I

 

— Isso não me parece uma boa ideia. — Jeor comentou, deixando que Darlan assumisse a missão de carregar Lenór por algum tempo.

Ele massageou os braços doloridos, incomodado com a névoa que os cercava e invadia a trilha estreita e mortal. Quando desceram ao fundo a névoa estava presente, mas era tão fraca que não chegou a incomodá-los, agora tinha se tornado tão densa que não era mais possível visualizar o caminha à frente.

— Você tem certeza?

— Enquanto fazia o círculo de projeção que levou minha aura mágica até vocês, no pântano, minhas percepções sobre o terreno em que estamos foram aguçadas. — Voltruf respondeu, também incomodada com a névoa.

Ela passou a mão no pescoço, deixando os pensamentos serem arrastados para teorias que a desagradavam profundamente. Notou que Melina lhe dedicava uma atenção excessiva e mudou sua postura. A grã-mestra era muito hábil em decifrar seu semblante e reconhecer seus tormentos, por mais inexpressiva que pudesse se mostrar.

O momento era inapropriado, mas tão logo se encontrassem em segurança, os questionamentos viriam. O problema era que Voltruf ainda não tinha as respostas que Melina queria.

— Como podem perceber, não estou no ápice dos meus poderes e tudo que fui capaz de “ver” através da magia, são as galerias mais próximas ao paredão do abismo. Contudo, estou certa de que são muito mais numerosas… Sim, tenho certeza do caminho a seguir e posso guiá-los tranquilamente.

Ela apontou para a abertura estreita na rocha, diante da qual estavam.

— Me parece uma ideia melhor que tentar escalar com esse nevoeiro. — O tenente Vick falou, lançando um olhar triste para Lenór. — Quanto mais tempo passamos aqui, menos chance de sobrevivência a comandante tem. Não foi isso o que disseram?

Melina concordou, observando a comandante também. Os olhos dela moviam-se por baixo das pálpebras fechadas, como se estivesse tendo um pesadelo.

— Então, não vejo razão para essa discussão. E sendo sincero, estou ansioso para sair desse lugar logo. Não importa o caminho. — Encerrou o tenente.

O vento soprou forte e a névoa começou a se agitar, como se fizesse parte de um redemoinho. Na beirada da trilha, a névoa se tornou tão densa quanto uma parede e Vanieli ergueu uma mão para tocá-la. Contudo, Aisen a impediu.

Vanieli encarou a mão da daijin em volta do seu punho e o medo a tocou. Não era seu, mas da guerreira e quando essa sensação cresceu, percebeu que não era apenas de Aisen, mas de todos à sua volta.

— Afastem-se devagar. — Voltruf falou para as duas. — Melina…

— Eu já vi e estou sentindo também. — Respondeu a grã-mestra. — Mas não compreendo.

Havia alguém na névoa. Não era apenas um ser, mas vários. Rostos fantasmagóricos surgiram e desapareceram no redemoinho nebuloso, enquanto suas vozes — um sussurro baixo e atormentado — uniram-se ao uivo do vento, que tornava-se cada vez mais forte.

— Recuemos devagar. — Aisen disse para Vanieli.

A mão livre da daijin deslizou para a cintura e Vanieli percebeu que a corrente que a envolvia deslizou para o braço dela e enroscou nele como se tivesse vida própria.

— Deuses, o que é isso? — Jeor perguntou.

— Nós não devíamos estar aqui… — Voltruf falou pela segunda vez àquele dia e atraiu o olhar de Melina. — “Isso” não devia estar aqui.

Darlan recuou um passo quando uma mão enevoada se projetou da névoa e tentou agarrar a perna dele. O protetor segurou Lenór com mais firmeza, enquanto o tenente Vick seguia para a entrada da caverna.

— É melhor irmos embora logo, não estou a fim de descobrir o que são essas coisas no nevoeiro. — Disse o soldado, mas quando ele chegou perto da entrada da caverna, a névoa agitou-se novamente. Parte dela se desprendeu do redemoinho e começou a cercá-los.

Vanieli parou ao lado de Melina, assustada com as sensações que captava oriundas do nevoeiro. Enquanto isso, Voltruf murmurou algo em outra língua e gelo se formou à volta deles, tornando-se uma barreira que impediu o avanço da névoa e lhes permitiu entrar na caverna.

