Caçadora

11. Júlia

 

I

 

As hélices do helicóptero ainda giravam quando Aquiles desembarcou. Gillian o aguardava recostado na porta do carro e se empertigou quando ele se aproximou.

— Quero saber todos os detalhes — exigiu o chefe, sentando no banco traseiro.

Gillian assumiu ao volante, enquanto relatava, minuciosamente, os fatos ocorridos duas noites antes. Pelo retrovisor, observou os lábios dele se curvarem em um sorriso, que lhe causou certo desconforto. O patrão era um homem de personalidade marcante; era gentil e agradável na maior parte do tempo, mas isso não passava de um embuste. Sua verdadeira face era tão obscura quanto uma noite sem estrelas.

Aquiles deslizou a mão sobre os cabelos lisos e negros, entremeados por fios brancos mais numerosos, graças ao último ano e a vingança implacável de Diana. Coçou o queixo, pensativo. Apesar de tudo, ele apreciava aquele jogo de gato e rato e não podia negar que admirava a esperteza dela.

— Como ela fez? — Perguntou.

Gillian afundou o pé no acelerador, ultrapassando um carro. Aproveitou a estrada em linha reta para ganhar velocidade e demorou um minuto para responder com voz tranquila e candenciada:

— Como de hábito, ela criou uma oportunidade onde não havia nenhuma.

Trocou a marcha e o motor do carro roncou mais alto em resposta ao peso do seu pé no acelerador. Continuou:

— Suponho que tenha nos observado por algum tempo. — Fez uma careta para si mesmo, pois não conseguia aceitar o fato de que tinha falhado na missão que lhe fora dada. — Percebeu que um dos carros saía, em um horário específico, para buscar as refeições da equipe em um restaurante próximo. Acredito que ela entrou na mansão na mala do carro e saiu da mesma forma.

Os olhos negros de Aquiles se prenderam na paisagem pela qual passavam e alguns minutos transcorreram até que voltasse a indagar sobre o ocorrido.

— Como ela soube onde as duas estavam?

Gillian, que aproveitou aquele tempo para dedicar atenção total à estrada, engoliu em seco ao ser interpelado sobre o assunto e protelou a resposta por um minuto, enquanto tomava coragem. Seu chefe não era o tipo de homem que tolerava falhas como as que tinha cometido.

— Ela se disfarçou como um dos homens e andou pela casa sem ser parada e interpelada — contou. O suor encharcava o paletó negro que usava, apesar do ar-condicionado.

Aquiles balançou a cabeça, pensativo. Então, esticou as pernas e sorriu, enquanto ele continuava:

— Não conseguimos localizar seu paradeiro, desde então. Entretanto, ontem pela manhã, um sujeito entrou em contato. Disse que a tinha localizado numa cidade costeira há trezentos quilômetros daqui. Enviei Miles e Juan, com alguns homens para lá.

O chefe sorriu, satisfeito. E, outra vez, alguns minutos se passaram até que tomasse coragem para voltar a falar: 

— Senhor?

— Diga. — Aquiles encontrou seu olhar no retrovisor.

— Desculpe minha curiosidade, mas não parece zangado. — Gillian observou.

Aquiles riu alto, baixando o vidro da janela e acendendo um cigarro.

— E não estou. Tudo está correndo como o esperado.

 

II

 

 

 

 

O mundo explodiu em vermelho diante dos olhos de Vanessa.

Algo morno espirrou em seu rosto, as mãos de Damião afrouxaram e ele tombou para o lado, libertando-a. Ela engasgou e tossiu à medida que o ar retornava aos seus pulmões e demorou alguns segundos para perceber o que aconteceu.

Horrorizada, viu Damião dar seu último suspiro, expulsando uma grande quantidade de sangue pelo orifício em seu peito. A face dele em agonia, suja de sangue e areia, os olhos vítreos de terror.

Ela arrastou-se para longe dele, entre tosses, gemidos dolorosos e arfados. Ergueu o olhar para se deparar com a mesma surpresa que sentia nos rostos dos outros protagonistas daquela luta. Jorge e Túlio procuravam o autor do disparo, mas não havia ninguém à vista, até que ouviram passos.

Dentre as árvores, onde findava a estradinha que as trouxera ali, uma mulher surgiu.

