dela ao ouvir o tratamento. Havia muito tempo, não a chamavam assim. Mesmo antes de ter a magia aprisionada, tinha perdido o direito àquele nome.
— Prometo acabar com o seu sofrimento. — Garantiu, obrigando-se a não demonstrar alívio.
Deslizou a lâmina pela mão, fazendo um corte suave, mas suficiente para verter sangue. Traçou um círculo no chão com a ponta da adaga e deixou que o líquido o preenchesse. Era um juramento mágico que aquela criatura, apesar de ser muito jovem, conseguiria compreender, assim como compreendia o significado da palavra Castir.
— Faça! — A segunda sussurrou. — Liberte-nos!
Aquela diante de Virnan, decidiu-se. Abriu a boca e uma luz suave, de tom azulado, escapou dela e flutuou à sua frente liberando uma pequena aura de paz.
— Cumpra sua promessa. — Exigiu.
Virnan agachou-se diante dela e, sem aviso, enfiou a adaga na carne negra como carvão. Por um instante, nada aconteceu. Então, o corpo dela começou a se decompor em milhares de pedras negras até se tornar pó e ser absorvido pela magia do círculo de Marie.
Ela caminhou até a outra, que abriu os braços ansiosa por receber a morte.
— Antes, me responda. Vocês foram enviadas à nossa procura?
A sugadora mostrou os dentes.
— Sim! O Machado exige seu sangue. Ele quer vingança pela Adaga. O mago com as cicatrizes contou para ele do seu encontro. — Ela riu, ferindo seus ouvidos com o som animalesco que gerava. — Mago traiçoeiro… Ele não contou a verdade. Não disse o que e quem você é.
— Há outras?
— Não vieram conosco. Protegem o Lorde.
Virnan sorriu, satisfeita com a resposta, e enfiou a adaga em seu peito.
— Obrigada, Castir. — A imagem dela tremulou por um segundo, tomando uma aparência muito humana.
Lorde Verne cambaleou, horrorizado, pois reconhecia aquela figura. Ela soltou um último gemido e desapareceu da mesma forma que a outra.
A florinae recostou-se numa árvore, lutando contra o desgaste que a tomava. Ainda que não tivesse sido claro, usou a pouca magia a qual tinha acesso para matar as duas criaturas. Sem ela, a lâmina da adaga poderia ser encarada como uma faca comum. Puxou uma grande quantidade de ar para os pulmões, olhando para Fantin que aguardava ansiosa diante do corpo de Alina.
A luz azulada flutuava no centro do círculo, buscando uma rota de escape, mas enquanto estivesse ativo, permaneceria presa ali. Fenris lhe ofereceu o braço bom e a ajudou a caminhar até a mestra. Seu corpo implorava por descanso, mas se entregar àquela vontade seria como dizer um “adeus” definitivo a Alina.
Apontou para a luz azulada que flutuava sobre suas cabeças.
— Ela é linda, não é? Azul como o mar. Quem diria que a nossa tímida Mestra dos Escritos poderia ter uma cor tão bela?
As sobrancelhas de Fantin se ergueram.
— Isso é ela?!
— Sim.
Marie abriu os olhos um pouco mais. A tristeza que a tomou quando descobriu que a amiga tinha morrido, não lhe permitiu raciocinar direito. Pouco tempo antes, Virnan tinha lhe dito que a natureza da sua magia era espiritual.
Me use! Apressou-se a pedir.
— Sinto muito, Marie, mas você não pode fazer isso. Mesmo que lhe desse minha magia e a orientasse, como em Bantos, não conseguiria trazê-la de volta. É um ritual complexo, ainda que pareça simples aos olhos de quem vê.
Verne se aproximou, pálido como uma vela, enquanto ela erguia a adaga. A alma da mestra foi atraída para ela. Brilhava, suave.
— Do que precisa? — Melina indagou, aflita.