Assim que se viram no interior rochoso, Melina atirou sua flecha na entrada. Chamas tomaram conta da abertura, impedindo que o nevoeiro os seguisse e todos puderam respirar aliviados, enquanto as sensações angustiantes que o estranho inimigo lhes trouxe, abandonava-os lentamente. 

II

 

Levou um pouco mais de um par de horas percorrendo as cavernas, para que eles alcançassem o ponto indicado por Voltruf. Retornaram à trilha do abismo na metade do caminho até o topo dele e muito acima do nevoeiro assustador que encobria o fundo.

A noite estava na metade quando alcançaram o topo do abismo. Emergiram na floresta, muito próximo à fronteira entre Cardasin e Zaidar. O fato os surpreendeu, já que não imaginavam ter percorrido uma distância tão grande no interior da fenda.

O sol já estava se erguendo no deserto, quando saíram da floresta completamente exaustos. Na muralha os soldados se agitaram ao reconhecê-los e não tardou para que as trombetas de alerta soassem.

Enquanto se aproximavam dos portões principais da cidade, Vanieli observou os homens sobre as muralhas e as bandeiras que elas ostentavam em espaços regulares.

— São de todos os clãs. — O tenente Vick deu voz aos seus pensamentos.

Era uma tradição que a bandeira de um clã visitante fosse pendurada à entrada da cidade visitada como uma forma de honrá-lo.

A visão de tantas flâmulas trouxe um desconforto físico para Vanieli.

— Isso não pode ser um bom sinal. — Darlan murmurou.

 Vanieli fitou o rosto machucado de Lenór e o tocou, suave. A última vez em que vira tantas bandeiras juntas fora no seu casamento. Na ocasião, ela estava feliz e apavorada com as possibilidades futuras. Não era muito diferente do que sentia naquele momento. Mas, enquanto Lenór estivesse ao seu lado, tudo ficaria bem.

Houve um grande alvoroço entre os soldados e o povo ao vê-los cruzarem os portões. E Vanieli sentiu um calafrio ao encarar os rostos esquálidos e assustados. As pessoas sussurravam e faziam gestos que evocavam os deuses, mas não chegavam perto deles.

Um suspiro pesado lhe escapou, quando notou que as ruas estavam decoradas para um funeral e lamentou as vidas que se perderam no ataque das criaturas.

Eles interromperam o avanço quando o som do galope de cavalos lhes chegou. Com alegria, Vanieli avistou o Capitão Elius e outro soldado. O capitão saltou da montaria antes mesmo que ela parasse completamente se aproximou do grupo com o mesmo ar de eto que as pessoas em volta demonstravam.

– Que os deuses os abençoem! Estão vivos! – Disse ele, antes de tomar a mão de Vanieli respeitosamente.

Mestre Draifus apareceu em seguida. Com um pouco de dificuldade ele atravessou a pequena multidão que os cercava, sem esconder a alegria que o tomava. Longe da sua costumeira discrição, ele envolveu Jeor em um abraço apertado, entremeado por palavras sussurradas e emocionadas.

– Creio que todos nos sentimos da mesma forma. – Elius falou, olhando para o casal, antes de se voltar para Vanieli. – Me alegra o espírito revê-la, senhora. A todos vocês!

– Esteja certo de que sentimos satisfação igual, Capitão. — Ela devolveu o aperto caloroso de mão.

Elius sorriu, como se aquelas poucas palavras tivessem tirado um grande peso dos seus ombros. Fitou Lenór às costas do Tenente Vick.

– A comandante? — Indagou.

– Viva. – Vanieli respondeu, sem esconder a própria emoção.

Foi a deixa para que o soldado que acompanhava Elius incentivasse o cavalo a chegar perto do tenente.

– Eu cuido dela. – Disse ele com um forte sotaque, trazendo Lenór para a sua montaria sem dificuldades.

Sua pele era alva e salpicada por sardas discretas; os cabelos eram tão loiros, que ao serem atingidos pela luz do sol pareciam brancos; e os olhos chegavam a ser de um azul ainda mais claro que os de Melina. Ele usava o uniforme da Guarda Real e quando tomou Lenór nos braços as tatuagens palatins ficaram em evidência.

Yoha, minha Capitã. – Disse ele para uma Lenór inconsciente.

O respeito e admiração em suas palavras foram acentuados pela forma como a segurou junto ao peito. Ele fez parecer que Lenór era algo precioso e, de certo modo, todos ali tinham a mesma sensação. O guerreiro estrangeiro dirigiu um olhar suave e cortês para Vanieli, antes de partir para o castelo à galope.