Os raios de sol, do dia que se iniciava, atingiram seus cabelos dourados e a pistola prateada que segurava com um sorriso quase diabólico a desfigurar a face alva. Era um belo e assustador fantasma.

Outra bala saiu da arma dela, indo de encontro a cabeça de Túlio que, surpreso por sua aparição, levou alguns segundos para erguer uma das armas que possuía e mirar. A bala atravessou seu crânio, arrastando consigo sangue e alguns fragmentos de ossos, que macularam o branco da parede às suas costas. Ele tombou ao lado de Cristina que, por sua vez, recuperou a arma que ele lhe tirou e afastou-se do corpo. Ela engatinhou até a parede, usando-a como apoio para ficar de pé, tão desnorteada quanto Vanessa naquele momento. Arregalou os olhos, admirando a mortal recém-chegada, em meio a vertigem que a pancada na cabeça provocou.

Jorge tinha perdido a arma durante a briga com Diana e, sem opções de fuga e indefeso, ergueu as mãos e saiu de cima da ladra.

— Estou desarmado! — Gritou, ainda sem visualizar a nova inimiga. 

Ainda assustada, mas certa de que estavam a salvo, Vanessa engatinhou ao encontro de Diana, que cuspia uma pequena quantidade de sangue com a respiração entrecortada. O rosto dela estava arranhado e cheio de poeira e, vez ou outra, uma expressão de dor lhe escapava. Todavia, foi com alegria que a ladra recebeu seu contato. Vanessa engoliu um soluço por senti-la tão viva e bem entre seus braços.

Por sua vez, Diana mal conseguia respirar de tanto medo que sentiu ao ver a morte tão perto daquela que nunca deixou de ser a “sua” vida. Encararam-se pelo que pareceu ser uma eternidade, embora não tivesse passado mais que alguns segundos e se ajudaram a ficar de pé. Só então, a ladra se permitiu olhar para a pessoa que as salvou. Seus olhos castanhos se abriram, surpresos e, ao mesmo tempo, aliviados por enxergarem uma figura amada. O coração acelerou um pouco mais, ainda no embalo da adrenalina pela ação vivida e os cantos da sua boca se curvaram com prazer.

Diana não tinha feito a ligação, como cogitou durante boa parte da madrugada. Contudo, como em tantas outras vezes inexplicáveis, “ela” veio em seu socorro.

Jorge segurava a respiração quando virou para encarar seu algoz. O rosto de tez morena e barba rala empalideceu diante daquela aparição e ele soube que era, de fato, um homem morto.

Com um gesto, a assassina mandou que se afastasse das duas mulheres e foi obedecida de imediato. Ele tentou controlar os nervos, mas poucas pessoas eram capazes de lhe causar tamanho pavor como aquela mulher e seus joelhos tremiam quase incontrolavelmente, assim como, suas mãos.

A mulher caminhou até ele devagar, enquanto o ouvia falar, com voz ligeiramente falha:

— Você morreu! Eles disseram que você morreu!

A mulher deixou um meio sorriso sarcástico tomar seus lábios e ele torceu para não ver o outro sorriso, o mesmo que dominava sua face quando matou Damião e Túlio, minutos antes. Jorge recordava bem dele. Aquele sorriso e a frieza no olhar a tornaram temida num mundo, tipicamente, dominado por homens, embora o crime não fizesse distinções de gênero.

— Você morreu! Eu fui ao seu funeral! — Jorge continuou com voz, agora, esganiçada que realçava seu pavor.

As sobrancelhas loiras se ergueram em sinal de surpresa.

— Eu tive um funeral?! — Ela perguntou, mal contendo outro sorriso. — Marcos está mesmo ficando velho!

Jorge resistiu a vontade de correr ao vê-la chegar mais perto. Seria muito pior se o fizesse, ainda assim, precisava tentar algo. Ela encostou o cano da pistola, ainda quente, em seu peito, então se voltou para Diana e a frieza abandonou seu olhar, momentaneamente.

A ladra tentou sorrir, mas só conseguiu exibir uma careta acompanhada por uma fileira de dentes vermelhos de sangue.

— Bem na hora, como sempre — ela disse, tentando empregar um tom brincalhão, porém o medo pelo que quase ocorrera com Vanessa, com todas elas, ainda estava presente em sua face.