— Engolir meu orgulho — respondeu. Dirigiu-se a Marie: — Ainda não pode encerrar a conjuração. Por favor, aguente um pouco mais.
A mestra anuiu, demonstrando um semblante tão desgastado quando o dela. Virnan tomou um alento, então chamou:
— Lyla.
Alguns instantes se passaram até que o espírito da florinae tomou forma ao seu lado, promovendo espanto em todos e arrancando um palavrão de Fenris. Ela fitou a guardiã, longamente.
— Se me aceitar aqui, nosso laço não será tão forte, graças as correntes em sua magia.
Fez uma pausa, olhando para o corpo sem vida da mestra da biblioteca.
— Mestra Alina tem uma tarefa importante a cumprir. Os passos dela neste mundo são valorosos, assim como os seus. Cuidarei dela até que possa encontrar um Círculo de Cazz…
Demorou-se olhando para a adaga. Virnan poderia abrigá-la na pedra que adornava o cabo da arma, expandindo o tempo que poderia passar longe do corpo sem ser atraída para as Terras Imortais.
A moça fez um gesto irritado.
— Eu não estou em condições de ir tão longe. Não temos tempo e mesmo que estivéssemos em um Círculo de Cazz, nosso laço não seria tão forte quanto o que tive com Zarif, já que você não é uma natural. Você não nasceu de um evento como ele!
Lyla permaneceu em silêncio, avaliando-a de alto a baixo. Era verdade, mas a magia de um Círculo de Cazz poderia fortalecer o ritual, tornando-o menos doloroso para ela, Virnan.
— Espírito idiota, não me obrigue a implorar! — Agastou-se.
Os companheiros assistiam a conversa, emudecidos. Cada vez mais surpresos com as coisas que viam ou aprendiam ao lado da guardiã.
— Você costumava ser mais carinhosa comigo, Virnantya. — Sorriu pelo desagrado que transpareceu na face da outra ao ouvir o nome completo. Mirou o corpo de Alina, outra vez, e depois a luz que sobrevoava suas cabeças. — Azul como o mar. Uma bela cor, não é?
Sorriu, significativamente. Afinal, era uma cor de grande importância entre seu povo. Estendeu a mão e a alma de Alina desceu até ela, tomando as formas e feições da mestra falecida. Contudo, ela manteve-se silenciosa e com olhar ausente, enquanto um choro baixo tomava Fantin.
A protetora forçou um sorriso.
— Você me deve isso. Foi o que me disse naquela estrada.
— Lhe devo muito mais. Você não tem ideia do quanto.
Sua imagem esmaeceu por um momento.
— Pois bem! Não sou Zarif, mas tentarei fazer o meu melhor, Virnantya. — Afirmou. — Você sabe o que fazer.
Sem preâmbulos Virnan limpou a adaga na calça, a girou na mão e a enfiou no peito. Um grito escapou de Melina ao vê-la cair de joelhos, enquanto uma mancha vermelha se expandia no local da ferida.
Fantin a fitou horrorizada. Verne, assim como Fenris, deu um passo atrás. Já Marie, obrigou-se a manter-se calma e concentrada no que fazia. Estava certa de que a amante não era suicida e aquilo tinha propósito. Nos seus sonhos, não assistiu o ritual que a uniu a Zarif, mas acreditava que aquilo fazia parte dele.
Fechou os olhos por um segundo e quando voltou a abri-los, o espírito Lyla se aproximava da ex-protetora e tocava o local do ferimento.
— Spectu to castir porum empt. — Disse com voz clara, quase musical.
Entre gemidos, Virnan respondeu. O ferimento que fez não era profundo ao ponto de alcançar o coração, mas era necessário que abrisse uma “passagem” em seu corpo.
— Spectu porunum.
Lyla sorriu.