Elius estreitou os olhos, observando-o se afastar. Então, abanou a mão e os soldados em volta dissiparam a multidão.

– Aquele era… 

– O guarda pessoal do rei. – Vanieli o interrompeu.

Ela nunca tinha visto Dimal, mas a esposa lhe contou sobre os novos protetores que providenciou para o soberano. Além disso, as cartas da sua mãe também relataram o incômodo que a presença dos guerreiros estrangeiros causou entre os clãs.

– Isso quer dizer que o nosso soberano também está aqui?

– Não, senhora. – Elius trocou o peso entre as pernas.

Seu nervosismo não escapou aos olhos atentos da Kamarie.

— Não exatamente… — corrigiu-se. — É melhor não conversarmos sobre isso agora. Não é o lugar e nem o momento.

— Melhor agora do que depois, Capitão. — Draifus falou, passando o braço sobre os ombros do marido. — O castelo não é um ambiente muito acolhedor neste momento. Ela precisa ser prevenida.

O capitão suspirou lentamente, satisfeito com o afastamento do povo. Mesmo assim, os olhares curiosos permaneciam sobre eles. Draifus estava com a razão, contudo, ele esperava ter mais alguns minutos para encontrar as palavras ideais.

— Não existe um bom jeito de dar uma notícia ruim, Capitão. Não importa a forma ou as palavras, ela continuará ruim. — Melina incentivou-o.

— A senhora tem razão. — Ele concordou, mostrando um sorriso sem graça.

— Por que os clãs estão aqui, Elius? — Vanieli questionou, agastada com a enrolação.

O homem endireitou a postura, antes de anunciar:

— Uma semana após sua partida para o abismo…

— Como assim “uma semana”? — Darlan o interrompeu. — Só ficamos fora por dois dias!

Elius pareceu desnorteado e Draifus tratou de esclarecer:

– Vocês partiram para o abismo há quase um mês.

— Isso é loucura! — Retrucou o protetor, apoiado pelo tenente Vick.

— Não tanto quanto tudo que vivenciamos no abismo. — Aisen resolveu participar da conversa. — Fale de uma vez o que está acontecendo aqui, Capitão. Discutiremos o tempo em outro momento.

A grã-mestra ordenada cruzou o olhar com o de Voltruf. A sobrancelha arqueada carregava uma dezena de indagações, que trouxeram para a florinae o mesmo desconforto que o capitão Elius sentia naquele momento, ao ser portador de más notícias.

— Uma semana após vocês terem partido em busca da Comandante Azuti, houve um ataque à capital Nazir. Foi uma ação calculada, que privou nossas forças militares da reação. Segundo os relatos, ocorreram incêndios e explosões nos alojamentos militares. Enquanto o povo e os soldados se mobilizavam para apagar o fogo, homens invadiram o palácio. Houve uma luta sangrenta e enquanto o rei fugia, a ala norte do palácio desabou.

A mão de Aisen pousou no ombro de Vanieli, quando a Kamarie sentiu as pernas fraquejarem.

— Ele está bem? O Rei Mardus escapou?

O capitão passou os olhos pelo entorno, mais uma vez, enquanto apertava o cabo da espada na cintura refletindo um gesto que Lenór fazia constantemente.

— O rei está desaparecido, Damna. — Ele soltou com pesar. — Acreditam que seu corpo está nos escombros do palácio.

— Deuses! — Vanieli levou uma mão trêmula à boca e a pressão da mão de Aisen aumentou.

Os dedos da mão esquerda de Elius desapareceram entre os fios grossos e cacheados dos seus cabelos, antes dele continuar.

— Não se sabe quem realizou o ataque. Assim como eles apareceram, se foram sem deixar rastros. E o resultado dessa tragédia é exatamente aquilo que estivemos trabalhando para evitar. Os clãs estão se armando; acusam uns aos outros de serem os autores da investida. Estamos na iminência de outra guerra.

A possibilidade disso acontecer atormentou Vanieli. As memórias da última disputa entre os clãs ainda estavam nítidas em sua mente, assim como a tristeza pela perda de um irmão.

— Nesse meio, também estão disputando o trono. — Draifus soltou Jeor e se aproximou dela — O rei não era casado, não tinha filhos ou parentes de sangue para ficar em seu lugar.

— É a combinação perfeita para a guerra das guerras. — Sentenciou Voltruf em um tom macabro e irônico. — O mundo muda, os séculos passam, pessoas morrem e outras nascem, mas o ciclo do poder permanece.