Carla exalou profundamente, tentando manter a impassibilidade que lhe era característica, mas não resistiu por muito tempo. Afinal, Diana era uma das poucas pessoas capazes de trazer suas emoções à tona.

— Sério, Diana?! — Perguntou com uma nota de descrença. — É tudo o que tem a dizer?

A ladra sorriu, sem graça. Encolheu os ombros e disse:

— Foi mal?! — Franziu o cenho, sabendo que não estava se ajudando naquele momento.

Os olhos da amiga brilhavam, intempestivos, muito distantes da inércia costumeira, e o descontentamento de Carla se tornou mais evidente.

— Ah, foi mal! Foi mal! Você é incrível! — Reclamou ela, fazendo um gesto que abarcava tudo em volta. — Você é uma maldita sem noção!

Jorge choramingou, trazendo a atenção de Carla para si, outra vez.

— Por favor, eu não conto nada! Eu juro! — Disse ele. — Eu sumo, caio no mundo e ninguém vai saber que você está viva!

— Ah, Jorge, nós dois sabemos que isso não é verdade. Se te deixar ir, não vai demorar para que a temporada de caça à Carla Maciel esteja aberta e a minha cabeça valeria alguns milhões a mais do que a da minha amiga aqui, não é verdade? Eu tenho tantos inimigos quanto Marcos, é provável que mais. Sem correr o risco de estar exagerando, tem gente que pagaria uma fortuna, apenas para ter o prazer de me torturar e matar. Muito tentador para um verme ambicioso como você, não é mesmo?

O capanga deixou os ombros caírem, derrotado. No entanto, o gesto não passou de um embuste. Ele tentou tomar a arma de Carla, juntando as mãos sobre o objeto e dando um passo para o lado, se posicionando ao lado dela. Jorge retirou uma das mãos da arma, apenas para tomar impulso e dar uma cotovelada no rosto da oponente, porém Carla bloqueou o movimento com a mão livre e quando Jorge recolheu o braço, ela o socou e chutou a parte de trás do joelho dele.

O bandido perdeu o equilíbrio, ligeiramente, e Carla aproveitou para desferir outro soco no rosto dele. O impacto do golpe fez com que Jorge soltasse a arma, ele cambaleou para trás, sentindo o sangue jorrar pelo nariz quebrado e dobrou-se ao receber um soco no abdômen. Acabou caindo de joelhos, expulsando o pouco conteúdo do estômago junto com sangue.

Mesmo assim, ele tentou atacar Carla, novamente. Atirou-se em suas pernas, mas ela antecipou o movimento e deu um passo para o lado, ao mesmo tempo em que desferiu um chute em suas costelas.

O capanga rolou pelo chão tossindo, cuspindo sangue e sugando o ar que o chute dela lhe tomou.

— Jorge, Jorge… — Carla se aproximou e agachou ao seu lado. — Podemos continuar com essa brincadeira o dia todo, mas você sabe que está apenas retardando o inevitável.

Ele se voltou para encará-la e recebeu de volta um olhar inexpressivo. Era verdade o que ela dizia sem qualquer emoção. Mas nem por isso, menos aterrador.

Quando as pessoas normais buscavam viver tudo que a vida podia oferecer e temiam o fim dela, Carla Maciel abraçava a morte e caminhava ao lado dela sem remorsos pelas vidas que roubou e a que estava prestes a tirar.

— Por favor, Carla! — Choramingou. — Nós trabalhamos juntos. Eu fui fiel a você quando precisou.

— Fiel?! — Os cantos dos lábios dela se curvaram. — Chama de fidelidade atacar a minha família?

Apontou um dedo longo e alvo para Diana, enquanto ele engolia em seco, deixando a última gota de esperança abandoná-lo. Não que ele tivesse muita, se tratando de quem tinha despertado a ira.

— Alguém mais sabe sobre este lugar? — Carla quis saber, voltando a ficar de pé.

— Não. — Jorge garantiu.

Claramente desconfiada da resposta, ela apontou para o pé dele e atirou. Jorge berrou em agonia, apertando a ferida aberta. Lágrimas banharam o rosto bruto, tornando-o patético aos olhos dela.

— Não minta para mim, Jorge! Sabe que isso é uma péssima ideia.

