Amores de Sofia

3. Marina

 

Despedir-se de Paris em meio ao outono não era fácil para ninguém, ainda mais para uma brasileira metade francesa. Ao caminhar pelo bairro Quartier Latin, o Bairro Latino em tradução livre, que era o preferido de Marina, o coração batia descompassado.

O local recebera esse nome, já que o latim era a língua falada pelo bairro na Idade Média, devido à grande concentração de estudantes, por lá, os jovens subversivos, como eram conhecidos por contestarem a sociedade, saíam da prestigiada Universidade de Sorbonne e caminhavam com os pensamentos borbulhando. O Quartier era palco de mentes brilhantes e tinha um charme que fazia a inteligência gritar pelas suas esquinas e pelas mesas de seus bistrôs.

Fora lá, depois de uma aula de especialização na Politécnica francesa, que Marina conheceu Lis Marie e foi amor à primeira vista. As duas tinham um amigo em comum, Pierre, o mago do aço.

Lis Marie era uma artista versátil, tinha a alma inquieta e o coração tão duro quanto o aço que manejava, mas tinha o corpo quente e atraente, toda semana uma mulher passeava sobre as suas obras largadas em um galpão gigante e pela sua cama, mas não demoravam, nenhuma figura se repetia naquele álbum que parecia um cenário de filme noir. Até conhecer Marina.

As duas passaram a noite conversando, falando sobre arte, sobre tecnologia, que, para Marina não deixava de ser arte também, fecharam vários bistrôs, beberam vinho, comeram pão, mas os corpos não se tocaram, não houve beijo, não houve abraço, apenas um aperto de mão, nem os dois beijinhos tradicionais franceses foram dados.

Manter a distância segura foi o pensamento de Marina, não conhecia Lis Marie pessoalmente, mas já tinha ouvido falar de sua obra e de suas investidas cafajestes. A brasileira não queria ser mais uma conquista aleatória, afinal estava em Paris com um propósito: fazer a tão sonhada especialização em TI e trabalhar na Pegasus, a revolucionária empresa de inteligência artificial e tecnologia. Perder o foco na cama de uma artista que não queria nada com ninguém, definitivamente, não estava nos seus planos.

Mas, a vida existe para destruir nossos planos, foi o pensamento de Marina, uma semana depois ao olhar a mulher nua de bruços na sua cama depois de passarem a noite fazendo amor. Lis Marie parecia ela mesma uma obra de arte surrealista de Salvador Dali. Foi isso que Marina pensou quando a viu pela primeira vez. Olhos expressivos negros, um cabelo Chanel tão clássico como a própria Maison francesa, uma pele branca que mal pegava sol e um charme de deixar qualquer mulher lésbica com uma fraqueza nas pernas.

E se Marina se apaixonou pelo clássico francês e pelo surrealismo artístico vívido, Lis Marie se apaixonou pela brasilidade, pelo sorriso leve, pelo amor que aquela brasileira bem educada e cheirosa tinha pelo seu país.

E a junção foi linda! Assim como o amor. A cama dividida, o apartamento compartilhado, as viagens feitas, os jantares e as garrafas de vinho, as duas pareciam uma brisa fresca de verão que combinavam em suas diferenças.

Todo mundo via, mas pouca gente acreditava. O tempo foi passando, a especialização de Marina terminou, ela se candidatou a uma vaga na Pegasus, passou e estava onde queria estar. Se a vida destrói os nossos planos, a gente cria outros e dá uma rasteira na vida. Foi com esse pensamento que Mariana apanhou a felicidade e a pegou para si.

Mas, como uma mulher sentida e que quer vingança, num final de tarde de uma terça-feira de outubro, depois de várias reuniões de trabalho, Marina chegou em casa e viu duas malas arrumadas na sala. A sensação foi um bolo na garganta e, ali, a vida lhe derrubou por completo, ou quase.

Lis Marie estava sentada na pequena varanda que dava para o Rio Sena com uma taça de vinho tinto, vestia uma blusa branca, uma calça branca e estava sem sapatos, uma perna dobrada anunciava que a conversa seria séria.

A francesa a convidou para sentar à mesa e serviu uma taça de vinho. Lis Marie estava de malas prontas para Berlim, tinha se inscrito para fazer curadoria em um atelier de um grande artista alemão, depois de um ano de espera seu ídolo resolveu abrir duas vagas e uma delas era de Lis Marie.

Maria ouviu tudo calada, não disse sequer uma palavra, estava magoada com a decisão não compartilhada, com a ausência de sinceridade e com o desprendimento da francesa em relação às duas.

A conversa foi quase um monólogo, e depois de quase três anos de um relacionamento, Lis Marie saiu do apartamento de Marina da mesma forma que entrou: leve.