Darlan fitou o sorriso dela com desdém.

— Acha engraçado ver pessoas se matando, Flora?!

Voltruf suspirou com ar entediado.

— Eu já vi mais guerras do que você poderia imaginar, humano. Conheço a morte de perto e ela não tem graça alguma.

— Não é o que você demonstra. — Ele rosnou, inflamado pelo sentimento de impotência e o desagrado que a estrangeira lhe inspirava.

— Você é uma criança boba, Protetor. Se você tivesse caminhado neste mundo há tanto tempo quanto eu, também encontraria ironia no ciclo da vida. — Ela cruzou os braços, enquanto o vento bagunçava seus cabelos, como se fosse uma leve carícia.

Melina se interpôs entre os dois, a fim de impedir que a discussão se estendesse. Ela compreendia o que se passava na mente de Darlan, já estivera em seu lugar. Às vezes, era mesmo difícil interpretar corretamente as atitudes de Voltruf, mas isso se tornava mais fácil ao conhecê-la e a história do seu povo.

Quando o assunto era “guerra”, os florinaes possuíam bastante experiência. A ironia a qual Voltruf se referiu, estava no fato de que ela vivenciou uma experiência semelhante. Três milênios antes, seu povo quase se destruiu quando as quatro castas que o compunham disputaram o trono em uma guerra que durou trinta anos.

Havia mesmo ironia naquilo, Melina reconheceu para si mesma. Contudo, não o diria em voz alta. Em vez disso, preferiu se concentrar no que Elius ainda não tinha contado.

— Não é o momento para querelas sem sentido. — Pontuou ela. — É melhor nos atermos ao que está se passando aqui. Afinal, o capitão Elius ainda não respondeu à pergunta de Vanieli. Se os clãs estão a ponto de guerrear e se o rei está desaparecido — provavelmente morto —, por que o protetor dele e os líderes dos clãs estão aqui?

Elius deu um passo curto, trocando o peso entre as pernas. Suas botas fizeram barulho em contato com as pedrinhas no chão. Ele hesitou por alguns instantes, como se não tivesse certeza do que estava prestes a falar.

— O protetor do rei, Dimal, e o ministro da guerra, Jarfel, estão aqui para cumprir a última vontade do soberano. Os clãs estão aqui para impedir isso. E tudo parecia caminhar a favor deles, até alguns momentos atrás, quando vocês chegaram.

— Explique-se. — Vanieli exigiu, cada vez mais confusa e irritada com aquela história.

O capitão se empertigou, revelando: 

— É que, em seu testamento, o Rei Mardus elegeu a Comandante Lenór Azuti e a sua esposa, Damna Vanieli Kamarie, como suas herdeiras.

 



Então…

  • Sem revisão/acabei de finalizar e já vim postar.
  • Vocês podem encontrar erros e partes desconexas, que serão corrigidas ao longo da semana.
  • Próximo capítulo no sábado ou domingo.

Beijo grande!



Notas:



O que achou deste história?

4 Respostas para 23.

  1. Meo deos! Tattah, super valeu a pena esperar. E ainda bem que o abismo, por hora, ficou pra trás.
    Esperemos que Lenor se recupere logo e que Mardus esteja vivo.
    Beijos

  2. Uau…

    Sempre uma novidade, pensei q tudo q fariam ao chegar, seria cuidar de Lenór,
    mas eles terão é q olhar pelas próprias vidas. Na boa o rei é um amigo da onça
    sempre coloca elas no olho do furacão.

    Mais um cap. perfeito, tua escrita é impecável.
    Bjs 🥰😍

  3. Ohhhhhh😍😍😍😍😍
    Super valeu a pena esperar para ler esse capítulo!!
    Não achei errinho algum 😅😅
    E estou louca para chegar sábado ou domingo 😆😆😆😆
    Finalmente saímos da agonia do abismo e…lá vem guerra!! Esse rei é demais 😂😂
    Maravilha, Tattah!! 🥰🥰🥰🥰

  4. A ansiedade me corroe por um novo capítulo, aí quando chega é um alívio, mas que volta sempre que o capítulo termina😭.
    Esse povo tem que parar de conversinha e vão logo curar a Lenór, pudinzinho tá sofrendo vcs não veem isso não Kkkkkk.
    Capítulo como sempre maravilhoso pena que foi curtinho.

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