— Eu juro, não há mais ninguém! — Ele chorou mais alto, contorcendo-se um pouco antes de se arrastar por meio metro, numa vã tentativa de distanciamento. — Damião esqueceu o celular no porta-luvas do carro que ela roubou de nós. Foi assim que a encontramos. Eu juro! Por favor!

Ela arqueou as sobrancelhas e olhou para Diana sem acreditar que ela poderia ter cometido um erro tão bobo e isso quase lhe custou a vida. Como se pudesse ler seus pensamentos, a ladra encolheu os ombros, crido os lábios rapidamente.

Carla guardou a arma no coldre axilar que vestia sobre a camiseta vermelha que estava usando e o capanga respirou aliviado, mas não menos assustado. A conhecia bem demais para saber que não precisava de armas para tirar uma vida. De fato, ela sempre preferiu matar com as próprias mãos.

— Juro que não conto nada! — Ele insistiu, desmanchando-se em gemidos de dor.

O olhar dela passeou pelo lugar rapidamente, antes de recaírem sobre ele.

— Se eu acreditasse em todas as juras que me fizeram em momentos como este, não estaria viva hoje. — Aproximou-se. — Fique de pé. Não me obrigue a matá-lo, enquanto se arrasta pelo chão como um inseto.

Jorge balançou a cabeça, arrastando-se para longe.

Ela valorizava um homem que lutava pela sua sobrevivência e, ainda mais, aqueles que encaravam a morte com dignidade. Para esses, costumava oferecer um fim rápido. Para covardes como Jorge, as coisas eram diferentes e, com efeito, mais dolorosas, todavia não estava ali para relembrar a assassina que um dia foi.

Mesmo assim, havia muito tempo não acontecia, um sorriso distorcido ganhou espaço no seu belo rosto. Ela deixou um suspiro escapar, não querendo mais prolongar aquele momento. Voltou a retirar a pistola do coldre.

Dois passos foram suficientes para que alcançasse Jorge e as três mulheres que assistiam o desenrolar daquela cena, viraram o rosto para não verem o último suspiro dele. No entanto, o som do tiro ecoou em suas mentes, uma dezena de vezes, até que tivessem coragem de voltar fitar a assassina.

Ela mirava o horizonte, os olhos fixos nas águas escuros do lago que ficava a poucos metros da casa. Embora seu semblante fosse calmo, seu interior se revirava como nuvens negras de uma tempestade. Baixou a vista para a arma na mão e admirou a luz solar refletindo no metal, antes de se voltar para as duas mulheres que se amparavam.

Diana, embora um pouco nauseada pelas mortes recentes que presenciou, a fitava com um misto de saudade e admiração. Não sentia pena de homens como Jorge e companhia, afinal, quem escolhia o crime como profissão, corria o risco de encontrar uma morte violenta.

Já Vanessa, resistiu a vontade de correr quando viu Carla se aproximar.

Cristina foi até elas, meio cambaleante. Com efeito, não podia acreditar no que tinha acontecido. Por um momento longo e aterrorizante achou que perderia Vanessa para sempre e, apesar de toda aquela confusão, era o medo de perdê-la que ainda mantinha seu coração batendo acelerado. Tentou falar algo, mas tudo que lhe escapou foi um murmúrio desconexo e Vanessa abandonou Diana, para envolvê-la em um abraço apertado.

A morena passou a mão na sua testa, que vertia uma grande quantidade de sangue, e sussurrou algo que Cristina não conseguiu compreender, pois prestava atenção à moça loira, parada com uma expressão furiosa a poucos metros delas.

— Sua idiota, presunçosa e egoísta! — Carla soltou, surpreendendo Diana pelo tom claramente colérico da voz que, raramente, oferecia tanto calor.

Embora etada com aquela explosão, e ainda sofrendo os efeitos físicos e emocionais dos momentos recentes, Diana riu. Não era uma provocação, se tratava de felicidade por revê-la após tantos anos e, claro, por ter sido salva.

Carla guardou a arma, ainda mais irritada e passou a revistar o corpo de Jorge, retirando os objetos pessoais que ele trazia consigo, empilhando-os aos seus pés.