Marina passou três dias sem sair do quarto, mandou mensagem para seu chefe e disse que estava com um problema de saúde. No terceiro dia, seu irmão mais novo e Pierre arrombaram a porta do apartamento e encontraram Marina inerte na cama.

Acostumar-se ao vazio da cama foi mais difícil do que a brasileira podia imaginar, ainda não entendia por que tinha sido largada dessa forma, sabia e tinha certeza que Lis Marie era apaixonada, não sabia sequer da inscrição no programa de curadoria, isso foi o que mais a magoou.

Viveu no automático nos dois primeiros meses, depois a ausência foi anestesiada pela rotina, pelo trabalho, pelos amigos, pelo irmão, pelo cansaço e pela vã tentativa de entender os motivos pelos quais tinha sido abandonada da forma que foi pelo grande amor da sua vida, pela sua pintura surrealista, até que, numa sexta, em uma reunião, a possibilidade de retorno ao Brasil surgiu.

Uma vaga de gerente tinha sido aberta em São Paulo e o convite tinha sido feito a Marina que aceitou na mesma hora, sem pestanejar. Deixou o outono parisiense para trás, um punhado de amigos, um de seus irmãos que estava também estudando na Cidade Luz e parte do seu coração, que foi dobrado em aço, embrulhado e colocado no bolso de uma artista que o tinha maltratado demais.

Quando retornou de Paris, Marina veio com o coração despedaçado, Lis Marie, sua companheira francesa, decidiu acabar o relacionamento da noite para o dia, deixando Marina arrasada. As duas viveram uma grande, linda e romântica história de amor, na verdade, Marie foi o primeiro grande amor de Marina, e ela achava que seria o único, até ver Sofia numa sexta de fim de mês, com um vestido preto sóbrio, um copo de chope numa mão e um sorriso largo no rosto, brincando e implicando com Carlão perto da mesa de sinuca no lado esquerdo do bar.

As luzes não são claras, na verdade são meias-luzes, um aspecto romântico e íntimo, Marina não viu Sofia claramente, viu apenas a silhueta e um belo sorriso, mas não precisou, ela se encantou assim que vislumbrou aquele corpo em suas mãos. Outrora, seu amigo Rafael, falara de Sofia vagamente, dissera que Sofia era noiva, mas após a morte de sua tia, acabara o noivado e estava solteira. Marina sabia que Sofia, a princípio, não se envolvera com mulheres, então o bilhete seria um tiro no escuro.

Marina demorou seis meses para escrever o bilhete que entregara na sexta passada, até o que iria escrever foi problemático, ela não queria espantar Sofia, queria apenas despertar o interesse, e conseguiu. Não era uma prática muito recorrente, ela não gostava de misturar as coisas, assim como não gostava de misturar vida privada e vida pública, então o medo era triplo, mas depois de muito pensar decidiu arriscar, decidiu jogar à meia luz.

Sofia valia a pena, pelo menos era o que Marina achava, e se a vida estava aprontando novamente, que fosse feito tudo aquilo que não estava nos planos, já que viver também é sentir medo. No fundo, foi o que Marina sentiu quando colocou aquele pedaço de papel na conta da mesa, não queria que ninguém visse, não queria piadas, não queria intromissões, queria apenas dizer que estava ali e que estava vendo Sofia, aliás, era só o que ela via quando ia ao Aquarela, o maior problema, é que Sofia nunca a via.

Quando viu que o bilhete fora lido pela destinatária, Marina saiu rapidamente do bar, deu um tchau coletivo e pediu o uber, na próxima sexta, queria fazer algo diferente.

A semana passou rápido e devagar, quando a sexta-feira próxima chegou, Marina estava ansiosa e nervosa, não sabia como seria a recepção e nem se teria abertura para uma conversa mais demorada ou íntima, encerrou o expediente exatamente às 17 horas.

O combinado era: conforme as funções fossem sendo encerradas, a turma se dirigia ao bar, às vezes, iam juntos, em algumas vezes, separados, em uns momentos a mesa tinha 20 amigos, em outros dez, nunca menos que isso, era uma tradição na Pegasus o happy hour de sexta no Aquarela Bar.

Marina estava ansiosa, tensa e linda. Sempre andava muito bem-vestida, discreta e elegante, a brasileira metade francesa era o retrato de clássico. Adentrou as portas do Aquarela naquela sexta exatamente às 17h28m, a primeira pessoa que visualizou foi Carlão. Nesse horário, a fila ainda não estava formada, correu o local com seus olhos e não viu Sofia, foi em direção à mesa que já tinha cinco pessoas, tirou o lenço que usava para proteger do vento frio noturno de SP e pediu um chope.

Meia hora depois, quando já tinham 17 pessoas na mesa, os olhos de Sofia acharam os de Marina e um sorriso lindo brotou da boca das duas, foi exatamente ali que a gerente teve a certeza de que estava apaixonada.

 



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