— Aqui eu me uno a você, Virnantya L’Castir. Minha Senhora dos Ventos. Meu príncipe em vermelho. Aqui somos duas e uma. Que este laço seja eterno e inquebrável até o dia em que você recuperar o que lhe tirei.
Uma luz forte as envolveu e, por um momento, elas pareceram ser a mesma pessoa, ocupando o mesmo lugar. Então, Virnan gritou alto, enquanto a adaga abandonava seu peito. A tatuagem na testa brilhou forte, ganhando formas complexas, preenchendo a pele como se fosse uma coroa. O mesmo ocorreu com os pulsos. Ela curvou-se, arquejando, e o espírito desapareceu.
Um longo instante de silêncio se passou, enquanto ela se manteve dobrada no chão. Ainda que não gritasse mais, nem mostrasse a face para eles, sabiam que era tomada por uma dor incomum e muito além do que poderiam suportar. Visualizavam as veias e a musculatura contraída dela.
A guardiã dobrou-se um pouco mais e vomitou algo semelhante a areia. Era tão negra quanto aquela em que as sugadoras se tornaram e, assim como a delas, foi sugada pelo círculo de Marie. Mesmo os guerreiros, que não possuíam magia, conseguiram sentir o tormento, o desespero e outras tantas emoções negativas que aquela areia carregava.
A protetora se pôs de joelhos. Por um momento, seus olhos brilharam com a cor violeta, então retornaram ao verde cristalino. Ela inspirou algumas vezes, apreciando o poder que percorria seu corpo, recuperando os canais mágicos bloqueados há séculos.
Ainda estava magoada, claro, mas sentir Lyla em si, daquela forma, foi como retornar para casa após um longo tempo ausente. Suas mentes se misturaram por alguns instantes, mas não o suficiente para se conectarem completamente. Aquilo era muito diferente da sua união com o espírito Zarif. Ainda assim, parecia muito mais acolhedor.
Cada centímetro do seu corpo vibrava, banhado em magia. A mente trabalhava com a clareza da juventude, despertando para antigas percepções. Agora, enxergava muito mais do que o círculo à sua volta, via as correntes mágicas, os espíritos naturais, as forças elementais que os rondava.
Se pôs de pé, mirando as próprias mãos.
Aos olhos de todos, parecia quase radiante, embora ainda estivesse maltrapilha e ferida. De repente, o espírito Lyla reapareceu ao seu lado, como se estivesse saindo do seu corpo. Ela curvou-se, fazendo uma reverência leve. Virnan a tocou e ela tomou a forma de um pássaro vermelho gigante, o mesmo que adornava o brasão da família dela, séculos antes.
O pássaro chilreou, bateu asas e desapareceu na noite, ultrapassando as barreiras do círculo, como se não estivessem ali. Mesmo que não pudesse vê-lo, Virnan sabia que só precisava sussurrar o nome dela para o vento e Lyla estaria ao seu lado, pois podia senti-la como a si mesma, ainda que estivessem separadas por incontáveis distâncias.
Soprou o ar, capturando um olhar de admiração de Marie. Sorriu para ela e piscou, charmosa. Dizia, assim, que tudo ficaria bem. Então, esticou a mão e a alma de Alina se aproximou, abandonando a inércia das expressões.
— Há muito tempo, não vejo uma alma tão bonita quanto a sua, Mestra Alina.
Tocou-lhe a face translúcida.
— Devo admitir que estou surpresa, mas também encantada. — Sorriu e ordenou: — Volte para seu corpo. Rectrum.
Gavinhas de luz se elevaram do chão, envolvendo o corpo da mestra. Elas cresceram, atraindo a alma dela quando a guardiã iniciou movimentos suaves com as mãos. Parecia tocar um instrumento musical, emanando um forte sentimento de paz.
A Mestra dos Escritos abriu os olhos, sugando o ar para os pulmões. Sentou-se, mirando o rosto choroso de Fantin e deixou-se envolver por ela, compartilhando as lágrimas.