— Ela disse que me amava, pela primeira vez, aqui. Sabia? Começamos nossa vida juntas aqui. Agora, em vez de amor, pensarei em morte quando recordar este lugar. Sabe há quanto tempo não seguro uma arma? — Mirou Diana por trás de uma mecha de fios loiros que lhe caiu sobre o rosto.

— Três anos?! — Diana mordeu os lábios com um sorriso traquina.

Carla estapeou a própria perna, deixando um suspiro raivoso escapar.

— Exatamente! Três anos sem matar nem um mosquito!

— Pelo que vi, você ainda tem jeito para a coisa! — Diana tentou brincar, mas a loira a fuzilou com o olhar, então ergueu as mãos, na defensiva. — Desculpa, Carla. Sei que você prometeu pra Carolina…

— Sei muito bem o que prometi pra Carol, assim como ela conhece bem a mulher que tem. Não é por isso que estou zangada!

Ficou de pé, olhando-a nos olhos.

— Mataria a droga de um exército por você, sua maluca inconsequente! — Respirou fundo, antes de continuar. — Um ano, Diana! Estou sem notícias suas há um ano. Tive que descobrir sobre a fuga de Malena pelos jornais. Esperei que me procurasse, mas não. Você sumiu! 

Diana tentou argumentar, mas ela continuou:

— Quando você vai parar de achar que está sozinha e entender que existem pessoas que te amam e se preocupam contigo? Que droga, mulher, você é minha família também! Quantas vezes terei de repetir isso?!

Vanessa assistia a discussão, incrédula. Aquela mulher tinha acabado de matar três pessoas e, agora, ralhava com Diana como se não houvesse acontecido nada de mais. Mais assustador ainda era a admiração nos olhos da ladra e a forma como ficou sem graça, diante do sermão que recebia. Era a primeira vez, desde que se reencontraram, que a via perder a pose de sabichona, e as palavras também.

Com um sorriso vacilante, a ladra se jogou nos braços da assassina. As duas se apertaram naquele abraço por um minuto longo e Diana se permitiu desabar dentro daquele abrigo. Lágrimas corriam frouxas de seus olhos, molhando o ombro da amiga, que fitou a calmaria na superfície do lago, feliz por ter chegado a tempo de impedir uma tragédia e, finalmente, rever aquela criatura um pouco insana que fazia parte do seu coração.

Carla a empurrou com carinho e deslizou os dedos sobre a face suja de areia e sangue dela, enxugando as lágrimas que lhe tomaram, então sentou um beijo na bochecha dela.

— Isso quer dizer que sentiu minha falta? Aquela morena birrenta não cuidou de você como eu, né? — Diana brincou, entre maliciosa e nervosa, e ficou satisfeita em ganhar um sorriso como resposta.

 

***

 

A tarde se iniciava quando Vanessa divisou a figura esguia de Carla sair dentre as árvores com uma pá sobre um dos ombros e sacolas de compras na mão. Um arrepio percorreu sua coluna ao vê-la chegando cada vez mais perto da casa.

Depois de andar pela propriedade se certificando de que não haviam mais capangas, ela trouxe o carro que Jorge e companhia roubaram e jogou os corpos, um a um, no porta-malas como se fossem feitos de penas. Ela os erguia sem esforço, deixando a morena surpresa, visto que tinha uma compleição bastante delicada.

Silenciosa, Carla entrou na casa com passos leves, lançando olhares para Diana que tinha, literalmente, apagado no sofá enquanto a esperava. A ladra não disse nada quando a viu sair com os corpos e, quando Vanessa a questionou sobre o que Carla iria fazer com eles, respondeu que não queria saber.

Essa resposta fez Vanessa argumentar contra a sua falta de interesse e humanidade. Todavia, Diana não comprou essa briga e limitou-se a responder com um dar de ombros, então se acomodou no sofá e adormeceu.

Por sua vez, Cristina estava jogada na poltrona perto da porta, admirando a namorada, ainda sem conseguir acreditar no susto pelo qual tinham passado. Ela sabia que Diana se sentia da mesma forma, pois a ladra tinha lhe confessado isso, enquanto Vanessa procurava curativos no local indicado por Carla, antes dela sair para dar cabo dos cadáveres.

Foi o meu pior pesadelo se tornando realidade — Diana dissera, virando o rosto para ocultar as lágrimas que lhe vinham aos olhos e, envolvida no mesmo manto de tristeza e medo, Cristina a surpreendeu, puxando-a para um abraço apertado.

Foi um momento estranho e confortador para Cristina. Saber que dividia aquela dor com alguém que realmente a compreendia a tranquilizou e não teve receios de chorar no ombro de Diana e vice-versa. Quando se afastaram, Diana lhe sapecou um beijo próximo aos lábios e retornou para a cadeira que ocupava, minutos antes, fazendo-lhe um carinho na bochecha.

Quando Vanessa retornou com a caixa de primeiros socorros, ambas tinham voltado aos seus respectivos “normais” e Cristina se sentia grata pela estranha paz que encontrou em Diana naquele momento.

Carla parou no umbral da porta, tomando um instante para admirar as três mulheres na sala. Ela se aproximou do sofá, onde a amiga estava, e deslizou os dedos pelos cabelos dela, carinhosamente. Soltou um suspiro rápido e se encaminhou para a cozinha, lançando olhares intensos para o casal que a observava indisfarçadamente. Ela teve vontade de rir dos ciúmes nos olhos verdes de Vanessa, por mais que esta tivesse tentado se mostrar indiferente ao seu gesto de carinho na ex-namorada.

 

***

 

A vida era engraçada ou uma grande piada, assim pensava Carla, enquanto tomava uma xícara de café, sentada à mesa com Vanessa e Cristina. O silêncio que reinava entre elas era quase caloroso e fazia com que recordasse um tempo em que ele foi seu melhor companheiro. Uma época em que enxergava tudo em preto e branco.

Mas depois que largou o crime e encontrou a paz que tanto buscava ao lado de Carolina, só enxergava cores e amor. Não era um exagero, tendo em vista sua história de vida.

Diana a tinha ajudado a conquistar o amor de Carolina e, por isso, lhe seria grata até o fim de seus dias. Entretanto, o laço que as unia era muito mais forte que a gratidão. Era um fato que elas se amavam de muitas formas e, por algum tempo, quiseram ser o “tudo” uma da outra.

Ela deslizou o olhar pelas paredes de tons pastéis, cuja tinta descascava em alguns pontos, e recordou a última vez que esteve ali. Foi o momento mais feliz da sua vida e, desde então, ele se repetia todos os dias quando vislumbrava o sorriso de Carolina a cada amanhecer.

Passou a mão pelos cabelos úmidos. Tinha tomado um banho longo, após fazer o café, e ficou muito satisfeita por poder se livrar das roupas sujas de barro e sangue, que não hesitou em jogar numa lixeira, na lateral da casa, e atear fogo apagando os últimos resquícios de Jorge e companhia daquele lugar que lhe era sagrado.

— Isso é café? — Diana sentou ao seu lado, já enchendo uma xícara para si e arrancando-a das reflexões. — Eu sei que deve estar horrível, pois tenho certeza de que foi você quem fez, mas preciso disso!

Carla sorriu, vendo ela fazer uma careta ao tomar o primeiro gole. Todo mundo implicava com o seu café.

— Você conhece uma centena de maneiras de matar um homem, mas não consegue fazer um café decente! — Resmungou a ladra, esfregando os olhos inchados pelo sono recente. — Onde você conseguiu isso? A comida que tinha aqui estava toda vencida.

A amiga sorriu novamente, desprezando a provocação.

— Comprei depois de… — interrompeu-se, encarando as outras duas ocupantes da mesa, principalmente, Cristina.

O incômodo antecipado pelo que estava prestes a dizer era bastante visível. Carla não se importava de falar a respeito e sabia que Diana não ligava, mas optou por ser menos direta.

— Você sabe. — Completou.

Os minutos se arrastaram, envolvendo-as em novo silêncio que era interrompido apenas pelo vento balançando a copa das árvores que ladeavam a propriedade.

— Me desculpe! Eu ia fazer o que combinamos naquele aeroporto, três anos atrás. — Diana falou e aguardou, paciente, que ela se manifestasse.

Com Carla não havia pressa. Quando o assunto não era “vida” ou “morte” ela preferia digerir as informações com calma. O sorriso tinha abandonado o rosto dela e deixado a dureza nos olhos azuis, e um minuto se passou até que resolvesse falar:

— Fiquei preocupada, Diana! Para ser sincera, ainda não sei se te bato ou se abraço e choro de novo.

A ladra riu, timidamente. Só a tinha visto chorar uma vez e foi justo na ocasião em que se viram pela última vez.

— Desculpa — pousou a mão sobre a dela, carinhosa.

No canto da mesa, Vanessa batia o pé, enciumada pelo carinho entre elas. Enquanto isso, Cristina assistia ao diálogo, fingindo não notar a atitude da namorada e fugindo dos olhares intensos de Carla que, vez ou outra, a atingiam com a força de uma bala, lhe roubando a paz de espírito há muito alcançada.

— Estava tudo certo, era o meu último trabalho, mas Aquiles tinha outros planos. — Diana explicou, recorrendo ao café, como se a bebida pudesse lhe oferecer algum conforto. — Ele mandou matar o meu alvo e eu seria a próxima. Quase morri em Madri, por três vezes. Na última tentativa, ele foi pessoalmente.

Incomodada, ela fugiu do olhar de Carla, que não imaginava o efeito que o azul frio dos seus olhos causava nas pessoas quando endureciam daquele jeito. Era belo e assustador, ao mesmo tempo.

— Depois que escapei do hospital, tudo o que desejava era vir para cá. Voltar para a “nossa” família — sorriu. — Não, eu não esqueci da nossa conversa e nem do peso das promessas que fizemos naquela noite. — Apertou a mão dela, novamente. — E é por isso que não voltei para vocês. Aquiles está me perseguindo pelo mundo, usou Vanessa para me fazer sair do esconderijo e cá estamos nós. Se fizesse o que combinamos, ele poderia descobrir que você não morreu como planejamos.

— Que descobrisse, então! — Carla respondeu, acalorada.

Vê-la se expressar assim, de forma tão intensa, de fato, era prazeroso para Diana. A Carla que ela conheceu e chegou a namorar, era um poço de frieza e impassibilidade e, raramente, deixava suas verdadeiras emoções à vista.

— E jogar todo aquele trabalho de forjar sua morte por água abaixo? — Retrucou. — Você saiu do crime, como sonhava, e está com a mulher que ama. Vocês têm uma vida boa que eu poderia destruir. Então, não me culpe por querer mantê-las bem e felizes.

Carla suspirou e olhou pela janela, perdendo-se, momentaneamente, no balanço das copas das árvores. Diana estava certa, sabia disso. Mesmo assim, ressentia-se pelo medo que tinha de perdê-la, assim como tinha perdido tantas outras pessoas importantes e amadas. Seu olhar acabou por pousar em Cristina que, de repente, achou algo interessante no fundo da sua xícara.

— Não sei se é a coisa mais sensata que já ouvi da sua boca ou a mais estúpida. De qualquer forma, é apenas uma parte da verdade e eu a quero toda.

Diana se empertigou, a loira a conhecia como ninguém.

— Não vim parar aqui, hoje cedo, por um milagre, Diana. Estou te rastreando há meses, mas você é escorregadia. Ainda bem, senão já estaria morta!

Ficou de pé e foi se apoiar na pia, com os braços cruzados.

— Quando soube do desaparecimento de Vanessa, imaginei que você apareceria e comecei a rastreá-la. Encontrei a mansão onde Aquiles as escondia, mas quando cheguei lá, vocês já tinham fugido.

— Então, como soube que estávamos aqui?

Um sorriso irônico moldou os lábios da loira.

— Me corrija se eu estiver errada, mas quando o assunto é fugir de um criminoso poderoso e com recursos em todos os cantos do mundo, aparecer na TV não é a melhor maneira. Você e os três patetas mortos foram notícia no jornal do meio dia. Acabei vendo a reportagem por acaso e imaginei que existia a possibilidade de que viesse para cá, um lugar seguro, afastado de olhos curiosos.

Soprou o ar com força e concluiu:

— Você é arrogante e, com efeito, a melhor no seu ramo. Mas, há de convir, que também tem muita sorte! Alguém lá em cima, — apontou para o auto — se é que existe mesmo alguém, deve gostar muito de você!

Diana sorriu para o tampo da mesa, um sorriso que misturava alívio e desconforto, assim como o brilho nos olhares de Vanessa e Cristina. De repente, sentia-se cansada demais para continuar aquela conversa.

Sempre fora uma mulher confiante, audaciosa, não tinha medo dos desafios, pelo contrário, ia à procura deles. Mas a experiência daquela manhã jamais a abandonaria. Por sua causa, elas quase morreram. Seu olhar cruzou com o de Cristina e um estranho afeto lhe tomou recordando o conforto de seus braços. Estavam ligadas pelo amor que sentiam por Vanessa e, embora houvesse a rivalidade, sabiam que podiam contar uma com a outra para cuidar dela.

Terminou seu café em silêncio e saiu, seguida pela morena, cujo semblante estava mais carregado que o costume.

Carla permaneceu de pé, olhando pela janela e também se tornou objeto de contemplação de Cristina que sentia-se sufocada com toda aquela loucura em que a vida tinha lhe atirado de uma hora para outra.

— Eu senti a sua falta — a criminosa falou, um sorriso discreto e triste nos lábios. Ela tinha se voltado para fitá-la e aguardando uma resposta.

— Eu também senti a sua — Cristina respondeu, com o olhar marejado. Estava se segurando, há um bom tempo, para que Vanessa não percebesse.

A loira se aproximou devagar, o sorriso crescendo em seus lábios e uma estranha paz a lhe tomar. Finalmente, depois de tantos anos, tinha a resposta para uma pergunta que se fazia todas as noites.

Cristina ficou de pé, encarando-a, quase tímida. Tantos anos haviam se passado desde àquela noite, tanta coisa tinha acontecido em sua vida, mas nunca a esqueceu. Como tinha dito a Vanessa: “o primeiro amor nunca se esquece”. Sorriu para aquela lembrança triste e, ao mesmo tempo, carinhosa à sua frente e se encaixou no abraço dela, ouvindo-a sussurrar o nome que tinha abandonado há 16 anos.

— Ah, Júlia, como te procurei!

 


Me empolguei com a cena, acabei ilustrando! Hehe…

Beijos!



Notas:



O que achou deste história?

10 Respostas para 11. Júlia

  1. E não é que era verdade mesmo! A Cristina é na verdade a Júlia. Que loucura, não vejo a hora de saber o resto. Posta mais, por favor!

    • Kkkkkk… Você é bem dedutiva, Amábile!
      Agora sou eu quem está curiosa para ler as suas próximas teorias. Hehe…
      Beijos!

    • Hehe… Bom saber que está curtindo, Thaís! Não deixe de comparecer nos próximos capítulos, garanto muitas outras emoções e surpresas!

      Beijos!

  2. Valeu a apena a espera.?
    Pela e história (pura emoção) e o presente/ pintura (linda) d brinde…
    Faço minhas as palavras da preguicella, uma x na semana é pouco.
    Por favor, Autora.
    Agrade a nós reles mortais, coloca aí na sua agenda, mais um capítulo….. ?

    • Kkk… Pequena e querida mortal, seu pedido foi atendido, como falei para a Preguicella no comentário abaixo, rs… Mas esse extra ficará para a próxima semana, junto com um desafiozinho camarada. rs…

      Que bom que gostou da ilustra!

      Beijão!

  3. Tattah!

    Que cap. lindo, não q a Carla chegando e matando meio mundo
    seja lindo… k k k
    Mas vê-las interagindo, Vanessa morta de ciúmes e mesmo assim
    age com desdém com Diana que esta se ligando a Cris… mto fofas
    Guriaaaa, q ilustração linda, amei D
    Mas… Cris na verdade é Julia… me caiu os butia do bolso.

    Adorei,

    https://www.dicionarioinformal.com.br/me caiu os butia do bolso/

    • Kkkkkkkkkkkk… Eu sempre rio quando tu escreve essa expressão! Não sei porquê, acho engraçada.

      Beijos!

  4. Ai genteeeee, faz um desafio de novo Tattah! Por favorzinho, nunca te pedi nada! Pelo menos não esse ano ferrado que estamos vivendo.

    Apesar do momento aterrorizante adorei a ilustração!

    Bjão e se cuidem!

    • Hehe… Seu pedido foi aceito com carinho, Preguicella! Mas só no próximo capítulo! rs…

      Realmente, este ano tá complicado, mas a gente supera! Tenha fé!

      Beijos e se cuide também!

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